Léa Maria Aarão Reis / www.cartamaior.com.br
Quando se refere à nossa espécie,
a frase do mineiro Sebastião Salgado, um ícone vivo da fotografia do nosso
tempo, permeia o espírito do festejado documentário sobre sua extraordinária
obra, O Sal da Terra (The salt of the earth, de 2014), que há mais de três
meses lota cinemas nas principais cidades do Brasil.
“Somos um animal muito feroz;
somos terríveis,” diz Salgado em uma de suas intervenções, uma espécie de guia
para o roteiro do filme que ampliam e aprofundam o drama contido nas imagens
que produz. Dirigido pelo alemão Wim Wenders, outro ícone do cinema
contemporâneo (autor de Buena Vista Social Club), e pelo jovem filho de
Sebastião, também fotógrafo, Juliano Ribeiro Salgado, este documentário
emociona e choca até os espíritos mais desencantados com a natureza humana que
parece viver, hoje, com seu lado sombrio, os últimos resquícios de piedade e
benevolência na sua experiência.
“Photo significa luz, em grego”,
lembra Wenders no filme, ”e o fotógrafo é alguém que desenha com a luz no nosso
mundo de sombras. Quando conheci as fotos de Salgado, por acaso, em uma galeria
alemã, percebi que o autor era alguém que se importava com os outros. Tive
então o forte impulso de me aproximar dele.”
Foi assim que se iniciou a
amizade entre o cineasta alemão casado com uma fotógrafa profissional e
Sebastião Salgado. Ele hoje tem 71 anos, nasceu em Minas Grais, em Aimorés, foi
criado na fazenda de gado do pai, na beira do Rio Doce, e quando moço se exilou
em Paris por conta da ditadura. É economista por formação. Na mira da lente da
sua Canon, o aventureiro-viajante e testemunha da nossa época acompanhou os grandes êxodos originários de
deslocamentos forçados de populações, registrou guerras pelo poder através do
planeta e, nelas, assassinatos gratuitos de milhares de civis; a devastação da
natureza, a destruição de florestas e a poluição oceanos, a crueldade dos
genocídios que, - isto é o pior -, se perpetuam apesar das denúncias cada vez
mais vazias e descartáveis e dos protestos oficiais risíveis.
Dividido em capítulos intitulados
Outras Américas, Sahel, Trabalhadores, Imigrantes, Êxodos, Instituto Terra - o
filme tem inicio com as célebres e impressionantes imagens de Salgado
retratando o delírio da corrida do ouro em Serra Pelada, nos anos 80. “Parecia
uma Babel”, ele descreve, falando devagar e baixinho como é do seu feitio. “Era
como as minas do rei Salomão. Cinquenta mil pessoas murmurando, subindo e
descendo as escadas precárias de madeira montadas no abismo, 50, 60 vezes ao
dia. Escravos do desejo de enriquecer, com o ouro como que entranhado na alma.
Parecia o início do mundo.”
Nesta série, Trabalhadores,
imagens impressionantes mostram também os poços de petróleo do Kuwait
incendiados por Sadam Hussein. “Ficávamos durante 24 horas seguidas sem ver a
luz do sol tal o volume de fumaça negra que subia no ar.”
O fascínio do filme está não
apenas no respeito e na delicadeza com que Wenders trata o precioso material
que tem nas mãos. Caso por exemplo das sequências dirigidas anteriormente por
Juliano, com surpreendentes imagens de uma das últimas comunidades de morsas
existentes no planeta, em uma ilha deserta do Ártico. “No Ártico não há
horizonte,” comenta Salgado.
A apresentação das suas próprias
fotos, na longa entrevista-guia que concede a Wenders, oferece uma dimensão
aprofundada do seu trabalho de 40 anos. Desde que deixou o Banco Mundial e a
Organização Mundial do Café, em Paris e Londres quando estudou e analisou os
mercados mundiais, comerciais e industriais que regem o mundo, antes de se
profissionalizar como fotógrafo.
“Não se pode construir um futuro
sem pensar na nossa origem,” diz Salgado, no doc. “As luzes da minha fotografia
vieram da fazenda do meu pai e a forma barroca do meu trabalho veio de Minas
Gerais. Eu moro em Paris, mas nunca saí de Minas.”
Sua longa viagem é acompanhada
por Wim Wenders e começa com a identificação, quando jovem, com a Teologia da
Libertação, no Brasil, e com o começo dos movimentos dos sem terra, no nordeste
brasileiro. Depois, os Andes e as montanhas da América Latina, a “América
Latina profunda onde a vida e a morte estão sempre próximas porque para as
comunidades que conheci no continente, morrer é uma continuação da vida”.
O périplo prossegue nas imagens
dos saragurus, no sul do Equador; dos mrixes e dos tarahumares no México e,
anos mais tarde, na África, no Sahel. Fotografando os coptas da Etiópia (fotos
impressionantes da política brutal no norte do país) e, seguindo rastros dos
Médicos Sem Fronteiras, os genocídios africanos e o massacre de tutsis em
Ruanda. “Certa vez, percorremos 150 quilômetros vendo corpos, cadáveres, na
beira da estrada; isto dá a dimensão daquela catástrofe.”
“Depois de ver também os 120 mil
mortos na minha última viagem a Ruanda, em 1990,” diz Salgado,“ eu saí da
África pensando como a espécie humana é feroz. Saí de lá sem acreditar mais na
salvação da humanidade. Achando que não
merecemos viver.”
Foi Lélia, sua mulher, arquiteta
e companheira da vida toda quem ajudou o marido a se refazer. “Nós começamos a
ir mais vezes para a fazenda para melhorar
seu astral porque foi um momento dele de muita tristeza com o mundo,”
ela explica no filme.” E foi de Lélia a ideia de replantar a Mata Atlântica na fazenda
que tinha sido do pai de Sebastião. As imagens da região, antes e de depois do
projeto batizado como Instituto Terra, são emocionantes. Mais de dois milhões
de árvores foram plantadas numa área antes devastada. Para Sebastião, o retorno
às origens foi importante depois da sua última viagem a Ruanda.
A partir de então Salgado passou
a fotografar a natureza e animais. A mostra organizada por Lélia com essas
imagens, com o título de Gênesis, que levou multidões ao Jardim Botânico do Rio
de Janeiro, é uma visão mais otimista do fotógrafo. “É uma carta de amor ao planeta que ele tinha visto
devastado”, observa Wenders.
Alguém observou que em O Sal da
Terra há uma “serena gravidade e contenção acompanhando cada imagem”. É o
estilo de Wenders. Ele não esconde a imensa admiração pelo seu personagem,
desvela a paixão dele pela vida, pelo ser humano, pelos animais e a natureza.
Nós diríamos que o fotógrafo que
já foi acusado de estetizar a miséria – na época ele respondeu: “Nossa
linguagem é necessariamente estética. Criticar isso é como criticar um escritor
por sua forma de escrever” -, hoje convive melhor com os animais e com a
natureza. Melhor do que com seres humanos, que afinal são o sal da terra tanto
para alimentá-la como para destruí-la.
*O Sal da Terra foi indicado ao
Oscar de documentário, este ano. Recebeu o Prêmio do Júri na seção Un Certain
Regard do Festival de Cannes 2014 e ganhou o premio francês César de melhor
documentário. Pode ser visto na íntegra e legendado na internet ou alugado nos serviços
competentes da televisão.
Créditos da foto: Reprodução/O
Sal da Terra
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