Mesmo assim, o discurso oficial
conservador nunca se esquece de recordar a 'nobre tradição britânica' de asilo
político. Hipocrisia pouca é bobagem...
Marcelo Justo – www.cartamaior.com.br
O primeiro-ministro David Cameron
ganhou a rejeição de meio mundo ao qualificar os imigrantes ilegais que tentam
atravessar o Eurotúnel – desde Calais, na costa francesa, até ao Reino Unido –
como “enxames” ou “pragas” humanas (“swarms”). As Nações Unidas, o governo
sueco, a Igreja Anglicana, grupos de direitos humanos e a oposição em
Westminster disseram se tratar de uma retórica “inumana”, “incendiária” e
“oportunista”. Impávido, o governo conservador respondeu nesta segunda-feira
(3/8) com um endurecimento maior das medidas para lidar com os imigrantes que
diariamente buscam cruzar o Canal da Mancha.
Além da construção de novas
barreiras de segurança, do aumento do contingente policial, câmeras de
vigilância e cães adestrados na fronteira, o ministro de comunidades Greg Clark
agregou que uma das medidas será uma mudança legal que permitirá dar penas de
prisão ao proprietário que alugue ou que dê alojamento a estrangeiros sem
verificar sua situação legal, ou que não expulse os que não tenham seus papéis
em dia. “Vamos perseguir com todo o peso da lei os proprietários que fazem
dinheiro com a imigração ilegal, soterrando nosso sistema imigratório”, afirmou
o ministro. Segundo o chanceler Phillip Hammond, “o governo está começando a
controlar essa crise, e os imigrantes ilegais estão diminuindo”.
Muitos conservadores, o partido
antieuropeu UKIP e até setores da polícia britânica pediram a intervenção do
exército e a utilização de unidades especiais de gurkas para a caça de
imigrantes ilegais. O governo, reeleito em maio com uma plataforma dura a
respeito do tema, se negou a essa possibilidade, mas endureceu sua retórica
para mostrar que o Reino Unido não é um “soft spot” de fácil acesso e vida
subvencionada pelo Estado. Em sua última intervenção, na quinta-feira passada
(30/7), antes de sair de férias, David Cameron aumentou os decibéis do debate
até roçar um racismo colonial. “Existem enxames humanos que cruzam toda a
Europa buscando uma vida melhor, que agora querem vir à Grã-Bretanha porque têm
uma economia vibrante, muitos empregos e é um lugar incrível para viver”,
comentou.
Ato deliberado ou traição do
inconsciente, a conotação insetificante do termo “swarms”, usado pelo
primeiro-ministro causou uma onda de reprovações. Dois dias antes, um sudanês
de 25 anos havia perdido a vida, atropelado por um caminhão que ingressava no
Eurotúnel – que atravessa o Canal da Mancha. Foi a nona morte em apenas um mês.
Em nome da Igreja Anglicana, o bispo de Dover, Trevor Willmott, pediu ao
primeiro-ministro mudar o tom de suas intervenções. “Estamos nos transformando num
mundo de intolerância crescente. Temos que redescobrir o que significa ser
humano”, disse.
O questionamento mais ácido veio
de um sócio do Reino Unido na União Europeia (UE), o ministro de Justiça e
Imigração da Suécia, Morgan Johansson. “A Suécia está aceitando entre mil e dos
mil imigrantes por semana. O Reino Unido não está assumindo a responsabilidade
que lhe corresponde”, indicou Johansson.
Os números imigratórios europeus
respaldam o ministro sueco, e refutam o papel de vítima dos caóticos “enxames
humanos”, que as autoridades britânicas tentaram projetar para justificar as
medidas anunciadas. Nos primeiros quatro meses do ano, cerca de 250 mil pessoas
solicitaram asilo político a países da União Europeia: menos de 10 mil (3%)
buscaram essa ajuda no Reino Unido (que tem mais de 10% da população europeia).
Segundo as Nações Unidas, há um total de 250 mil refugiados na França: mais que
o dobro que no Reino Unido.
A realidade é que, com uma
sociedade que direitizou o seu discurso, o governo britânico mescla
deliberadamente asilo político, imigração ilegal econômica e o que sucede em
Calais. “A imensa maioria dos imigrantes ilegais são gente que chegou
normalmente ao Reino Unido e ficou depois que venceu seu visto para trabalhar
num restaurante ou montar um negócio. Não é alguém que veio da Eritreia, que
trepa no teto de um caminhão em Calais para ver se consegue furar as barreiras
da fronteira”, explica Jonathan Portes, diretor do National Institute of
Economic and Social Research.
O problema do governo é ter
prometido reduzir a imigração a menos de 100 mil pessoas por ano – quando
chegou ao poder, em 2010. Longe desse objetivo, os números dispararam a mais de
300 mil. A imensa maioria são imigrantes econômicos, sejam de outros países da
União Europeia (legais) ou do planeta (com ou sem permissão de estadia).
A única maneira de seguir
projetando uma imagem de firmeza é com pronunciamentos de linha dura com os
imigrantes que se concentram em Calais, muitos deles provenientes da Síria,
Afeganistão, Iraque, Eritreia e Sudão, todos eles países imersos em guerras
civis ou sob governos ditatoriais.
Como a hipocrisia é a homenagem
do vício à virtude, o discurso oficial conservador nunca se esquece de recordar
a “nobre tradição britânica” de asilo político, desde as revoluções europeias
do Século XIX ao nazismo ou os países convulsionados nos Anos 70. Na prática, a
ministra do Interior Theresa May, aspirante a suceder Cameron, afirmou
abertamente que os refugiados de um país como a Eritreia são econômicos e não
políticos, apesar de as Nações Unidas terem publicado um documento de 500
páginas sobre a “violação sistemática e absoluta dos direitos humanos” sob o
governo de Isaias Afwerku, que, entre outras coisas, tem um sistema de
alistamento obrigatório para toda a população masculina ou feminina, o que,
segundo as organizações de direitos humanos, os transforma numa população
escrava.
Em Calais, os testemunhos da
grande maioria são contundentes. Um dos refugiados africanos comentou, numa
reportagem do dominical britânico “The Observer”, que preferia que essas
barracas precárias em que se aloja a voltar ao seu país. “Não quero morrer, não
quero matar a ninguém. Não me importa ficar aqui para sempre. Pelo menos aqui
não há armas, não há mortes”.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: Robert Thom/
The Prime Minister%u219s Office
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