Seja qual for o desfecho do plebiscito deste
domingo, é o método o que mais importa à encruzilhada do Brasil nos dias que
correm.
por: Saul Leblon ] www.cartamaior.com.br
Levar a lógica dos mercados financeiros a um
plebiscito é algo de que nunca se tinha ouvido falar antes.
Mas foi justamente isso o que ocorreu na Grécia
neste domingo.
Independente do resultado das urnas - a essa altura
já sabido - é forçoso reconhecer: um anel poderoso da blindagem neoliberal foi
rompido na cena política.
E isso não é um detalhe: é um método.
O que ele ensina é que a única opção à tirania
financeira é submeter o mercado ao escrutínio da democracia.
Na crise de 2008, a brava Islândia já havia
decidido o destino de seus bancos - um buraco especulativo dez vezes superior
ao PIB do país - a um plebiscito.
Entre sacrificar a nação ou a banca, a decisão foi
salvar a nação e deixar o rentismo falir.
A abrangência e o impacto daquela consulta, porém,
foi menor. A pequena nação de 320 mil habitantes - que se recuperou de maneira
formidável e hoje desfruta de pleno emprego - sequer pertencia ao euro.
Foi tratada como um pitoresco ponto fora da curva
pelo colunismo de mercado.
O que a Grécia fez agora é de superior importância
e vai muito além do pitoresco.
Ela resgatou o princípio segundo o qual política é
economia concentrada na expressão mais direta dos conflitos de classe de uma
sociedade.
Seu inestimável exemplo foi justamente dar
transparência àquilo que as ideias dominantes de nossa época lograram mascarar.
Ou seja, a farsa que empresta aos interesses plutocráticos da finança a
condição de uma ciência acima dos conflitos sociais e econômicos.
Reforçar a blindagem a-histórica do capitalismo, de
modo a cegar os olhos para a relação de poder que lhe é intrínseca, foi uma das
maiores vitórias do neoliberalismo em nosso tempo.
Para consumar esse abastardamento, ademais de se
atribuir à economia uma autossuficiência regulatória que ela não tem, o
neoliberalismo cuidou de aprofundar a interferência do dinheiro no sentido
inverso.
O esforço obstinado de Eduardo Cunha para legitimar
a presença do dinheiro empresarial nas campanhas eleitorais é um emblema dessa
inversão dos papéis, com o sotaque golpista que marca a urgência brasileira
nesse momento.
Que isso tenha acontecido em meio a investigações
de corrupção cuja origem reside justamente no intercurso entre empresas e
partidos não é apenas um escárnio.
É a força do sistema corruptor do dinheiro impondo
a sua supremacia na vida do país de forma explícita, quase obscena, nesse
momento.
A dissonância aberta pela Grécia não é pequena.
Sobretudo, porém, não deve ser avaliada pelas
forças progressistas brasileiras apenas com base no resultado efêmero do
plebiscito deste domingo.
Seja qual for o seu desfecho, é o método o que mais
importa à encruzilhada do país nos dias que correm.
Ou não foi justamente a equivocada decisão de
endossar a ‘objetividade’ dos mercados na definição dos ajustes que deveriam
ter sido repactuados politicamente, que levou ao afunilamento golpista atual?
A opção pela estratégia publicitária nas eleições
de 2014 (criticada então neste espaço, e que quase levou à derrota da candidatura
Dilma) subestimou a capacidade de luta e discernimento do protagonista social
que que poderia fazê-lo.
Negligenciou-se a força e a centralidade política
da tomada de consciência histórica de 60 milhões de brasileiros que saíram da
miséria e da pobreza e ascenderam na pirâmide da renda no ciclo de 12 anos de
governos progressistas.
Ao invés de ser corrigido, o equívoco eleitoral se
aprofundou uma vez instalada o novo mandato.
A um centurião dos mercados foi dada carta branca
para proceder a ajustes cuja pertinência e ponderação só teriam viabilidade se
negociados com as forças sociais do país.
A frente de esquerda Syriza não cometeu esse erro;
pode pagar caro por sua ousadia, é verdade.
Mas não tão caro a ponto de ver esfarelar a
confiança de suas bases em sua coerência.
Não tão caro a ponto de, eventualmente derrotada no
referendo, perder o vigor representativo para uma volta ao poder até com maior
força, quem sabe.
É a emergência ameaçadora dessa força - não os
bilhões de euros em questão no calote grego - que explica a determinação da
troika (FMI, BCE e Comissão do Euro) de não permitir a consumação de um acordo
favorável ao governo do primeiro ministro Alexis Tsipras.
A sequência política antecedente ao plebiscito
ilumina essa hierarquia com clareza.
Vejamos:
1. Em 21 de junho, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude
Juncker, e o primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, chegaram a um esboço de
acordo que gerou euforia nos mercados;
2. Em 23 de junho, tudo havia ruído. O que se
passou nessas 48 horas é a pergunta que analistas isentos se fazem em
diferentes veículos;
3. A maioria atribui ao FMI, aos falcões
germânicos e a governos reacionários do
euro que vergastaram seus povos, Espanha e Portugal, por exemplo, o veto ao acordo favorável à Grécia. Não por
divergências intransponíveis em relação a valores. Não. Acima de tudo porque
uma vitória do Syriza abriria o
precedente encorajador a novos hereges em marcha. Caso do Podemos espanhol, por
exemplo;
4. O argumento é corroborado matematicamente:
- cálculos do Royal Bank of Scotland, divulgados
pelo jornal Valor, estimam que a soma
total das dívidas pendentes no imbróglio grego é de 537 bilhões de
euros;
- se o país saísse do euro, as perdas para os
credores seriam de 234 bi de euros (2,4% do PIB do euro);
- todavia, se lograsse uma reestruturação, como
reivindica o Syriza, trazendo a dívida
de 200% do PIB para 100% dele, com o
perdão do restante, a perda seria de apenas
1,4% do PIB da zona do euro;
5. Estudos do próprio FMI divulgados na 6ª feira
admitem que a dívida da Grécia é impagável, qualquer que seja o grau de
sacrifício que venha a ser imposto a sua população;
6. De acordo com o estudo, vazado sem a assinatura
da direção do FMI, a dívida grega deveria
ser abatida em 30%, ademais de se assegurar uma carência de 20 anos para
iniciar o pagamento restante. Qualquer
‘ajuste’ sem esse requisito é insustentável.
Tudo isso é muito, muito próximo do que argumenta e
reivindica o governo Syriza.
Mas nunca lhe foi oferecido na mesa de negociações.
Por quê?
Justamente porque a vitória da democracia grega
implodiria uma das mais eficazes operações ideológicas das últimas décadas.
Essa que
apresenta a economia como um enclave autônomo, esfericamente subordinado
às leis naturais dos livres mercados.
A serviço dessa mesma assepsia histórica vicejam no
Brasil as editorias de economia e o colunismo dos vulgarizadores do capital
metafísico, esse que em textos abestalhados de tanta toxina neoliberal,
apresenta os desequilíbrios estruturais
do desenvolvimento como mera inépcia do lulopopulismo.
Essa lixeira histórica e ética prendeu a respiração diante da odisseia do
país que mais longe levou a politização
da disjuntiva em torno da qual se debate
a luta pelo desenvolvimento em
nosso tempo: a economia deve trabalhar pela sociedade ou contra ela para servir
a banqueiros e rentistas?
A transformação da pergunta em uma disputa política
aberta e explícita é uma vitória da
Grécia e uma derrota antecipada da ideologia mercadista urbi et orbi.
Não por acaso, uma gigantesca operação de asfixia
foi acionada para impedir que esse levante se consumasse no plebiscito deste
domingo.
A sociedade que já perdeu 1/5 de quase tudo,
empregos, salários, aposentadorias, leitos hospitalares etc foi explicitamente ameaçada de confinamento
financeiro e político, se insistisse em reinventar seu contrato social no
escrutínio proposto pelo primeiro ministro, Alexis Tsipras.
A 48 horas do referendo, na sexta-feira, o
sindicato dos banqueiros da Grécia lançou um comunicado coercitivo para dizer
que o sistema dispunha de apenas um bi
de euros em caixa --insuficiente para prover a liquidez do mercado no day after
do escrutínio, quando o país ficaria órfão se votasse ‘não’ ao arrocho.
Grandes empresas e redes de serviços –postos de
gasolina, por exemplo— anteciparam-se para vender exclusivamente cash a uma
população sem caixa, confrontando-a assim com a prefiguração do colapso
acenado.
Na antevéspera do plebiscito, as principais redes
de televisão, as Globos de lá, dedicaram 46 minutos à cobertura dos comícios
favoráveis ao arrocho e apenas oito minutos às concentrações pelo ‘não’.
Autoridades da União Européia, governantes
conservadores, bancos e consultorias –compulsivamente ecoados pelo dispositivo
midiático local—fecharam o cerco com ameaças, coações e chantagens.
Consumou-se assim uma operação de propaganda de guerra de
virulência equivalente ao cerco do exército branco contra a Rússia
revolucionária, em 1917.
‘O que estão fazendo com a Grécia tem um nome:
terrorismo”, disse o ministro Yannus Varoufakis, autor também da frase
síntese da polaridade entre a coerência e a coerção:
‘Prefiro cortar um braço a assinar um acordo que não contemple a reestruturação
da dívida da Grécia'.
Independente do veredito do domingo, portanto, a
heresia já terá desempenhado a missão pedagógica de produzir um clarão capaz de
iluminar o imaginário social para muito além das fronteiras gregas.
Para que servem as urnas afinal, se um governo, e o
projeto por elas escolhidos, é literalmente destruído no momento seguinte
‘pelas imposições dos mercados' assim afrontados?
Ou para ser mais explícito diante da urgência do
Brasil nos dias que correm: para que servem
se, uma vez eleito, o governante é coagido pelo cerco do dinheiro a
fazer concessões que corroem os vínculos de confiança com sua principal base de
apoio, tornando-se ainda mais vulnerável às imposições dos mercados e dos
interesses determinados a derrubá-lo?
A força e a tragédia do povo grego reside em
particularizar a heresia em relação à encruzilha diante da qual muitos hesitam na vã esperança de obter a indulgência dos
mercados.
Um dos principais jornais brasileiros, a Folha,
dedica seu caderno de Política, na edição deste domingo, a avaliar as
possibilidades, preferências e métodos mais adequados à derrubada do governo da
Presidenta Dilma Rousseff, eleita com 54 milhões de votos há apenas e
longínquos oito meses.
A principal batalha do nosso tempo, portanto, aqui
ou na Grécia, fique claro, não se trava em torno de cifras ou adequações
macroeconômicas em si. Mas, sim, em se
preservar ou não o poder de dominação dos detentores das cifras.
O câmbio defasado no caso brasileiro - um exemplo
de problema real que sucateou parte da indústria - não é tão grave para a
plutocracia local e global quanto a consolidação de um poder progressista no
comando do Estado.
Derruba-lo é uma prioridade que antecede e
independe da genuflexão macroeconômica – ou as concessões suicidas em curso já
teriam erradicado o furor golpista.
Não é
propriamente uma trégua que se
assiste no Brasil nesse momento.
A resposta, portanto, é de outra natureza.
Trata-se de
trazer a economia para a política e de levar a política para a economia.
Ou seja, repactuar o desenvolvimento com uma nova correlação de forças.
É essa fusão que pode devolver à democracia um
poder ordenador que a sociedade cedeu ao
mercado.
Não se negue à economia leis próprias,
circunstâncias limitadoras e incertezas a exigir gestão, equilíbrio e bom
senso.
Mas sancionar a não ingerência da política nas
decisões do desenvolvimento é tão
somente uma operação suicida de entorpecimento social para preservar e engordar
interesses sabidos.
Nas crises cíclicas do sistema, quando se
descarrega sobre a sociedade um fardo de sacrifícios dificilmente vendável como
ciência ou fatalidade, o labor dessa catequese
é afrontado pela natureza crua das coisas.
Democracia e capitalismo deparam-se então em pé de
igualdade com a disputa pelo destino da nação e do seu desenvolvimento.
Atenas se transformou na capital dessa transgressão
nos últimos meses.
O nó górdio que impede o Brasil de extrair as
devidas lições dessa experiência é a rala contrapartida de organização coletiva
para levar a cabo a luta por uma outra agenda de desenvolvimento.
Não há espaço para mágicas na história.
O país não sairá do atoleiro se o sujeito do
processo, aquele do qual depende o respaldo
para enfrentar a coerção mercadista, permanecer alheio aos
conflitos que determinarão o seu destino.
O salto em direção a isso hoje no Brasil chama-se
frente progressista e democrática.
E a pergunta que ela enseja às organizações
populares é curta e grossa:
"o que mais precisa acontecer aqui para que as
lideranças sociais anunciem um comitê unificado contra o golpe e uma agenda
política de repactuação do desenvolvimento?"
Mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas.
Enquanto há tempo.
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