Esgotado um projeto político,
cresce a disputa pelo poder. A preservação da sociedade plural e organizada
implica na aceitação das crenças e valores do outro
Por Renato Xavier | Imagem: Gao
Brothers / http://outraspalavras.net/
Atualmente, vivemos a
intensificação das lutas sociais e políticas no Brasil. Não quero dizer com
isso que há uma “luta de classes” em curso (ao modelo marxista), mas que
atingimos a esta altura certo nível de conflito social que pode obstaculizar o
bom funcionamento das nossas instituições democráticas e a própria
possibilidade de cooperação social em torno de um projeto comum de sociedade.
Olhando o atual cenário
brasileiro, há quem pense estarmos vivendo o auge da democracia representativa
desde o fim do regime militar. Por outro lado, há os que, preocupados com as
instituições, enxergam o atual momento como o atrofiamento da democracia face
aos problemas endêmicos.
Se observado do ponto de vista da
coletividade (da convivência em sociedade), o que se percebe é um intenso
embate de ideias, crenças e valores (doutrinas). Em outras palavras, uma
sociedade cada vez mais pluralizada. Diante disso, como é possível estabelecer
critérios mínimos de cooperação social, isto é, como manter o funcionamento da
sociedade e, em última instância, da própria pluralidade?
A adesão absoluta a doutrinas da
Verdade – sejam elas econômicas ou políticas ou morais – pode sufocar o
convívio em uma sociedade democrática, visto que, no auge do conflito, os
pontos que poderiam ser amiúde comuns (a intersecção de certos interesses) são
sobrepujados por preceitos conflitantes e, eventualmente, antagônicos, a saber:
o papel da economia no Estado (doutrinas econômicas); a interferência da religião
na política (doutrinas morais); e as formas de organização e desenvolvimento do
Estado (doutrinas políticas).
Vejamos, em síntese, o cenário
político brasileiro desde as manifestações de junho de 2013 até hoje.
Cresce cada vez mais a quantidade
de ideias, crenças e valores que, outrora, foram sufocados pelo projeto econômico-político-moral
vencedor. O discurso “nós e eles”, que esconde a vontade de poder, natural em
toda relação humana, não encontra mais suporte institucional. A base social que
sustentava tal discurso pulverizou-se entre as mais variadas doutrinas. Uma vez
esgotado o projeto, a disputa em torno do poder aumentou significativamente.
A corrida pelo poder desencadeou
um pluralismo à brasileira (não cooperativo) e evidenciou uma sociedade
dividida por doutrinas que, a primeira vista, não dialogam. O aumento da
bancada religiosa possibilitou a criação de barreiras dogmáticas na já
conturbada agenda política, uma mistura que a história tratou de mostrar
problemática. Alguns são os exemplos: a questão das denominações do termo
“família”; a adoção de crianças por casais homoafetivos; e, igualmente, a
rejeição à ideia de se discutir o aborto. No campo econômico, diverge-se em
torno da liberdade do mercado e do tamanho do Estado, com resultados práticos
no ajuste de Levy. Adjacente a isso, os movimentos de base cedem lugar aos
“neomovimentos” populares, que surgiram exatamente do vazio de
representatividade política.
Da pluralidade, que ainda não
coopera, alguns temas alçam voos mais altos, embora não necessariamente sejam
urgentes ou relevantes, movimento este entendido como resultado da queda de
braço na low politic. São eles: a redução da maioridade penal; o estatuto da
família; a reforma política; e a corrupção. Priorizar tais temas é, portanto,
abrir mão de outros tantos.
Depreendem-se deste engodo duas
saídas. A primeira, avessa à pluralidade: a homogeneização da sociedade tal e
qual representada pela ala dos que reivindicam a volta dos militares. A
segunda, favorável à pluralidade: o aprofundamento da heterogeneidade social a
partir do aperfeiçoamento da política – e dos partidos políticos – como meio
para atingir fins coletivos; organizar os desejos conflitantes diante de
escassos recursos.
A preservação da sociedade plural
e organizada implica, ademais, na aceitação racional das crenças e dos valores
de outrem. Para isso, é preciso, em primeira instância, certa independência em
relação às doutrinas, ou seja, um espaço para o “livre pensar” ou para o
“pensamento crítico”; colocar os seus valores em xeque; escapar dos “valores
superiores”. Em um segundo momento, aceitar a pluralidade e quiçá se adaptar às
doutrinas divergentes, com o propósito de um projeto comum: por exemplo, a
melhoria na educação. Percebe-se que, a despeito da pluralidade conflituosa, o
tema educação é consenso em nossa sociedade, embora o caminho a ser percorrido
não o seja.
Da qualidade de sociedade cada
vez mais pluralizada, intensificada nas crenças político-econômico-morais,
apreende-se a capacidade racional da cooperação social em torno de um projeto
público (educação, saúde e etc.). É condição sine qua non fazer escolhas e
aceitar que a soma destas nem sempre resultem no que eu (cidadão) vislumbrei
como melhor/verdadeiro. Em outras palavras, em uma democracia, a minha vontade
nem sempre se conjuga na vontade da maioria, ainda que na pluralidade atual não
seja mais possível sacrificar minorias.
A coletividade desejável supõe a
assinatura de um pacto mínimo; tornar possível uma coletividade baseada na
cooperação social, independentemente da sua posição social ou do seu interesse
particular. Um projeto de nação em termos não vulgares representa a própria
possibilidade de divergir; a condição de retirar do conflito a cooperação. Em
última instância, é a liberdade que está em jogo.
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