sexta-feira, 1 de maio de 2015

Mulheres, individualidade e agência

Daumier_Les Divorc
[Daumier capta os medos burgueses da ocupação da esfera pública por parte das mulheres nesta charge da série 

“Les Divorceuses”, de 1848. A imagem integra o livro Paris, capital da modernidade, de David Harvey.]

Por Flávia Biroli. / http://blogdaboitempo.com.br/

A centralidade da posição social das mulheres levou, nas teorias feministas, à redefinição de questões clássicas no pensamento social e político. Uma delas é a relação entre individualidade e agência.

A definição do indivíduo como valor e como objeto é um dos traços que identificam a modernidade no Ocidente. Emerge em uma configuração histórica singular, atravessada por relações de poder também específicas. O indivíduo passaria, então, a ser uma referência normativa importante, mobilizado como valor a ser defendido, ao qual se conectam noções fundamentais ao pensamento e às instituições das sociedades modernas ocidentais, como liberdade e privacidade. Seria mobilizado também como objeto de controle e regulação, configurando a realidade física e psíquica sobre a qual recaem proibições e incitações, tomam forma códigos e práticas.

O indivíduo que assim se configura não é a expressão de qualquer pessoa ou de todas as pessoas, não corresponde a qualquer posição ou codifica uma experiência comum.

Por essa razão, foi importante para o feminismo que a história da construção do indivíduo moderno, com as normas que regem as relações entre os indivíduos e as relações entre indivíduos e Estado, fosse contada de novo. Analisada a partir do que nela foi suspenso ou marginalizado, essa história tem as marcas das hierarquias existentes nas sociedades que produziram as normas e instituições que protegem e regulam “os indivíduos”. Nelas, as estruturas de autoridade estiveram assentadas sobre hierarquias de classe, de raça e de sexo. Embora não seja possível considerar essas variáveis separadamente – combinadas, organizam divisões que não se explicam quando se isola uma delas –, a posição das mulheres expõe os limites da noção de indivíduo que referenciou as regras do jogo. De um lado, sua individualidade foi restrita como fundamento para a participação autônoma na sociedade, de outro, foi definida como objeto de controles diferenciados daqueles que se voltaram para os homens.

Obras importantes no pensamento feminista contemporâneo se propuseram a contar novamente a história da construção da política moderna. Há muita distância entre elas, nos pressupostos que mobilizam e nas interpretações que afirmam, mas apresentam em comum uma correlação entre a posição diferenciada dos indivíduos e a forma, também diferenciada, que a individualidade e os direitos individuais assumiram para mulheres e homens. Entre as obras que se destacaram nessa empreitada, menciono O contrato sexual, de Carole Pateman, publicado pela primeira vez em 1988; Public man, private woman: women in social and political thought, de autoria de Jean Bethke Elshtain, de 1981; e Women in Western political thought, escrito por Susan Okin e publicado em 1979.

É possível vê-las como aproximações distintas a um mesmo problema, o do lugar reservado para as mulheres na construção moderna da política, do indivíduo e da liberdade. 

Por serem mulheres, sua individualidade esteve regulada por códigos distintos daqueles que definiram as vidas dos homens. Assim, mesmo considerando a enorme diferença na posição das mulheres burguesas e das trabalhadoras, o sexo foi um elemento definidor: a relação entre indivíduo, vontade, liberdade e responsabilidade foi – e é ainda – por ele condicionada.

A dualidade entre a esfera pública e a esfera privada, característica do pensamento e das instituições liberais modernas, permitiu que a liberdade fosse afirmada como definidora da condição civil do indivíduo. Ela tomaria forma na esfera pública. Embora a ideia de que todos os homens livres – ainda que profundamente desiguais em suas condições para aderir às regras do jogo, ou para recusá-las, nas relações de trabalho ou nas normas que regem as instituições políticas – se engajariam voluntariamente nas relações de que tomam parte seja uma ficção que ultrapassa as divisões baseadas no sexo, a posição das mulheres tem algo de específico. No pensamento e nas instituições que organizaram o mundo moderno, elas foram excluídas até mesmo da ficção do contrato por não terem lugar na vida pública, como discutiu Carole Pateman: a naturalização de seu pertencimento à esfera privada definiria sua condição, amplamente tolerada, de subordinação.

Na tradição liberal, uma das chaves para a afirmação de que a condição civil dos indivíduos é a de liberdade é a noção de consentimento voluntário. Ela é correlata à de livre-escolha, compondo mais do que um ideal, a condição sine qua non para a legitimidade e justeza dos contratos e dos acordos. É esse o ponto principal da crítica de Pateman, já mencionada, ao falar dos contratos nas sociedades contemporâneas: o caráter voluntário das escolhas pode ocultar, ou suspender como problema, as condições desiguais em que essas escolhas se deram e o grau de submissão resultante de contratos “livremente” firmados. Assim, mesmo que não exista exploração em um contrato firmado voluntariamente, se ele permite relações de domínio e subordinação, reduzindo a autonomia de uma das partes, há problemas do ponto de vista da construção de uma sociedade democrática1.

O ponto é que quando os indivíduos escolhem sem ser coagidos, isso não implica necessariamente níveis iguais de liberdade. A equação liberdade é igual a ausência de constrangimentos é, no entanto, fundante de algumas das principais correntes e argumentos no liberalismo. “Escolho” engajar-me em relações de trabalho que envolvem altos graus de exploração e nas quais sou remunerado aquém do que me permitiria condições dignas de vida, mas isso não significa que exista justeza nas relações que assim se firmam ou que essa escolha possa ser tomada como uma demonstração de minha condição de liberdade. Podemos mesmo questionar se tem sentido recorrer à noção de escolha em um caso como esse.

Para as mulheres, os limites da noção de – e das condições para a – livre-escolha apresentam especificidades que vêm sendo tematizadas pelas teorias e pelos movimentos feministas. As ocupações que assumem e o trabalho que realizam na vida cotidiana doméstica estão longe de ser escolhas voluntárias, ainda que não sejam assumidos em situações que possam ser identificadas como de coação ou em contextos nos quais existam impedimentos legais para a busca de outros caminhos. Nas sociedades ocidentais hoje, é possível considerar um cenário em que as mulheres não sejam controladas – coagidas – diretamente por homens específicos2 ao assumir toda, ou quase toda, a carga do trabalho doméstico, no qual incluo o trabalho necessário para o cuidado dos filhos. Também é possível considerar que diferentes tipos de ocupação estão abertos a elas, não havendo proibições para que desempenhem atividades tradicionalmente masculinas e que, não por acaso, são as que recebem melhor remuneração. Ainda assim, as mulheres permanecem ligadas às atividades entendidas como femininas, como as atividades domésticas não-remuneradas e as atividades remuneradas que evocam essas últimas, como o trabalho cotidiano de limpeza, produção dos alimentos, cuidado das crianças e dos idosos, educação voltada para a infância. São, sem dúvida, atividades centrais ao desenvolvimento e às boas condições da vida humana. Pela sua caracterização ligada à domesticidade e às mulheres, porém, são aquelas que recebem menor valorização social e remuneração, sendo essa uma das razões pelas quais o rendimento médio das mulheres permanece inferior ao dos homens. São, também, as que são exercidas em condições de maior precariedade.

O que define a orientação das mulheres para essas atividades? O fato de que não existe coação ou impedimento implica que “escolhem”? E a “escolha” implica engajamento voluntário?

As críticas feministas expõem o fato de que a agência dos indivíduos na definição das suas vidas é sempre imperfeita, constrangida, mas é desigualmente imperfeita3. Realiza-se de maneiras que correspondem não apenas a impedimentos explícitos que se apresentam diferentemente aos indivíduos, mas como desdobramento das desigualdades estruturais e dos valores e estigmas socialmente ativos. Correspondem a inflexões no horizonte de possibilidades dos indivíduos e a obstáculos e estímulos que orientam trajetórias que não são simplesmente diversas, mas desiguais nas vantagens e desvantagens, nas facilidades e dificuldades, presentes nas vidas que assim se definem.

Essa crítica não nasce com o feminismo e pode mesmo ser vista como um componente central das teorias que confrontam as desigualdades e injustiças que permanecem mesmo quando há avanços na conquista de condições formais de igualdade, e de igual liberdade, entre os indivíduos. O feminismo avança na apresentação de dimensões do problema que ganham centralidade, ou mesmo se tornam possíveis, porque seu ponto de partida é a posição e as experiências das mulheres.

Destaco, assim, duas frentes na crítica feminista.

A primeira assenta suas análises na constatação de que as condições em que as escolhas se dão são distintas para mulheres e homens – mas também entre as mulheres, variando de acordo com raça e classe social, como destacam em seus escritos bell hooks, Angela Davis, Patricia Hill Collins e Sueli Carneiro. O que é tomado como escolha numa perspectiva liberal e de mercado pode ser a expressão de restrições, em vez de ser a realização de decisões voluntárias, autônomas.

Na base do que diferencia mulheres e homens, nesse caso, está a divisão sexual do trabalho. A atribuição de responsabilidades diferenciadas para umas e outros implica que o conjunto de problemas considerado ao “escolher” uma ocupação pode ter especificidades – a consideração de se a rotina poderá ser acomodada à necessidade de cuidar das crianças ou de familiares idosos, por exemplo. Do mesmo modo, os filtros mobilizados direta ou indiretamente por aqueles que estão na posição de selecionar alguém para uma ocupação podem pressupor, como se fossem naturais, competências e disponibilidades que são diferenciadas porque a divisão sexual do trabalho implica acesso distinto de mulheres e homens a recursos, a tempo e ao desenvolvimento de aptidões.

A segunda dessas frentes não é descontínua em relação à primeira, mas permite a análise do problema de outro ângulo, o da produção social das preferências. As condições em que as escolhas se dão são efetivamente distintas, como discutido. Mas as escolhas são orientadas por mais do que restrições. As escolhas das mulheres podem expressar a socialização de gênero, o funcionamento de estereótipos que orientam julgamentos e estimulam determinados comportamentos, aumentando o custo de comportamentos rotulados como desviantes.

A divisão sexual do trabalho permanece importante aqui. A fusão entre a mulher e a maternidade está na base de valores e, ainda que menos hoje do que no passado recente, permanece em políticas e normas. Podemos considerar se não é nessa frente, que pode ser definida como a da ideologia, que se tece o contraponto às restrições que incidem sobre as mulheres, efetivamente, quando situadas na posição convencional de mães e de responsáveis pela vida doméstica. De um lado, estão os custos que a divisão sexual do trabalho implica, de outro aqueles que a fuga aos estereótipos impõe. Por isso me parece válido o horizonte normativo indicado por Johanna Brenner quando defende que são necessárias estratégias para promover a independência das mulheres como indivíduos e para dar suporte a elas como mães4 – sem, acrescento, confundir direitos individuais com políticas públicas de cuidado para as mulheres que desejarem ser mães.

Também podem ser incluídas nessa segunda frente questões relacionadas à objetificação e à violência contra as mulheres. A dupla moral sexual, que perpassa ambas, tem relação direta com as formas assumidas pela valorização da mulher na família e na maternidade, suspendendo sua condição – e muitas vezes seus direitos – de indivíduo. Isso não significa que a primeira frente não deva ser mobilizada na análise dessas temáticas: quando as mulheres escolhem permanecer em um casamento a despeito da violência sofrida, essa escolha pode expressar uma condição de vulnerabilidade que se define pelas restrições que a divisão sexual de trabalho implica.

Sem querer ampliar demais o rol dos problemas aqui incluídos, penso que é importante mencionar também os dispositivos da beleza. As mulheres escolhem equilibrar-se sobre saltos, arriscar-se nas intervenções cirúrgicas e químicas que prometem a maior proximidade dos ideais de beleza e juventude em voga? Parece difícil sustentar a ideia de livre-escolha quando meninas e mulheres são bombardeadas, ao longo das suas vidas, com imagens da beleza que prescrevem comportamentos, como já dizia Naomi Wolf em The beauty myth, de 1991, e as incitam a validar, com esses comportamentos, uma escala de valorização. Esses padrões, construídos simultaneamente pelo sexismo e pela busca de lucros no ramo dos cosméticos e das cirurgias estéticas, estimulam o entendimento de que ser vista vale mais do que ser ouvida, ser elogiada pela sua adequação vale bem mais do que ter posições e afirmar, com elas, uma relação de alguma forma singular com o mundo.

A capacidade para o individualização, assim como para o exercício da autonomia, também é socialmente significada e representada de modo que tem o gênero como elemento importante. As fronteiras entre ser vista como incompetente para autodirigir-se, segundo os padrões sociais e estereótipos vigentes, e ver a si mesma dessa forma nem sempre são claras. Essa continuidade pode estar na base da falta de habilidade das mulheres para reconhecer a si mesmas como pessoas livres ou, por outro lado, do entendimento de que são livres mesmo quando tomam parte em relações injustas e opressivas (em Gender and culture, Anne Phillips atribui a primeira concepção a Simone de Beauvoir e a segunda a Martha Nussbaum).

O gênero constitui os limites para o exercício da autonomia individual. As condições efetivas em que a individualidade se afirma envolvem, para as mulheres, a divisão sexual do trabalho e o sexismo que organiza julgamentos e incita comportamentos. A compreensão e a confrontação de seus padrões atuais são desafios incontornáveis para a teoria e a prática política democráticas.

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Para aprofundar a reflexão sobre o impacto do feminismo na teoria política e as diferentes matizes e debates em torno da luta e da teoria da emancipação das mulheres, recomendamos a leitura de Feminismo e política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, que oferece um inédito e didático panorama do feminismo hoje.
NOTAS
1. Essa discussão é desenvolvida n’O contrato sexual, mas está presente também na produção da autora sobre participação política desde seu primeiro livro, Participação e teoria democrática, de 1970, e em livros que, embora apresentem contribuições muito importantes, são bem menos conhecidos do público brasileiro, como The problem of political obligation: a critique of liberal theory, de 1979, e The disorder of women: democracy, feminism and political theory, de 1989.

2. Esse é um dos pontos principais na crítica feita por Nancy Fraser a Carole Pateman e ao uso da noção de patriarcado em “Beyond the master/subject model: on Carole Pateman’s The sexual contract”, um dos capítulos deJustice interruptus: critical reflections on the “postsocialist” condition, de 1997.
3. É algo que discuto também no livro Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática, publicado em 2013.
4. É algo que discute especialmente em “The politics of welfare reform”, quinto capítulo de Women and the politics of class, publicado em 2000.

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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).

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