“Você sabe o que eles
pretendem fazer? A Sabesp tem um plano B para o futuro?”, indaga. Todos olham
para a debatedora, que responde desolada: “Não, eu tenho as mesmas informações
que vocês e não faço a menor ideia se há um plano B, C ou D. Por outro lado, sei
que o pior ainda está por vir”
por Anne Vigna / http://www.diplomatique.org.br/
Um restaurante elegante
no coração de São Paulo, capital econômica do Brasil. O sommelier apresenta a
seus clientes uma garrafa de vinho, que ele manipula como se fosse um bebê, e
em seguida serve seu conteúdo, em copos de plástico. Nos banheiros do local,
impecáveis, o sifão foi desmontado e a água corre direto para um balde. Na
porta, um cartaz sugere: “Caros clientes, por favor, utilizem a água de reúso
para a descarga”. Há vários meses, a cidade dos superlativos – a mais populosa,
a mais cheia de automóveis, a mais rica... – também se tornou a cidade das
cenas mais estranhas. São Paulo está entre as megalópoles do mundo que tiveram
um forte crescimento econômico na última década, mas a água começa a faltar de
forma aguda.
No estado de São Paulo,
com 41 milhões de habitantes, os conservadores estão no poder há 24 anos. No
último debate televisivo entre os candidatos a governador, em outubro, os
reservatórios já estavam com níveis assustadoramente baixos. Ao ser questionado
sobre o tema, o candidato à reeleição, Geraldo Alckmin, do PSDB, foi
categórico: “Não está faltando nem vai faltar água em São Paulo”. Ele ganhou as
eleições, mas a frase ainda aparece nas redes sociais.
“No início, em agosto
de 2014, eles cortavam a água apenas à noite. Mas agora cortam também na hora
do almoço”, esbraveja o dono do restaurante chique apontando para os galões de
água na cozinha – usados nos intervalos sem água. “Eles”? A Sabesp, empresa de
economia mista1 encarregada da distribuição e saneamento na cidade. A reserva dos
galões não é suficiente para as necessidades do estabelecimento: a louça da
noite ficará acumulada até a manhã seguinte, e os cozinheiros só conseguem
realizar suas atividades graças a garrafões de água potável. Assim como em todo
lugar, o fenômeno repercute nos preços do cardápio. E as coisas não melhoram: a
Sabesp chegou a considerar limitar o abastecimento a dois dias por semana em
alguns bairros, mas depois voltou atrás. Os funcionários se inquietam, a
empresa dá informações a conta-gotas. Após forte pressão popular, a
concessionária indicou em seu site na internet as horas de corte de cada
bairro. As informações, contudo, muitas vezes estavam equivocadas. E parou de
dar entrevistas à imprensa.
O pior ainda está por
vir
No fim da projeção do
documentário A lei da água (ver boxe), de André D’Elia (Cinedelia, 2014), no
fim de janeiro, ninguém se mexe. No salão lotado, como acontece com todas as
sessões desse filme, todos esperam o debate com Ana Paula Fracalanza,
pesquisadora da Universidade de São Paulo e especialista em gestão hídrica. Na
casa de Maria Caçares, que estava na plateia e fez uma intervenção, o corte de
água acontece antes de sua chegada do trabalho e só volta às 10h da manhã,
quando ela já saiu de casa. Felizmente, em seu edifício, as pessoas mais velhas
se encarregam de encher galões de água para os que trabalham fora. “Você sabe o
que eles pretendem fazer? A Sabesp tem um plano B para o futuro?”, indaga a
Fracalanza. Todos olham para a debatedora, que responde desolada: “Não, eu tenho
as mesmas informações que vocês e não faço a menor ideia se há um plano B, C ou
D. Por outro lado, sei que o pior ainda está por vir”.
Todos conhecem o plano
A do governo: investir cerca de R$ 1 bilhão para captar a água do Rio Paraíba
do Sul, que já abastece o Rio de Janeiro. Mas a operação – que privará o Rio de
parte de sua fonte de abastecimento – precisa de dezoito meses para ser concluída,
na melhor das hipóteses.
“Perdemos muito tempo
por causa das eleições. Se o governo tivesse dito antes que era preciso
economizar água, a população teria entendido”, explica Marcelo Cardoso,
representante da Aliança pela Água, uma coalizão de organizações ecológicas que
surgiu com a eclosão da crise. Em outubro passado, em Itu (SP), houve uma série
de protestos pela situação de calamidade pública da cidade: sem água, os
moradores atacaram prédios públicos. Os caminhões-pipa enviados pelo estado
precisaram entrar na cidade escoltados pela polícia. Os manifestantes não eram
fanáticos ou revoltados, eram cidadãos de “bem”, entre os quais muitas mulheres
de classe média. “A água foi embora e a dignidade das pessoas também. Quando
não podemos mais tomar banho, ir ao banheiro, cuidar das crianças, entramos em
pânico”, explica Cardoso.
Segundo um relatório de
serviços de informação do estado de São Paulo revelado pela edição brasileira
do jornal El País,2 a região poderia experimentar manifestações graves como as
de junho de 2013, desencadeadas pelo aumento da tarifa dos transportes
públicos. O site especializado em questões de segurança Defesa.net3 assegura
que a crise hídrica explica o “estágio” que funcionários do serviço de
informação de São Paulo realizaram, em novembro último, em uma unidade policial
especializada dos Estados Unidos chamada Special Weapons and Tactics (Swat).
Ironia da história, São Paulo recebeu em março catorze veículos munidos de
potentes canhões de água para dispersar manifestantes.4 Será que de fato o
poder público ousará enfrentar manifestantes que protestam contra a falta de
água com esse aparato?
Propostas que visam
otimizar os recursos hídricos não faltam: desenvolvimento de agroecologia,
despoluição do Rio Tietê – que se transformou em um esgoto a céu aberto em São
Paulo –, reparações no sistema de abastecimento para mitigar perdas (estimadas em
25%), captação de água das chuvas etc. Nenhuma dessas iniciativas, porém,
ganhou a atenção dos poderes públicos.
Desmatamento na
Amazônia
A explicação dessa
crise está mais ao norte, na floresta amazônica, devorada para dar lugar à
plantação de soja e criação de gado. O Brasil se encontra em um impasse: a
agroindústria, pilar de sua balança comercial, absorve quase 70% do consumo de
água no país. A exportação de bens agrícolas representa uma transferência ao
estrangeiro de cerca de 112 bilhões de litros de água por ano.5 Esse setor
repousa sobre um regime de chuvas abundantes, colocado em risco pelo
desmatamento que se amplia constantemente.
A floresta permite não
apenas reter a água da terra, mas também o fenômeno da evapotranspiração do
solo e das folhas – dessa forma, restitui à atmosfera uma quantidade
considerável de vapor. Os cientistas estimam que a Bacia Amazônica emita o
equivalente a impressionantes 20 trilhões de litros de água por dia. Essa
umidade favorece a condensação de nuvens e provoca o fenômeno dos “rios aéreos
de vapor”.
“Os ventos que provêm
do oceano se encarregam do vapor constante que predomina na Amazônia e são
barrados a leste pelos Andes, o que faz toda essa água ser reenviada para o sul
do continente”, explica Antonio Donato Nobre, especialista em clima e autor de
uma síntese de duzentos relatórios científicos sobre a Amazônia.6 O ecossistema
da Amazônia e da Cordilheira dos Andes permite que o sul da América Latina
sofra menos com a seca que atinge a maior parte do globo nessa latitude (como
os desertos da Namíbia e da Austrália, por exemplo). A pluviometria que eles
favorecem é crucial para cerca de 70% da produção da riqueza regional.7
“Desmatamos quase 90%
da mata atlântica em toda a costa leste do país, mas sem sentir as
consequências, porque a Amazônia oferece umidade suficiente”, continua Nobre.
“Hoje, 18% da Amazônia está desmatada, e a área degradada já atinge 29% do
bioma.8 Não podemos dizer com precisão em que momento sentiremos o efeito desse
desastre, mas ele está anunciado há mais de uma década.”
De acordo com as
últimas estimativas, 762.979 km² de floresta – mais de duas vezes a superfície
da Alemanha – foram destruídos nos últimos quarenta anos. Somente em 2004,
desapareceram 27.772 km². Se o ritmo anual pudesse voltar a 4.571 km² em 2012,
essa situação poderia ter curta duração. Em 2011, o governo reformou seu Código
Florestal sob pressão dos deputados e senadores chamados de “ruralistas”, que
defendem os interesses da indústria agroalimentar. Esse novo código limita
fortemente as zonas de conservação e anistia todos os processos judiciais
ligados ao desmatamento, que pode se intensificar com as novas prerrogativas.
A falta de chuva se
traduz igualmente por uma penúria de eletricidade em um país cuja produção
energética provém 75% de usinas hidrelétricas. O ministrode Minas e Energia,
Eduardo Braga, reiterou a vontade de construir uma barragem no Rio Tapajós, na
Amazônia, enquanto a de Belo Monte, no Rio Xingu, nem sequer entrou em
atividade.
Essa seca na megalópole
brasileira permitirá uma tomada de consciência sobre a necessidade de proteger
a Amazônia? Por enquanto, o governo federal concentra sua ação no financiamento
do plano A de São Paulo. Ele deverá igualmente responder às dificuldades dos
outros estados em crise, como Rio de Janeiro e Minas Gerais – sem mencionar os
auxílios que os agricultores reivindicam para enfrentar a seca e os subsídios fiscais
que as indústrias exigem para se munir de equipamentos que consomem menos água.
O “bombeiro” federal precisa conter todos os incêndios que ameaçam seu
edifício. Mas o dinheiro, assim como a água, é escasso.
“Deus é brasileiro, e
Ele fará chover”
Na imensa favela da
Brasilândia, a uma hora de ônibus ao norte do centro de São Paulo, os moradores
já estão bem conscientes do problema que se anuncia. Abaixo da favela, os
cortes acontecem como no resto da cidade, mas, quanto mais avançamos pelo
labirinto de ruas morro acima, menos acesso à água têm os moradores. Uma avó
que tenta recolher a água usada da máquina de lavar roupa nos explica: “Com
isso, limpo toda a casa”. Ela fica surpresa com o fato de, naquele mesmo dia, a
Folha de S.Paulo ter publicado um infográfico pedagógico apresentando
justamente formas de economizar água: recuperar a água da máquina de lavar,
reutilizar a água do banho, fechar a torneira quando escovamos os dentes etc.
“Até o pessoal lá de baixo está fazendo isso? Então a situação é grave”,
conclui.
Ao subirmos na laje,
observamos uma profusão de galões e baldes empilhados nos tetos vizinhos. Com
qualquer chuvinha, “subimos e posicionamos os recipientes para recolher água da
chuva”, comenta seu filho mais velho. A técnica funciona bem, mas, em um país
tropical como o Brasil, tem consequências previsíveis. Segundo a Secretaria de
Saúde da cidade, os casos de dengue se multiplicaram por três em janeiro deste
ano em relação ao mesmo período em 2014.9
A crise da água produz
múltiplos efeitos. Para exemplificar um dos mais espetaculares, é preciso
visitar os reservatórios do Sistema Cantareira, um dos sistemas mais
importantes de adução do mundo. A paisagem que vemos por lá é desoladora. O
imenso lago artificial parece, hoje, uma mina a céu aberto. A terra exposta ao
sol está rachada. O que resta de água corresponde a 18,2% (em 26 de março) do
nível original.
“Ninguém pode nos dizer
o tempo que será preciso para recuperar o nível de antes da crise, mas
certamente estamos falando de anos, pois, como a terra está exposta, a água se
infiltra quando chove, mas também evapora rápido e não faz o nível subir
muito”, explica Francisco de Araújo, adjunto da Secretaria de Meio Ambiente de
Bragança Paulista. Nas margens, as cinco marinas, em geral cheias durante o
verão, estão desesperadamente vazias. “Quase todos os nossos clientes levaram
seus barcos para o litoral e não acho que voltarão”, explica Sydney José
Trinidad, proprietário de um desses pequenos portos.
Rumores sugerem que,
depois de deslocar seus barcos, os mais abastados também já deixaram São Paulo.
Mas o ministro de Minas e Energia permanece sereno: “Deus é brasileiro, e Ele
fará chover”.
Anne Vigna é
jornalista.
Ilustração: Bernardo
França
A lei da água
Documentário brasileiro sem fins lucrativos que explica a relação entre o novo Código Florestal, o desmatamento e a crise hídrica brasileira. O filme está sendo exibido em uma série de cinedebates gratuitos espalhados pelo país (acesse a agenda: https://aleidaaguafilme.wordpress.com/agenda-cinedebates/) e chegará aos cinemas de algumas cidades por uma campanha de financiamento colaborativo via Catarse (https://agua.catarse.me/).
1 O estado de São Paulo detém 50,3% do capital da Sabesp. O resto está nas Bolsas de São Paulo e Nova York.
2 “Polícia teme onda de protestos por causa da falta de água e de luz”, El País Brasil, São Paulo, 6 fev. 2015.
3 “Seca em São Paulo é tratada como caso de segurança pública”, 30 nov. 2014. Disponível em:.
4 “PM de São Paulo terá caminhões com canhões de água”, O Estado de S. Paulo, 9 jul. 2013.
5 Isabella Bueno, “A água virtual no contexto da exportação”, Jornal Biosferas, Rio Claro, 10 mar. 2015.
6 Antonio Donato Nobre, “O futuro climático da Amazônia. Relatório de avaliação científica”, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, out. 2014 (disponível on-line).
7 Ibidem.
8 Deterioração de uma floresta por corte seletivo e não durável, em particular pela instalação de pastos e exploração do gado. Nos casos mais graves, pode chegar a se configurar desmatamento.
9 “Secretaria divulga segundo balanço de dengue e chikungunya na cidade”, comunicado do Serviço Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, 12 fev. 2015.
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