Em livro lançado na semana passada, o psicanalista Christian
Dunker afirma que a 'lógica do condomínio', que organiza a visão de realidade
de segmentos conservadores, está semeando a rivalidade entre grupos
por Helder Lima, da RBA / http://www.redebrasilatual.com.br/
São Paulo – Qual a origem do ódio deflagrado pelas
manifestações reacionárias dos dias 15 de março e 12 de abril? Para o
psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker,
esse ódio é produção do que ele chama de “crise dos condomínios no país”.
Segundo Dunker, o conceito de condomínio que permeia a visão de realidade de
parte dos brasileiros, com as eleições do ano passado, caminhou para o colapso.
“O sentimento que se tinha é de que o Brasil era um grande condomínio, e
ninguém iria eleger um síndico, ou deixar um síndico que ‘nós’, os que sempre
mandaram no país, ‘não queremos’”, diz.
Com essa perspectiva, que associa ao momento político e às
manifestações conservadoras, Dunker lançou na semana passada o livro Mal-estar,
Sofrimento e Sintoma (editora Boitempo), em que analisa a realidade brasileira
do ponto de vista da história de sofrimento no país e da expansão do pensamento
neoliberal, que se apropria do condomínio, o espaço público, e segrega quem
pode ou não ter acesso a esse espaço.
No livro, Dunker lança mão da psicanálise para analisar a
questão política e social, mas não se limita a isso. O caráter multidisciplinar
da obra inclui abordagem da história e sobretudo das ciências sociais
brasileiras, que por meio de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto
Freyre buscam dar contorno à produção de identidades no país.
Chamou a atenção o evento de lançamento do livro, programado
para a sede da editora no bairro de Perdizes e acabou transferido para a quadra
do Sindicato dos Bancários, no centro de São Paulo, tamanho o número de pessoas
interessadas em acompanhar o debate de lançamento. “Foi um evento interessante,
o momento pede uma resposta às manifestações e a esse agrupamento da direita no
país. Acabou sendo um pretexto para todos se encontrarem.”
O que é a lógica do condomínio?
No livro, eu trato o condomínio como um sintoma do Brasil,
no sentido de que é um fenômeno que tem uma aparição histórica muito precisa,
nos anos 1970, justamente no momento em que o mundo assiste ao início dessa
grande virada neoliberal, com Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald
Reagan, nos Estados Unidos. Trata-se de uma mudança na maneira de produzir, mas
também de entender o uso do espaço, e a configuração das leis que regem esse
espaço. Então, o condomínio foi um sonho de consumo brasileiro, e torna-se um
sintoma porque, no fundo, ele não é só um jeito de viver, uma forma de moradia.
Olhamos para a vida ao modo de uma experiência que temos no condomínio.
E como se processa essa experiência?
Primeiro, você tem a produção de muros, que impedem que
qualquer um entre. Então, o espaço que é comum dentro dos condomínios não é de
fato espaço público. Ele é, digamos, um espaço que imita o público, é um espaço
público postiço, onde é criado um conjunto de ilusões, de funcionalidade, de
transparência, que capta o mito de uma vida resgatada, pura, uma vida onde a
gente vai ter segurança plena, onde tudo vai estar no seu lugar.
Então, esse é um binômio inicial, quer dizer, você constrói
muros para criar e purificar a sua experiência. Esses muros podem ser catracas,
fichas de identificação, esses muros dizem quem é você, se você pode entrar e
pode sair. Você começa a trabalhar com uma visão de mundo a partir de
segregados e segregantes, quem é que você vai excluir para criar a sua forma de
vida. E isso, certamente, é muito perigoso.
E como a vida intramuros se reproduz?
Depois de você construir muros e estabelecer o uso semipúblico
do espaço, da coisa comum, vem mais um passo. Você começa a ter a gestão da sua
vida na figura do síndico. Uma vida baseada na gestão, isso é o que temos
acompanhando, que são os atravessamentos da experiência com o outro. E o modelo
se espalha. É a gestão da saúde, da educação, é o gestor como aquele que não
entende muito da atividade-fim, mas entende, vamos dizer assim, de como extrair
algo a mais do processo de produção, ou do processo de consumo.
Então, nossa vida é primeiro dividida em muros, o que cria
uma segregação, uma mutação no espaço público e em seguida vem a figura do
síndico, que diz que esse é o jeito obrigatório de se viver. E aí temos os
síndicos, que estão pululando pelo Brasil. São administradores da coisa pública
que a tornam coisa semipública.
Podemos dizer então que os síndicos dão suporte ao
neoliberalismo?
Esses são os caras que estão nos órgãos reguladores, é o
cara essencial para produzir a terceirização, ele é aquele que pega as
atividades que eram guarnecidas até os anos 1970, em educação, saúde e
assistência social, e enfrenta isso como um negócio. O próximo passo da lógica
de condomínio, baseada num sonho de harmonia e segregação, só que não é notada
como segregação, se torna um pesadelo. Dentro dos condomínios surgem coisas
incompreensíveis, como uma violência disruptiva, uma competição desmesurada
entre vizinhos – o garoto está andando de bicicleta e raspa no carro do
vizinho, aí o dono do carro vai lá e dá um chute na porta do carro do pai e diz
que vai matar o garoto, algo desproporcional.
Mas aí o condomínio começa a se tornar também um espaço sem
regras...
Em tese, é uma violência que já está meio latente ali nos
laços. Quando alguém faz uma violação, e como aquele é um espaço formado a
partir de uma extrema idealização do que sejam as relações humanas, qualquer
violação é punida drasticamente, é pretexto da violência de um contra o outro.
O alto consumo de álcool e de drogas, depressão, pânico, um sentimento
exagerado de insegurança social, ou seja, tudo aquilo que você negou para
construir o condomínio, volta pela porta dos fundos do condomínio. E, na
realidade, você pode pensar isso como uma forma de vida que vai ter variações
estruturais. O shopping center é uma forma de condomínio.
A prisão é outra forma de condomínio. A favela é uma
terceira forma de condomínio. Você vai trocando os termos, vai mudando a
conotação do que é o muro, o elemento segregador, quem é o síndico e chega em
espaços que têm uma regra de existência semelhante ao condomínio. Seria então
um sintoma que vai crescendo, que vai se tornando mais e mais central na nossa
cultura dos anos 1970 até o nosso momento atual, que é uma espécie de crise dos
condomínios. Então, você assiste à classe média reclamando que os condomínios
estão ruindo, os muros não estão funcionando direito, precisa criar novos
muros, novas figuras intrusivas, e assim por diante.
Quais são os indicadores de que hoje a lógica do condomínio
está em crise?
Primeiro, vamos dizer assim, está em crise porque deu certo,
ou seja, a ideia do condomínio se generalizou, se consolidou como uma forma de
vida tão normalopática, tão esperada que ninguém mais percebe que isso é
problemático. Nós não percebemos os custos que temos quando praticamos a
segregação. Poderíamos chamar, assim, de um sintoma egosintônico, que se
entranhou no 'eu' de tal maneira que a pessoa não consegue mais nem entrar em
conflito com ele. Mas a lógica do condomínio tem a ver com um certo momento em
que essa ideia de se apropriar do espaço público e criar uma lei de uso particular,
prêt-à-porter, de consumo doméstico, vamos dizer assim, podia ser arbitrada
segundo uma organização de autoridade vertical. O síndico é o sucessor, meio
anacrônico, é verdade, do chefe, do pai, de quem representa a autoridade.
E quando esse sistema começa a ruir?
Entenda que o condomínio entra em crise quando essa
autoridade se dispersa e começa a haver uma espécie de luta entre os
condomínios, de ataque mútuo entre formas de vida, cada qual formada por
pequenos grupos que se entendem como comunidades independentes. Você pode ver
isso tanto do ponto de vista da religião, de consumo, entre outros. O choque,
como diria Žižek (Slavoj Žižek, filósofo, crítico e cientista social esloveno),
não é entre civilizações, mas é “intracivilizacional”. É assim que aparece essa
ideia do ódio entre as pessoas, do ódio político, como depois da eleição de
2014, que foi válida. Enfim, um time perdeu, mas de repente isso é
insuportável, e por quê?
Porque o sentimento que se tinha é de que o Brasil era um
grande condomínio, e ninguém iria eleger um síndico, ou deixar um síndico que
“nós”, aqueles que sempre mandaram no país, “não queremos”. Essa contrariedade
produziu um choque com relação ao sentimento, seja ele falso ou verdadeiro, não
importa, mas uma interpretação dos donos do poder, como dizia Raimundo Faoro,
de que de repente tem algo que está fora do nosso condomínio. Isso coloca os
condomínios em crise, mas eles ainda são a forma prevalente do nosso
entendimento, tanto da produção quanto do consumo na nossa forma de vida.
A quem é destinado o livro?
Ele tem uma ambição de sair dos muros da psicanálise. Um dos
capítulos busca, justamente, mostrar que a psicanálise, enquanto prática
clínica, é uma coisa que se entranhou, foi bem recebida pela nossa cultura e
depois disso se formou também como estrutura de condomínio dentro do nosso
padrão brasileiro de lidar com a sociedade civil, espaço público etc.; então, o
primeiro público obviamente seria o psicanalista, mas esse segmento talvez
fique decepcionado com a maior parte do livro, pois ele se torna mais específico
na última parte, porque até lá o que eu vou discutir é o Brasil.
Tem um capítulo sobre a formação do pensamento na
brasilidade, passando por Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, chegando
então nos pensadores desenvolvimentistas dos anos 1950, é um pouco assim uma
história do Brasil do ponto de vista do nosso sofrimento. Você pode ter a
história econômica, política, religiosa, e eu decidi fazer, num dos capítulos
mais longos, sobre quais são as nossas formas de sofrimento, como a gente sofre,
como sofreu e como está sofrendo hoje. É como colocar os condomínios em uma
espécie de série histórica. E desse ponto de vista, o livro interessaria a um
leitor também focado em teoria social, política, filosofia, semiótica, ciências
humanas. Tenho recebido comentários de pessoal da arquitetura, urbanismo, gente
que trabalha com política, ciência política e pessoas interessadas no Brasil,
no nosso momento. O livro funciona para pensar essa virada do Brasil
pós-reeleição da Dilma.
Então, podemos dizer que é um enfoque multidisciplinar?
Tem uma parte que discute bastante com a medicina, com o
campo da saúde, da psicopatologia, vamos dizer assim, mas é uma discussão mais
ou menos aberta sobre o que é a loucura, o que é o sintoma, e o que é essa
categoria, que é clínica, mas também social, que é a noção de sofrimento.
O livro começa com um pequeno conto de uma pessoa que está
num hospital, é o caso real do pai de um amigo que vai para um hospital e fica
naquele processo sem-fim de exames, guias de internação, interna, não interna,
verifica se pagou o convênio, vai aqui, vai lá, faz os processos, daí a hora em
que chega o médico para passar o diagnóstico e pega todo aquele material esse
senhor diz assim: “Não precisa falar nada, eu sei muito bem o que eu tenho,
chama-se 87 anos”. Isso é uma entrada para o tema porque nós não precisamos
associar o sofrimento nem com diagnósticos, nem com sintomas formalizáveis pela
razão psicopatológica. O sofrimento, no fundo, é um tema político, tem a forma
de sofrimento que merece atenção e tem a forma que merece ser silenciada. Como
se produz esse processo? É uma discussão para quem tem interesse em Brasil, em
política e também em psicopatologia.
Por que o sofrimento é político?
A ideia é que a realidade do que a gente sofre muda conforme
a gente fala do nosso sofrimento. Se o outro chega e diz “pô, cara, isso aí que
você está passando eu reconheço como uma dificuldade, como um sofrimento que
tem dignidade”; a sua experiência real, de dor, de desprazer, de insatisfação,
sua experiência no corpo, muda com o reconhecimento. Mas também há o momento em
que o outro diz “eu não reconheço”. Por exemplo, o sofrimento de gênero. “Não
reconheço que você tem direito a sofrer, porque você está sendo maltratado
publicamente, porque isso aí não cabe na minha moral”. Então, aquela
experiência inicial de sofrimento aumenta conforme ela é tratada pelos outros.
E quem decide qual é o sofrimento que tem de ser tratado e qual não tem não
deve ser o médico, nem o psicanalista, nem nenhum especialista isoladamente,
mas o conjunto, quer dizer, a questão política, porque envolve todos. No fundo,
nós já estamos fazendo isso, nós estamos discursivamente validando,
invalidando, revalidando, desautorizando, construindo narrativas de sofrimento.
Todo sofrimento se dá em uma história, em uma narrativa. O sofrimento não é a
dor, a dor é uma sensação que você tem, o sofrimento é a história que você
conta a partir disso.
Esse sofrimento de gênero, quando não tem o reconhecimento
do outro, implica que o sujeito não se vê como detentor de um lugar no seio da
sociedade...
Ou tem um reconhecimento patológico. É reconhecido como
doença. Ou tem reconhecimento marcado por um determinada meta narrativa. Por
exemplo, o sofrimento de gênero da mulher. Tem uma meta narrativa que diz
“olha, o seu sofrimento, a dor da menstruação, a dor do parto, a natureza já
previu, estabeleceu que você tem de sofrer, então, você não pode reclamar,
aceita calada isso que está acontecendo com você”. Você tem nesse caso uma
política construindo uma modalidade específica de reconhecimento e dizendo que
o reconhecimento se dá de uma maneira e não de outra. Você também tem o
sofrimento de gênero do homem, que diz que ele não pode chorar. Isso é uma
outra ideia, de que o homem sofre calado, não pode se mostrar de outra maneira
porque é sinal de vulnerabilidade. Ou o sofrimento dos homossexuais: “Você não
pode sofrer, porque é uma escolha que você fez, é uma coisa que é contra a
natureza, então, isso não pode estar associado com nenhum tipo de sofrimento
porque é uma escolha sua”.
Tentando entender as razões das pessoas que participaram das
manifestações contra a corrupção e o PT, em 15 de março e 12 de abril, dá para
observar, nas entrevistas, que as pessoas adotam a livre associação para criticar
a realidade. Constroem narrativas que unem informações e fatos espontaneamente,
ao sabor do desejo ou do ódio que estão sentindo, mas deixam de lado qualquer
critério lógico...
Mas por outro lado, você tem de ver que tem sempre uma certa
parasitagem da ciência. Tem gente que vai dizer assim, “Você é de esquerda?!
Então você tem um problema mental, você é um petralha, você tem uma forma de
deficiência mental, você não consegue entender direito o mundo, tem um
problema”. Ser de esquerda, nesse caso, significa que você não está às voltas
com uma interpretação de mundo que produz certo desassossego, inquietação ou
indignidade, mas você tem esse “sofrimento” a ser tratado no médico, e não em
praça pública.
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