Qual será a distância entre as
leis brasileiras e a realidade da esmagadora população de idosos brasileiros
que não gozam da velhice dourada?
Léa Maria Aarão Reis – www.cartamaior.com.br
Há um direito e um avesso da vida
dos idosos brasileiros. Na esfera oficial, a notícia da assinatura do Brasil na
recente convenção para a proteção dos idosos, da OEA, mês passado. Uma ‘nota
técnica’ - as notas técnicas estão no rigor da moda - da Secretaria de Direitos
Humanos (SDH) informa que os Estados Membros da Organização dos Estados
Americanos aprovaram, recentemente, a Convenção Interamericana sobre a Proteção
dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas.
Argentina, Chile, Costa Rica,
Uruguai e Brasil assinaram o documento que visa a proteger os direitos dos
indivíduos idosos e aponta para a aplicação de “todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais das pessoas até os mais velhos, que devem gozar
plenamente dos direitos de igualdade de condições com os demais.” O documento,
que tem como objetivo proteger a população idosa, estimula um envelhecimento
ativo e lembra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou seja, a
obrigação de eliminar todas as formas de discriminação. No caso, a
discriminação por motivos de idade.
A Convenção reconhece também que
a pessoa, à medida que envelhece, deve seguir “desfrutando de uma vida plena,
independente e autônoma, com saúde, segurança, integração e participação ativa
nas esferas econômica, social, cultural e política das sociedades dos
estados-membros.”
Aqui, alguns dos tópicos
registrados na Convenção que, segundo o documento, devem ser atacados. O
abandono: a falta de ação para atender de maneira integral as necessidades de
um idoso, colocando em risco sua vida ou sua integridade física, psíquica ou
moral. Cuidados paliativos: a atenção e o cuidado ativo, integral e interdisciplinar
de pacientes cuja enfermidade não responde a tratamento curativo ou que sofrem
dores evitáveis a fim de melhorar a qualidade de vida até o fim de seus dias.
Envelhecimento ativo e saudável:
o aperfeiçoamento de oportunidades de bem-estar físico, mental e social.
Maus-tratos: ação ou omissão contra um idoso que produz danos em sua
integridade física, psíquica e moral e o deixa fragilizado. Negligência: erro involuntário
ou ação não deliberada, incluindo descuido, omissão, desamparo e falta de
proteção que causam dano ou sofrimento a um idoso, tanto no âmbito público como
privado.
O documento também se refere a
uma rede de serviços sociossanitários de qualidade e a residências de longa
estadia, públicas, privadas ou de sistema misto que devem ser regulados. À
proteção judicial efetiva e à responsabilidade do estado e a participação da
família e da comunidade na inserção ativa, plena e produtiva do idoso dentro da
sociedade.
Mas o avesso desse mundo
paradisíaco cujo acesso deve ser um direito garantido pela responsabilidade dos
estados signatários do documento da OEA – e, portanto, agora, do Brasil –
apresenta realidades distantes das saudáveis
recomendações.
A Convenção, por exemplo,
menciona “isenção de temor e da miséria”. No Brasil, os idosos pobres - e
também os da classe média/média e média/baixa – vivem com um grande medo
da miséria e, com ela, da doença e da
decadência física empobrecida; de não conseguirem reunir recursos para usufruir
de acompanhamento domiciliar; o medo de, eventualmente, não possuírem recursos
para internação em casas de cuidados de longa duração privadas já que os
chamados abrigos públicos se encontram superlotados. Pergunta-se: diante deste
quadro, como cumprir com as obrigações da Convenção?
Outra indagação na vida pelo
avesso dos idosos brasileiros: e a discriminação e desrespeito aos idosos no
atendimento de serviços prestados no dia-a-dia da população? No transporte
público que não se detém para embarcar idosos (por ordem de proprietários das
empresas privadas aos motoristas)? Na ausência de filas de atendimento
prioritário, inclusive em órgãos públicos, o que descumpre o Estatuto do Idoso
(elogiado em diversos países), mas para o qual, já ouvimos diversas vezes,
‘ninguém liga, ninguém dá bola’? E as calçadas e meios-fios inseguros para a
mobilidade dos idosos – fruto do descaso do poder municipal? A falta de
capacitação de agentes / funcionários públicos negligentes no atendimento aos
idosos? E a inexistência de filas prioritárias em geral? Etc. etc. etc.
O Brasil assinou um documento,
afinal, onde se compromete a erradicar a discriminação no mercado de trabalho.
Mas e a ‘invisibilidade’ do idoso nesse mercado onde centenas de milhares de
aposentados procuram empregos porque necessitam da renda mensal de uma
atividade profissional embora já estejam “retirados”? Os subempregos a que são
eventualmente submetidos? Como garantir para eles a velhice “ativa” porém
“digna”, como prega a Convenção?
Importância do acesso dos idosos
à assistência domiciliar - é o que diz a Convenção. Segundo o papel se trata de
um direito dos idosos. Mas aqui, os cursos de cuidadores, por exemplo,
funcionam? Onde? Em quais estados, em quais municípios? E a regulamentação
dessa profissão de cuidadores está em andamento? Como são os programas dos
cursos de capacitação? O custo de seus serviços será acessível à maioria dos
aposentados?* Como o estado poderá monitorar a situação delicada dos idosos que
vivem sós, em casa, mas não possuem renda para contratar serviços de
assistência privados?
Os critérios não deveriam ser
mais rígidos nas penas para maus tratos de idosos? Negligência, omissão,
abandono? E quais os índices de denúncias recebidas? Haverá, talvez, a
necessidade de campanhas públicas continuadas e mais agressivas para tentar
dissipar o medo do idoso em denunciar maus tratos, muitas vezes no âmbito
familiar? Campanhas que estimulem a cultura do respeito ao idoso?
E há também, segundo a Convenção
ora assinada, a “obrigatoriedade de preparação, em período de transição, por
parte das empresas, para a aposentadoria de seus funcionários.” Se por acaso ela existe, como se faz a
fiscalização do seu cumprimento? Estaremos prontos para atender o idoso em suas
necessidades eventuais de cuidados paliativos e de longa duração? Nas suas
necessidades de segurança física, econômica e social? O país, com a imensa
diversidade cultural e uma sociedade de classes hierarquizada de modo
reconhecidamente desigual, estará pronto para cumprir os compromissos
registrados na Convenção?
Em suma: qual será a distância
entre o que determina o documento assinado pelo Brasil e a realidade da
esmagadora população de idosos brasileiros que não gozam da velhice dourada?
Um post recente, em rede social,
de aposentado morador de grande cidade, registra: ”Transportes públicos, um
ultraje aos passageiros com deficiências e aos idosos,” diz ele. “Os degraus
dos ônibus, altos, dificultam o ingresso dos usuários. Dentro do coletivo, a
falta de acessibilidade: poltronas destinadas a quem tem direito a elas,
ocupadas por pessoas jovens, alheias, ou que fingem dormir. Muitos dos
elevadores para cadeirantes e para os
idosos com pouca mobilidade estão quebrados ou os motoristas e
cobradores não foram bem instruídos para manejá-los. E não esquecer os
motoristas que passam direto ao ver idosos sinalizando para o coletivo parar
assim como as plataformas do transporte ferroviário, altas ou baixas demais, e
com um vão muito largo e perigoso, entre elas e cada composição.”
Qual será a distância, repetimos,
entre um lado direito oficial e edulcorado – que até pode vir a ser mais um
avanço desde que as recomendações sejam realmente aplicadas e fiscalizadas -, e
um avesso perverso no qual não há “segurança física, econômica e social” ou
“proteção judicial efetiva” nem “responsabilidade do Estado na integração
ativa, plena e produtiva do idoso dentro da sociedade”?
Não a distância que separa a
Terra da Lua, é o que os idosos desejam. E são indagações para as quais os mais
velhos esperam respostas.
*Na França, país ocidental com
maior população de idosos, a assistência aos mais velhos que moram sós, até
recentemente, (não temos informações atualizadas, com o progressivo
desmantelamento do estado de bem estar social europeu), era realizada
regularmente por assistência social pública. O(a) assistente supervisiona o
estado de saúde do idoso, cuida da sua segurança alimentar e pode até fazer
pequenas compras no mercado do bairro para o indivíduo.
Léa Maria Aarão Reis é autora dos
livros Maturidade, Além da idade do Lobo, Cada um envelhece como quer e Os
novos Velhos (Ed. Record)
Créditos da foto: Marcos Santos /
USP imagens
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