O desinteresse da juventude inglesa pela vida política
adverte para os riscos de algo semelhante ocorrer por aqui: uma deriva no
caminho do conservadorismo.
por: Saul Leblon / http://cartamaior.com.br/
A vitória sólida e inesperada do conservadorismo inglês nas
eleições gerais desta 5ª feira, desmente a ilusão de que as condições
econômicas falam por si, gerando a luz necessária ao esclarecimento da
sociedade.
A economia da Inglaterra cresceu 2,8% no ano passado, é
verdade, cravando a taxa mais vistosa do G7.
O desemprego diminuiu para 5,8% ao final do mandato do agora
reeleito David Cameron, um engomado membro da elite, casado com a herdeira de
uma aristocrática família de linhagem latifundiária.
Os números mais vistosos do PIB e do mercado de trabalho
ajudam a entender, em parte, que os eleitores tenham decido dobrar a aposta
inercial nesse camafeu do conservadorismo.
Mas havia também fortes razões em sentido contrário para
afrontá-la.
Os institutos de pesquisa, todos eles, trabalhavam com o
cenário de uma disputa renhida, a mais apertada desde a Segunda Guerra e havia
razões objetivas para isso.
A prioridade do primeiro mandato de Cameron foi a redução do
déficit fiscal, que fechou em 5,4% do PIB em 2014 (no Brasil isso seria
carimbado como o caos pelo glorioso jornalismo de economia).
Sua ferramenta de trabalho, naturalmente, não foi a taxação
dos mais ricos, mas o corte nos gastos públicos.
Um dos setores retalhados no cepo conservador foi a última
jóia do orgulho social democrata inglês: o sistema público de saúde, uma
espécie de SUS desenvolvido, comido pelas berbas, como diria Brizola, por
sucessivos mandatos da linhagem inaugurada por Tatcher, em 1984.
Cameron deu a sua cota ao canibalismo regressivo.
O premiê que acaba de ganhar um novo mandato agora com
maioria para impor seu programa de forma mais coerente, ‘enxugou’ a rede de
postos de atendimento, terceirizou serviços, rebaixou o padrão de qualidade e
comprimiu salários.
Como foi possível reverter o que era uma invejável conquista
da civilização e, ainda assim, ganhar as eleições?
A pergunta encerra questões cujo interesse extrapola as
fronteiras inglesas; talvez ajude a esclarecer certas urgências e equívocos em
outras latitutes mais ensolaradas do Atlântico.
Desde 1984, com a ascensão da dama de ferro, a hegemonia
conservadora – persistente, mesmo em intervalos de poder trabalhista -- vem
escavando o sistema de regulação defensiva dos que vivem do próprio trabalho no
capitalismo que mais ensinou a Marx sobre a engrenagem predadora intrínseca ao
sistema.
Ticados pelos sucessivos filhotes de Tatcher –inclua-se
nessa prole Tony Blair, cuja guinada conservadora feriu de morte o trabalhismo
e foi batizadada pela dama de ferro como a sua ‘maior conquista’— a classe
operária e os sindicatos ingleses foram progressivamente perdendo força, desde a derrota emblemática
dos mineiros na greve de 1984.
Foi ali que Margareth Tatcher, com inestimável ajuda
trabalhista, fincou a estaca neoliberal no coração da social-democracia
europeia -- feito que antes só Pinochet conseguira lograr na América Latina,
mas às custas de um banho de sangue.
Na Inglaterra a mecânica encontrou seu ponto de equilíbrio
na intersecção entre duas curvas em cruz.
De um lado, a espiral ascendente das reformas: novas
legislações aprovadas a partir de 1984, como se sabe, enfraqueceram o poder de
negociação dos sindicatos, sucatearam a indústria, precarizaram o emprego,
rebaixaram os salários, promoveram a ampla desregulação do mercado financeiro
hipertrofiando a City londrina como ponto de referência da grande lambança
global dos capitais.
De outro lado, a curva descendente da qualidade de vida
ganharia um reforço entrelaçada ao impulso da rendição ideológica do
trabalhismo inglês aos ditames dos mercados autorreguláveis. A eutanásia
funcionou como um solvente na capacidade de organização e resistência dos
assalariados à hegemonia em curso.
Quase 2,5 milhões de crianças vivem atualmente na antessala
da pobreza absoluta nessa que é a terceira maior economia europeia. São os
herdeiros mais vulneráveis desse longo processo emparedados em lares cujos
ocupantes subsistem com uma renda 60% inferior à média inglesa.
Na Albion sombria, bancos de alimentos acodem um número
crescente de famílias, cuja renda já não assegura a dieta mínima necessária à
sobrevivência. O maior deles, o Trussell Trust , segundo o jonal El País,
distribuiu nos últimos 12 meses 1,1 milhão cestas de alimentos, cada uma
suficiente para abastecer uma família durante três dias.
São quase 200.000 mais que no ano passado – um volume 27
vezes maior do que há cinco anos. ‘A esses números seria necessário somar os de
outras centenas de bancos de alimentos independentes que operam em todo o
país’, adverte o jornal.
A insegurança alimentar ganhou, assim, contornos de um
verdadeiro problema de saúde pública na Inglaterra de Cameron. Quem diz isso
são médicos e assistentes sociais do serviço público, encarregados de cadastrar
o acesso às doações de alimentos.
Sem o contraponto de uma referência política clara,
articulada internacionalmente, capaz de oferecer à sociedade uma alternativa
crível a um capitalismo liberado de suas amarras reguladoras, deu-se o que se
assiste nesse momento.
O que se assiste, e a reeleição de Cameron potencializa
isso, é a etapa mais profunda do processo de curetagem econômica e ideológica
iniciado por Tatcher há tres décadas.
A rede de direitos, serviços
e salvaguardas conquistados a duras penas pelos assalariados europeus
–antes e depois da segunda Guerra— recebe os últimos pregos no caixão inglês.
Não é pouco o que se enterra.
Um inestimável contraponto à extração da mais valia
capitalista, uma espécie de segundo salário cativo das famílias trabalhadoras
se liquefaz.
Escola boa, transporte barato e eficiente, alugueis baixos ,
saúde pública de reconhecida qualidade formavam um chão firme de sobrevivência
mesmo no desemprego, ademais de fortalecer o poder de barganha dos sindicatos e
servir como válvula de negociação do desenvolvimento industrial.
O ganho de produtividade subtraído aos salários no chão da
fábrica era compensado por avanços na rede de proteção social, financiada com
receita de um sistema tributário mais justo e progressivo.
A rigidez desse amortecedor foi um dos alvos da ofensiva
contra o ‘custo Inglaterra’, implementada pelos blindados de Tatcher, só
possível, repita-se, com a rendição trabalhista.
Ao ganhar vida própria, a engrenagem submeteu e desossou
definitivamente a social-democracia inglesa, incluindo-a no sucateamento
imposto à rede de proteção da sociedade.
A eficiência desse liquidificador histórico pode ser
comprovada amargamente por Ed Miliban na última 5ª feira, em mais uma derrota
trabalhista ruidosamente festejada pelos mercados financeiros.
Faz todo sentido.
A Inglaterra hoje associa duas vertentes do capitalismo
tidas como referência global de competitividade econômica, de um lado, e
confiança dos mercados, de outro: desmonte trabalhista e fastígio financeiro.
Em toda a UE, apenas os dilacerados mercados de trabalho de
Portugal e Grécia pagam atualmente salários médios mais baixos que aqueles
recebidos pelos trabalhadores do Reino Unido.
São inglesas também as experiências mais radicais de
desregulação do mercado de trabalho em curso na UE.
A mão de obra just in time
é uma dessas modalidades avançadas de flexibilidade acalentadas aqui
pelos coveiros da CLT –paradoxalmente,
os mesmos que, liderados por paulinhos, aecinhos e o gentleman, Roberto Freire,
posicionaram-se como paladinos da causa operária contra mudanças no seguro
desemprego.
A nova tecnologia trabalhista inglesa reduz o empregado a um
insumo igual a qualquer matéria-prima. Só é requisitado do depósito quando a
demanda assim o exige; receberá então apenas e somente o equivalente ao tempo
que seu cérebro e músculos foram diretamente consumidos pela engrenagem
produtiva.
Há 700 mil ‘insumos humanos’ desse tipo no capitalismo em
festa por Cameron. Trata-se da modalide de ‘emprego’ que mais cresce na terra
dos vitoriosos conservadores.
Isso não impede, na verdade guarda estreita funcionalidade
com o fastígio da riqueza desregulada na outra ponta do sistema.
Mais que nunca, a Inglaterra singulariza-se como um império
financeiro no qual, como disse a revista Vanity Fair há alguns anos, o sol
nunca se põe.
Em qualquer momento do dia ele brilha em um dos muitos
paraísos fiscais do planeta, interligados à City londrina como anexo colonial
ou por velhos laços rejuvenescidos pela supremacia dos mercados financeiros,
que tem na ilha da Mancha uma fortaleza.
Três anexos da coroa britânica, Ilhas Caimã, ilhas Virgens
Britânicas e as Bermudas são responsáveis por drenar múltiplos de centenas de
bilhões de dólares ao ano, em dinheiro devidamente lavado, entregue ao circuito
nervoso da vetusta City londrina.
No total, um arquipélago financeiro composto de 14
territórios opera nesse sentido nos quatro cantos do planeta -- 50% deles
típicos paraísos fiscais e offshores – sem contar antigas ex-colonias, como
Hong Kong, de laços financeiros nunca suspensos com a banca matriz.
Não por acaso, o maior escândalo bancário do século XXI , a
manipulação da taxa Libor, descoberta em 2012,
floresceu nesse vertedouro licencioso por onde transitam os fuxos do
dinheiro frio mundial.
A manipulação da taxa
interbancária de Londres envolveu cerca de 20 grandes bancos internacionais. Em
ajustes diários, comandados da City, operadores fixavam margens de ganho, num
rodízio de apropriação de nacos de um mercado de US$ 50 trilhões indexado à
taxa londrina (quatro vezes o PIB dos Estados Unidos).
O trabalho just in time, a farra da Libor e o desmonte do
Estado social inglês remetem de volta ao grande Big Bang da desregulação,
deflagrado por Tatcher contra os sindicatos em 1984 e, em 1986, contra a
disciplina vigente nos mercados financeiros, o que atrairia um número cada vez
maior de banqueiros e especuladores à City.
O desinteresse da juventudade inglesa pela vida política,
cuja tônica, a partir de então, foi a indiferenciação sebosa entre isso e
aquilo, adverte para riscos de natureza
algo semelhante vividos nesse momento em latitudes mais ensolaradas.
Se o processo neste caso caminhará também para uma deriva
conservadora que anestesia o discernimeto social é uma questão ainda em aberto.
Por enquanto.
Leia mais sobre essa encruzilhada no especial de Carta Maior
deste fim de semana: ‘ A utopia neoliberal; o capitalismo contra a democracia’.
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