[Daumier capta os medos burgueses da ocupação da esfera pública por parte das mulheres nesta charge da série
“Les Divorceuses”, de 1848. A imagem integra o livro Paris, capital da modernidade, de David Harvey.]
Por Flávia Biroli. / http://blogdaboitempo.com.br/
A centralidade da posição social das mulheres levou, nas
teorias feministas, à redefinição de questões clássicas no pensamento social e
político. Uma delas é a relação entre individualidade e agência.
A definição do indivíduo como valor e como objeto é um dos
traços que identificam a modernidade no Ocidente. Emerge em uma configuração
histórica singular, atravessada por relações de poder também específicas. O
indivíduo passaria, então, a ser uma referência normativa importante,
mobilizado como valor a ser defendido, ao qual se conectam noções fundamentais
ao pensamento e às instituições das sociedades modernas ocidentais, como
liberdade e privacidade. Seria mobilizado também como objeto de controle e
regulação, configurando a realidade física e psíquica sobre a qual recaem
proibições e incitações, tomam forma códigos e práticas.
O indivíduo que assim se configura não é a expressão de
qualquer pessoa ou de todas as pessoas, não corresponde a qualquer posição ou
codifica uma experiência comum.
Por essa razão, foi importante para o feminismo que a
história da construção do indivíduo moderno, com as normas que regem as
relações entre os indivíduos e as relações entre indivíduos e Estado, fosse
contada de novo. Analisada a partir do que nela foi suspenso ou marginalizado,
essa história tem as marcas das hierarquias existentes nas sociedades que
produziram as normas e instituições que protegem e regulam “os indivíduos”.
Nelas, as estruturas de autoridade estiveram assentadas sobre hierarquias de
classe, de raça e de sexo. Embora não seja possível considerar essas variáveis
separadamente – combinadas, organizam divisões que não se explicam quando se
isola uma delas –, a posição das mulheres expõe os limites da noção de
indivíduo que referenciou as regras do jogo. De um lado, sua individualidade
foi restrita como fundamento para a participação autônoma na sociedade, de
outro, foi definida como objeto de controles diferenciados daqueles que se
voltaram para os homens.
Obras importantes no pensamento feminista contemporâneo se
propuseram a contar novamente a história da construção da política moderna. Há
muita distância entre elas, nos pressupostos que mobilizam e nas interpretações
que afirmam, mas apresentam em comum uma correlação entre a posição
diferenciada dos indivíduos e a forma, também diferenciada, que a
individualidade e os direitos individuais assumiram para mulheres e homens.
Entre as obras que se destacaram nessa empreitada, menciono O contrato sexual,
de Carole Pateman, publicado pela primeira vez em 1988; Public man, private
woman: women in social and political thought, de autoria de Jean Bethke
Elshtain, de 1981; e Women in Western political thought, escrito por Susan Okin
e publicado em 1979.
É possível vê-las como aproximações distintas a um mesmo
problema, o do lugar reservado para as mulheres na construção moderna da
política, do indivíduo e da liberdade.
Por serem mulheres, sua individualidade esteve regulada por
códigos distintos daqueles que definiram as vidas dos homens. Assim, mesmo
considerando a enorme diferença na posição das mulheres burguesas e das
trabalhadoras, o sexo foi um elemento definidor: a relação entre indivíduo,
vontade, liberdade e responsabilidade foi – e é ainda – por ele condicionada.
A dualidade entre a esfera pública e a esfera privada,
característica do pensamento e das instituições liberais modernas, permitiu que
a liberdade fosse afirmada como definidora da condição civil do indivíduo. Ela
tomaria forma na esfera pública. Embora a ideia de que todos os homens livres –
ainda que profundamente desiguais em suas condições para aderir às regras do
jogo, ou para recusá-las, nas relações de trabalho ou nas normas que regem as
instituições políticas – se engajariam voluntariamente nas relações de que
tomam parte seja uma ficção que ultrapassa as divisões baseadas no sexo, a
posição das mulheres tem algo de específico. No pensamento e nas instituições
que organizaram o mundo moderno, elas foram excluídas até mesmo da ficção do contrato
por não terem lugar na vida pública, como discutiu Carole Pateman: a
naturalização de seu pertencimento à esfera privada definiria sua condição,
amplamente tolerada, de subordinação.
Na tradição liberal, uma das chaves para a afirmação de que
a condição civil dos indivíduos é a de liberdade é a noção de consentimento
voluntário. Ela é correlata à de livre-escolha, compondo mais do que um ideal,
a condição sine qua non para a legitimidade e justeza dos contratos e dos
acordos. É esse o ponto principal da crítica de Pateman, já mencionada, ao
falar dos contratos nas sociedades contemporâneas: o caráter voluntário das
escolhas pode ocultar, ou suspender como problema, as condições desiguais em
que essas escolhas se deram e o grau de submissão resultante de contratos
“livremente” firmados. Assim, mesmo que não exista exploração em um contrato
firmado voluntariamente, se ele permite relações de domínio e subordinação,
reduzindo a autonomia de uma das partes, há problemas do ponto de vista da
construção de uma sociedade democrática1.
O ponto é que quando os indivíduos escolhem sem ser
coagidos, isso não implica necessariamente níveis iguais de liberdade. A
equação liberdade é igual a ausência de constrangimentos é, no entanto,
fundante de algumas das principais correntes e argumentos no liberalismo.
“Escolho” engajar-me em relações de trabalho que envolvem altos graus de
exploração e nas quais sou remunerado aquém do que me permitiria condições
dignas de vida, mas isso não significa que exista justeza nas relações que
assim se firmam ou que essa escolha possa ser tomada como uma demonstração de
minha condição de liberdade. Podemos mesmo questionar se tem sentido recorrer à
noção de escolha em um caso como esse.
Para as mulheres, os limites da noção de – e das condições
para a – livre-escolha apresentam especificidades que vêm sendo tematizadas
pelas teorias e pelos movimentos feministas. As ocupações que assumem e o
trabalho que realizam na vida cotidiana doméstica estão longe de ser escolhas
voluntárias, ainda que não sejam assumidos em situações que possam ser
identificadas como de coação ou em contextos nos quais existam impedimentos
legais para a busca de outros caminhos. Nas sociedades ocidentais hoje, é
possível considerar um cenário em que as mulheres não sejam controladas –
coagidas – diretamente por homens específicos2 ao assumir toda, ou quase toda,
a carga do trabalho doméstico, no qual incluo o trabalho necessário para o
cuidado dos filhos. Também é possível considerar que diferentes tipos de ocupação
estão abertos a elas, não havendo proibições para que desempenhem atividades
tradicionalmente masculinas e que, não por acaso, são as que recebem melhor
remuneração. Ainda assim, as mulheres permanecem ligadas às atividades
entendidas como femininas, como as atividades domésticas não-remuneradas e as
atividades remuneradas que evocam essas últimas, como o trabalho cotidiano de
limpeza, produção dos alimentos, cuidado das crianças e dos idosos, educação
voltada para a infância. São, sem dúvida, atividades centrais ao
desenvolvimento e às boas condições da vida humana. Pela sua caracterização
ligada à domesticidade e às mulheres, porém, são aquelas que recebem menor
valorização social e remuneração, sendo essa uma das razões pelas quais o
rendimento médio das mulheres permanece inferior ao dos homens. São, também, as
que são exercidas em condições de maior precariedade.
O que define a orientação das mulheres para essas
atividades? O fato de que não existe coação ou impedimento implica que
“escolhem”? E a “escolha” implica engajamento voluntário?
As críticas feministas expõem o fato de que a agência dos
indivíduos na definição das suas vidas é sempre imperfeita, constrangida, mas é
desigualmente imperfeita3. Realiza-se de maneiras que correspondem não apenas a
impedimentos explícitos que se apresentam diferentemente aos indivíduos, mas
como desdobramento das desigualdades estruturais e dos valores e estigmas
socialmente ativos. Correspondem a inflexões no horizonte de possibilidades dos
indivíduos e a obstáculos e estímulos que orientam trajetórias que não são
simplesmente diversas, mas desiguais nas vantagens e desvantagens, nas
facilidades e dificuldades, presentes nas vidas que assim se definem.
Essa crítica não nasce com o feminismo e pode mesmo ser
vista como um componente central das teorias que confrontam as desigualdades e
injustiças que permanecem mesmo quando há avanços na conquista de condições
formais de igualdade, e de igual liberdade, entre os indivíduos. O feminismo
avança na apresentação de dimensões do problema que ganham centralidade, ou
mesmo se tornam possíveis, porque seu ponto de partida é a posição e as
experiências das mulheres.
Destaco, assim, duas frentes na crítica feminista.
A primeira assenta suas análises na constatação de que as condições
em que as escolhas se dão são distintas para mulheres e homens – mas também
entre as mulheres, variando de acordo com raça e classe social, como destacam
em seus escritos bell hooks, Angela Davis, Patricia Hill Collins e Sueli
Carneiro. O que é tomado como escolha numa perspectiva liberal e de mercado
pode ser a expressão de restrições, em vez de ser a realização de decisões
voluntárias, autônomas.
Na base do que diferencia mulheres e homens, nesse caso,
está a divisão sexual do trabalho. A atribuição de responsabilidades
diferenciadas para umas e outros implica que o conjunto de problemas
considerado ao “escolher” uma ocupação pode ter especificidades – a
consideração de se a rotina poderá ser acomodada à necessidade de cuidar das
crianças ou de familiares idosos, por exemplo. Do mesmo modo, os filtros
mobilizados direta ou indiretamente por aqueles que estão na posição de
selecionar alguém para uma ocupação podem pressupor, como se fossem naturais,
competências e disponibilidades que são diferenciadas porque a divisão sexual
do trabalho implica acesso distinto de mulheres e homens a recursos, a tempo e
ao desenvolvimento de aptidões.
A segunda dessas frentes não é descontínua em relação à
primeira, mas permite a análise do problema de outro ângulo, o da produção
social das preferências. As condições em que as escolhas se dão são
efetivamente distintas, como discutido. Mas as escolhas são orientadas por mais
do que restrições. As escolhas das mulheres podem expressar a socialização de
gênero, o funcionamento de estereótipos que orientam julgamentos e estimulam
determinados comportamentos, aumentando o custo de comportamentos rotulados
como desviantes.
A divisão sexual do trabalho permanece importante aqui. A
fusão entre a mulher e a maternidade está na base de valores e, ainda que menos
hoje do que no passado recente, permanece em políticas e normas. Podemos
considerar se não é nessa frente, que pode ser definida como a da ideologia,
que se tece o contraponto às restrições que incidem sobre as mulheres,
efetivamente, quando situadas na posição convencional de mães e de responsáveis
pela vida doméstica. De um lado, estão os custos que a divisão sexual do trabalho
implica, de outro aqueles que a fuga aos estereótipos impõe. Por isso me parece
válido o horizonte normativo indicado por Johanna Brenner quando defende que
são necessárias estratégias para promover a independência das mulheres como
indivíduos e para dar suporte a elas como mães4 – sem, acrescento, confundir
direitos individuais com políticas públicas de cuidado para as mulheres que
desejarem ser mães.
Também podem ser incluídas nessa segunda frente questões
relacionadas à objetificação e à violência contra as mulheres. A dupla moral
sexual, que perpassa ambas, tem relação direta com as formas assumidas pela
valorização da mulher na família e na maternidade, suspendendo sua condição – e
muitas vezes seus direitos – de indivíduo. Isso não significa que a primeira
frente não deva ser mobilizada na análise dessas temáticas: quando as mulheres
escolhem permanecer em um casamento a despeito da violência sofrida, essa
escolha pode expressar uma condição de vulnerabilidade que se define pelas
restrições que a divisão sexual de trabalho implica.
Sem querer ampliar demais o rol dos problemas aqui
incluídos, penso que é importante mencionar também os dispositivos da beleza.
As mulheres escolhem equilibrar-se sobre saltos, arriscar-se nas intervenções
cirúrgicas e químicas que prometem a maior proximidade dos ideais de beleza e
juventude em voga? Parece difícil sustentar a ideia de livre-escolha quando
meninas e mulheres são bombardeadas, ao longo das suas vidas, com imagens da
beleza que prescrevem comportamentos, como já dizia Naomi Wolf em The beauty
myth, de 1991, e as incitam a validar, com esses comportamentos, uma escala de
valorização. Esses padrões, construídos simultaneamente pelo sexismo e pela
busca de lucros no ramo dos cosméticos e das cirurgias estéticas, estimulam o
entendimento de que ser vista vale mais do que ser ouvida, ser elogiada pela
sua adequação vale bem mais do que ter posições e afirmar, com elas, uma
relação de alguma forma singular com o mundo.
A capacidade para o individualização, assim como para o
exercício da autonomia, também é socialmente significada e representada de modo
que tem o gênero como elemento importante. As fronteiras entre ser vista como
incompetente para autodirigir-se, segundo os padrões sociais e estereótipos vigentes,
e ver a si mesma dessa forma nem sempre são claras. Essa continuidade pode
estar na base da falta de habilidade das mulheres para reconhecer a si mesmas
como pessoas livres ou, por outro lado, do entendimento de que são livres mesmo
quando tomam parte em relações injustas e opressivas (em Gender and culture,
Anne Phillips atribui a primeira concepção a Simone de Beauvoir e a segunda a
Martha Nussbaum).
O gênero constitui os limites para o exercício da autonomia
individual. As condições efetivas em que a individualidade se afirma envolvem,
para as mulheres, a divisão sexual do trabalho e o sexismo que organiza
julgamentos e incita comportamentos. A compreensão e a confrontação de seus
padrões atuais são desafios incontornáveis para a teoria e a prática política
democráticas.
***
Para aprofundar a reflexão sobre o impacto do feminismo na teoria política e as diferentes matizes e debates em torno da luta e da teoria da emancipação das mulheres, recomendamos a leitura de Feminismo e política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, que oferece um inédito e didático panorama do feminismo hoje.
NOTAS
1. Essa discussão é desenvolvida n’O contrato sexual, mas está presente também na produção da autora sobre participação política desde seu primeiro livro, Participação e teoria democrática, de 1970, e em livros que, embora apresentem contribuições muito importantes, são bem menos conhecidos do público brasileiro, como The problem of political obligation: a critique of liberal theory, de 1979, e The disorder of women: democracy, feminism and political theory, de 1989.
2. Esse é um dos pontos principais na crítica feita por Nancy Fraser a Carole Pateman e ao uso da noção de patriarcado em “Beyond the master/subject model: on Carole Pateman’s The sexual contract”, um dos capítulos deJustice interruptus: critical reflections on the “postsocialist” condition, de 1997.
3. É algo que discuto também no livro Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática, publicado em 2013.
4. É algo que discute especialmente em “The politics of welfare reform”, quinto capítulo de Women and the politics of class, publicado em 2000.
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).
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