por Eduardo Galeano / http://operamundi.uol.com.br/
Muçulmanos,
judeus, mulheres, homossexuais, índios, negros, estrangeiros e pobres: em
ensaio de 2005, escritor discorre sobre as diferentes faces do Demônio,
descritas pela antítese de cada um desses 'anjos do mal'
Esta
é uma modesta contribuição à guerra do Bem contra o Mal. Entre os diversos
semblantes do Príncipe das Trevas, só estão os demônios que existem há muito,
muito tempo, e que há séculos ou milênios continuam ativos no mundo.
O Demônio é
mulçumano
A
experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa
do Céu. Benditos sejam os inimigos
Dante
já sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos
círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”,
celebrou o poeta em A Divina Comédia , “desde a barba até a parte inferior do
ventre...”. Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que
atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram
um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes
das lanças, das espadas e dos arcabuzes.
Hoje
em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas.
Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as
guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do
inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos.
Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular,
os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam
uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi
reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o
grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão,
que ia comer todas as crianças.
Lá
pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os
demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da
perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e
vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.
Muita
água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno.
Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro
dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar
seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e
a bomba que carregam debaixo do braço.
O Demônio é
judeu
A
colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de
perseguição e humilhação
Hitler
não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de
Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram
também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode
ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências
do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque
se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se
dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles
aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos
militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras
pestes.
A
Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu
Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem
obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo
o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário. Acusados de
servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em
expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram sucessivamente
expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças,
alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e
também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na
Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há
quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram.
A
colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de
perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu.
Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa.
O Demônio é
mulher
“Toda
a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”
O
livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o
mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.
Dois
inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido
do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a
Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século
XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em
vários países.
Os
autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres
em estado natural: “Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é
insaciável”. E demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é
fétido e a companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de
serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos
incautos: “A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração,
uma rede; e correias, seus braços”.
Esse
tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da
Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à
tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque
só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das
bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.
O
papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: - As
mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a
perdição dos homens.
Oito
séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva.
O
mesmo pânico faz com que os muçulmanos fundamentalistas as mutilem o sexo e
lhes cubram a cara.
E
o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia
sussurrando: “Graças, Senhor, por não me ter feito mulher”.
O Demônio é
homossexual
Em
nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao
suplício ou a morte pelo delito de sê-lo
Desde
1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram
queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do
inferno, que surgiam do fogo.
Na
América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros.
Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães,
acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o
Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no
horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a
homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em
alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.
Essa
provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista
dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam
índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava
a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a
naturalidade.
Nem
na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os
muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo.
Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.
Na
Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a
natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos
de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube.
Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram
os ciganos exterminados.
No
dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram
“retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram
mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os
homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que
ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.
O Demônio é
índio
Os
conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras
várias riquezas que o Demônio havia usurpado
Os
conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado
refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e
noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam
nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a
terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que
chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que
ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais,
que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem
tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e
que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros.
E crus.
A
conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado
estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam
devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela
amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho
de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra.
Os
conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras
várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o
tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de
cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para
impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um
arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra.
O Demônio é
negro
Supunha-se
que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para
o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler
Como
a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.
Em
seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar.
“Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um
macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região
que os visse acreditaria que eram demônios”.
Três
séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em
chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza
de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma
vez ficou ao lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu
corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de
orações e queimou os textos do ofício religioso.
Uma
breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI,
XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela
violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o
caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no
peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo
espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os
séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e
café e recebia Bíblias.Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura
da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas
a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.
O Demônio é
estrangeiro
O
imigrante está disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a
queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças
O
“culpômetro” indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o
“perigosímetro” acende a luz vermelha. Se for pobre, jovem e não for branco, o
intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira vista, por indigência,
inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é
pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a
trabalhar o dobro em troca da metade.
O
pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os
medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre
disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do
salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.
Em
outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses
mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história
como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da
barbárie.
Agora
a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção
ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de
países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção
de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das
desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma
de assalto a Civilização.
O Demônio é pobre
Os
bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos
Se
lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em
cada um se esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos
sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando
os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.
Submetidas
a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão
encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas
sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso
tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas
dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes.
Estado
de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está
estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum
assalto, seqüestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos,
remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São
vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas
sem dentes, sem rumo e sem destino.
Ninguém
os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando,
modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os
compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de
nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários,
assassinam empregos e sequestram países.
Ensaio publicado originalmente no site da revista diplomatique.org.br/
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