Paulo Donizetti de Souza, Rede Brasil Atual
Violência repressiva,
privatização e a reforma universitária que fez uma educação voltada à
fabricação de mão de obra, são, na opinião da filósofa Marilena Chauí,
professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, as cicatrizes da ditadura no ensino universitário do país. Chauí relembrou
as duras passagens do período e afirma não mais acreditar na escola como espaço
de formação de pensamento crítico dos cidadãos, mas sim em outras formas de
agrupamento, como nos movimentos sociais, movimentos populares, ONGs e em
grupos que se formam com a rede de internet e nos partidos políticos.
Chauí, que “fechou as portas para
a mídia” e diz não conceder entrevistas desde 2003, falou à Rede Brasil Atual
após palestra feita no lançamento da Escola 28 de Agosto, iniciativa do
Sindicato dos Bancários de São Paulo que elogiou por projetar cursos de administração
que resgatem conteúdos críticos e humanistas dos quais o meio universitário
contemporâneo hoje se ressente.
Quais foram os efeitos do regime
autoritário e seus interesses ideológicos e econômicos sobre o processo
educacional do Brasil?
Vou dividir minha resposta sobre
o peso da ditadura na educação em três aspectos. Primeiro: a violência
repressiva que se abateu sobre os educadores nos três níveis, fundamental,
médio e superior. As perseguições, cassações, as expulsões, as prisões, as torturas,
mortes, desaparecimentos e exílios. Enfim, a devastação feita no campo dos
educadores. Todos os que tinham ideias de esquerda ou progressistas foram
sacrificados de uma maneira extremamente violenta. Em segundo lugar, a
privatização do ensino, que culmina agora no ensino superior, começou no ensino
fundamental e médio. As verbas não vinham mais para a escola pública, ela foi
definhando e no seu lugar surgiram ou se desenvolveram as escolas privadas. Eu
pertenço a uma geração que olhava com superioridade e desprezo para a escola
particular, porque ela era para quem ia pagar e não aguentava o tranco da
verdadeira escola. Durante a ditadura, houve um processo de privatização, que
inverte isso e faz com que se considere que a escola particular é que tem um ensino
melhor. A escola pública foi devastada, física e pedagogicamente,
desconsiderada e desvalorizada.
E o terceiro aspecto?
A reforma universitária. A
ditadura introduziu um programa conhecido como MEC-Usaid, pelo Departamento de
Estado dos Estados Unidos, para a América Latina toda. Ele foi bloqueado
durante o início dos anos de 1960 por todos os movimentos de esquerda no
continente, e depois a ditadura o implantou. Essa implantação consistiu em
destruir a figura do curso com multiplicidade de disciplinas, que o estudante
decidia fazer no ritmo dele, do modo que ele pudesse, segundo o critério
estabelecido pela sua faculdade. Os cursos se tornaram sequenciais. Foi
estabelecido o prazo mínimo para completar o curso. Houve a
departamentalização, mas com a criação da figura do conselho de departamento, o
que significava que um pequeno grupo de professores tinha o controle sobre a
totalidade do departamento e sobre as decisões. Então você tem centralização.
Foi dado ao curso superior uma característica de curso secundário, que hoje
chamamos de ensino médio, que é a sequência das disciplinas e essa ideia
violenta dos créditos. Além disso, eles inventaram a divisão entre matérias
obrigatórias e matérias optativas. E, como não havia verba para contratação de
novos professores, os professores tiveram de se multiplicar e dar vários
cursos.
Houve um comprometimento da
inteligência?
Exatamente. E os professores,
como eram forçados a dar essas disciplinas, e os alunos, a cursá-las, para
terem o número de créditos, elas eram chamadas de “optatórias e obrigativas”,
porque não havia diferença entre elas. Depois houve a falta de verbas para
laboratórios e bibliotecas, a devastação do patrimônio público, por uma
política que visava exclusivamente a formação rápida de mão de obra dócil para
o mercado. Aí, criaram a chamada licenciatura curta, ou seja, você fazia um
curso de graduação de dois anos e meio e tinha uma licenciatura para lecionar.
Além disso, criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos os
graus do ensino. Na universidade, havia professores que eram escalados para dar
essa matéria, em todos os cursos, nas ciências duras, biológicas e humanas. A
universidade que nós conhecemos hoje ainda é a universidade que a ditadura
produziu.
Essa transformação conceitual e
curricular das universidades acabou sendo, nos anos de 1960, em vários países,
um dos combustíveis dos acontecimentos de 1968 em todo mundo.
Foi, no mundo inteiro. Esse é o
momento também em que há uma ampliação muito grande da rede privada de
universidades, porque o apoio ideológico para a ditadura era dado pela classe
média. Ela, do ponto de vista econômico, não produz capital, e do ponto de
vista política, não tem poder. Seu poder é ideológico. Então, a sustentação que
ela deu fez com que o governo considerasse que precisava recompensá-la e
mantê-la como apoiadora, e a recompensa foi garantir o diploma universitário
para a classe média. Há esse barateamento do curso superior, para garantir o
aumento do número de alunos da classe média para a obtenção do diploma. É a
hora em que são introduzidas as empresas do vestibular, o vestibular unificado,
que é um escândalo, e no qual surge a diferenciação entre a licenciatura e o
bacharelato. Foi uma coisa dramática, lutamos o que pudemos, fizemos a resistência
máxima que era possível fazer, sob a censura e sob o terror do Estado, com o
risco que se corria, porque nós éramos vigiados o tempo inteiro. Os jovens hoje
não têm ideia do que era o terror que se abatia sobre nós. Você saía de casa
para dar aula e não sabia se ia voltar, não sabia se ia ser preso, se ia ser
morto, não sabia o que ia acontecer, nem você, nem os alunos, nem os outros
colegas. Havia policiais dentro das salas de aula.
Houve uma corrente muito forte na
década de 1960, composta por professores como Aziz Ab’Saber, Florestan
Fernandes, Antônio Cândido, Maria Vitória Benevides, a senhora, dentre outros,
que queria uma universidade mais integrada às demandas da comunidade. A senhora
tem esperança de que isso volte a acontecer um dia?
Foi simbólica a mudança da
faculdade para o “pastus”, não é campus universitário, porque, naquela época,
era longe de tudo: você ficava em um isolamento completo. A ideia era colocar a
universidade fora da cidade e sem contato com ela. Fizeram isso em muitos
lugares. Mas essa sua pergunta é muito complicada, porque tem de levar em
consideração o que o neoliberalismo fez: a ideia de que a escola é uma formação
rápida para a competição no mercado de trabalho. Então fazer uma universidade
comprometida com o que se passa na realidade social e política se tornou uma
tarefa muito árdua e difícil.
Não há tempo para um conceito
humanista de formação?
É uma luta isolada de alguns, de
estudantes e professores, mas não a tendência da universidade.
Hoje, a esperança da formação do
cidadão crítico está mais para as possibilidades de ajustes curriculares no
ensino fundamental e médio? Ou até nesses níveis a educação forma estará
comprometida com a produção de cabeças e mãos para o mercado?
Na escola, isso, a formação do
cidadão crítico, não vai acontecer. Você pode ter essa expectativa em outras
formas de agrupamento, nos movimentos sociais, nos movimentos populares, nas
ONGs, nos grupos que se formam com a rede de internet e nos partidos políticos.
Na escola, em cima e em baixo, não. Você tem bolsões, mas não como uma
tendência da escola.
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