A América do Sul, e o Brasil em
particular, terão que decidir se perseguem uma estratégia autônoma ou se aderem
às zonas de influência de uma das potências
Tiago Nasser Appel / www.cartamaior.com.br
O livro, “História, Estratégia e
Desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo”, do cientista político
José Luís Fiori, cai como uma luva no meio da crise política e econômica vivida
pela sociedade brasileira, nesta segunda década do século XXI. Mais do que
isto, o livro de Fiori: reanima o mundo das ideias e da esquerda brasileira
numa época em que esta se encontra tomada por um verdadeiro marasmo
intelectual, combalida pelo estadismo tímido do seu principal representante no
poder e amedrontada pelo ressurgimento do fascismo.
Mas Fiori é hoje muito mais do
que um representante da intelectualidade brasileira de esquerda, e não digo
isso para desmerecer os esforços de um sem-número de críticos que escrevem
regularmente nos (não muitos) periódicos de esquerda que desafiam a
mediocridade atual do jornalismo brasileiro. Digo isso porque acredito que o
pensador gaúcho desenvolveu nas últimas duas décadas – e nesse sentido
História, Estratégia e Desenvolvimento é apenas a fotografia atual de uma
pesquisa em curso que remonta à década de 1980 – uma verdadeira teoria da
história, mesmo que o próprio Fiori, sempre comedido e despretensioso, se
recuse em concordar.
Já peço perdão antecipada aos
historiadores e filósofos da ciência pelo uso livre da expressão “teoria da
história”. Com ela queremos dizer que Fiori – na veia de mestres como Marx,
Weber, Tocqueville e, mais recentemente, Wallerstein e Michael Mann –
desenvolveu uma meta-narrativa própria para a interpretação da história. Uma
meta-narrativa é, literalmente, uma narrativa contida além da própria narrativa
que a originou. A teoria marxista da luta de classes, por exemplo, foi escrita
com base em observações das disputas políticas pelo excedente socioeconômico
produzido pelas sociedades industriais nonocentistas, disputas estas em que
figuravam duas classes centrais: a burguesia e o proletariado. Mas a narrativa
da luta de classes foi estendida aos séculos precedentes porque, como diz um
amigo meu, não se explica o século XIX a partir do século XIX. Isto é, se
quisermos fazer mais do que análise de conjuntura – novamente, sem desmerecer a
análise de conjuntura – precisamos identificar padrões e recorrências que nos
possam ser úteis para explicar e descortinar o maior número possível de
processos históricos. Neste sentido, meta-narrativas inovadoras são aquelas
que, ao identificar novos padrões na história, isto é, ao nos oferecer novos
instrumentos para reler a história, nos permitem extrair lições inéditas para o
presente.
A teoria do Poder Global de Fiori
é, a meu ver, uma das meta-narrativas de vanguarda da atualidade. Como todas as
outras, ela também se baseia numa narrativa original que, aliás, ainda preenche
a maior parte das páginas dos escritos do autor: o surgimento e desenvolvimento
do sistema interestatal capitalista. Em sua narrativa do funcionamento do
sistema, Fiori identificou as seguintes recorrências gerais (2014: 36-45): (1)
nenhum caso de desenvolvimento econômico nacional bem-sucedido pode ser
explicado a partir de fatores exclusivamente endógenos, no sentido de que o
desenvolvimento sempre obedeceu a estratégias desenhadas em resposta a grandes
desafios sistêmicos, sobretudo geopolíticos; (2) por conseguinte, todos os
países “vitoriosos” se desenvolveram dentro de tabuleiros geopolíticos
altamente competitivos e, por isso, compartilharam um sentimento constante de
cerco e ameaça externa, ameaça esta que ocupou lugar central no desenho dos
objetivos estratégicos de suas políticas de desenvolvimento e industrialização;
(3) mesmo o “sucesso” dos pequenos países desenvolvidos, que enriqueceram sem
tornar-se grandes potências, não pode ser explicado sem que se leve em conta a
sua posição territorial decisiva dentro da competição das grandes potências,
posição esta que lhes permitiu abdicar de sua autonomia em matéria de defesa e
política externa em troca do acesso privilegiado aos mercados e capitais da
potência protetora; (4) todos os países que se transformaram em grandes
potências capitalistas enfrentaram, no momento de sua arrancada, rebeliões
sociais, “revoluções burguesas” ou guerras civis que estiveram invariavelmente
associadas à ameaça de invasão externa; (5) neste sentido, essas
rebeliões/revoluções foram cruciais para a criação de um núcleo estratégico
unido e coeso dentro do próprio Estado, núcleo este que conseguiu sustentar
objetivos estratégicos ao longo do tempo e apesar de eventuais mudanças de
governo ou regime político; (6) todas as potências foram expansivas desde o
momento da consolidação de seus centros de poder internos e utilizaram suas
economias nacionais como instrumento de poder a serviço de suas estratégias
imperialistas, no sentido de que a liderança do capitalismo sempre esteve nas
mãos dos capitais privados e das economias que, apoiados no poder internacional
de seus Estados, conseguiram operar na contramão das leis de mercado; (7) as
grandes potências vencedoras sempre impuseram as próprias moedas como moedas de
referência, que nunca foram escolha dos mercados e sim subproduto da guerra e
da vitória da superpotência; (8) os títulos da dívida pública das grandes
potências sempre tiveram maior credibilidade do que os títulos dos outros
Estados não porque elas seguiram os preceitos liberais da responsabilidade
fiscal – elas desrespeitaram sistematicamente os preceitos da ortodoxia
econômica em nome da luta por mais poder –, mas porque a expansão contínua dos
seus territórios econômicos supranacionais e zonas de influência, juntamente
com a imposição da sua própria moeda, lhes deu condições infinitamente
superiores de arcar com seus “compromissos” financeiros.
As linhas acima narram uma clara
antecedência temporal e lógica do mundo do poder e da conquista sobre o mundo
dos mercados e da economia. O privilégio dado à guerra também fez Fiori
encontrar as origens do sistema interestatal capitalista em “explosões
expansivas” no tabuleiro geopolítico Europeu, entre aproximadamente 1150 e
1650. Neste período as guerras europeias transformaram-se numa atividade
contínua cuja enorme pressão competitiva tornou imperiosa a necessidade de se
obter mais receita e recursos materiais e humanos, até o momento em que a
repetição permanente desse estímulo autoritário à produção de excedente
socioeconômico marcou uma ruptura original na Europa, o nascimento das
primeiras Economias-Nacionais. Com seu nascimento, a relação simbiótica entre o
conflito e o desenvolvimento cresceu exponencialmente à medida que as
necessidades criadas pela guerra excederam a capacidade de tributação e levaram
à criação de sistemas nacionais de crédito. Estes sistemas, baseados em última
instância na dívida pública dos Estados nacionais, foram desde sempre e são até
hoje o principal espaço de acumulação de capital, de acumulação do dinheiro
pelo dinheiro.
Esses insights apontam para uma
clara inovação teórica frente aos clássicos estudos da relação entre a guerra e
o capitalismo. Autores como Tilly, Parker, Kennedy e McNeill já mostraram há
tempo como a guerra e a necessidade de receita forçaram as nascentes economias
europeias a se burocratizar e modernizar, e como esse processo criou a
infraestrutura social que possibilitou a ascensão do capitalismo. No entanto,
eles não criaram uma meta-narrativa tão poderosa (tão geral) porque aceitaram
implicitamente que a maturidade do capitalismo assinalava uma mudança qualitativa
radical na relação entre conflito e desenvolvimento, como se o mundo do capital
tivesse se autonomizado do mundo do poder.
Já a narrativa de Fiori nos
convence de que o desenvolvimento dos mercados privados de crédito e dos
capitais nacionais não pode ser desvinculado do movimento de expansão e, em
última instância, internacionalização dos Estados. Esta dependência do
capitalismo para com o mundo do poder não é apenas evidenciada – como aceitam
muitos economistas – pelos inúmeros exemplos de crises econômicas em que o
“capitalismo” foi resgatado pela intervenção do Estado, mas principalmente pelo
caráter necessariamente nacional do capital.
Em História, Estratégia e
Desenvolvimento, Fiori escancara a ingenuidade daqueles – tanto marxistas como
liberais – que trabalham com categorias abstratas de capital, como se algum
capital pudesse ser acumulado fora do território econômico criado e sustentado
pelo poder dos Estados. Nesse sentido, a suposta internacionalização do
capitalismo que presenciamos nos últimos séculos é, no fundo, resultado da
progressiva ampliação dos territórios econômicos supranacionais de determinadas
potências ganhadoras e, por isso, é sempre – paradoxalmente – a
internacionalização de determinado capital, com nome, sobrenome e nacionalidade
particulares, e denominado, igualmente, em uma moeda particular, nacional, cuja
internacionalização acompanha pari passu a expansão do poder do Estado soberano
emissor.
É por isso que neste sistema é
logicamente impossível que um país se desenvolva sem conquistar posições
monopólicas que são, por definição, escassas e desiguais (são parte do
território econômico de determinada potência). Diz Fiori (p. 28): “não há como
uma economia nacional se expandir simplesmente por meio do jogo das trocas, nem
há como uma economia capitalista se desenvolver de forma ampliada e acelerada
sem que ela esteja associada a um Estado com projeto de acumulação de poder e
de transformação ou modificação da ordem internacional estabelecida”. E, como a
história nos mostrou várias vezes, é claro que as potências que já ganharam vão
lutar com unhas e dentes para proteger as suas posições monopólicas das
potências ascendentes: o próprio discurso liberal – sempre patrocinado pelas
potências ganhadoras – de que os países podem crescer e se desenvolver pela
“via dos mercados”, sem um projeto ascendente, sempre foi um poderoso
instrumento ideológico para manter a periferia do sistema no “andar de baixo”,
para sorver de antemão toda a energia criativa de potenciais desafiadores da
ordem estabelecida e fazê-los aceitar a sua posição subalterna no sistema
internacional de poder.
Mas, perguntariam os mais
críticos, se o desenvolvimento capitalista é inteiramente um subproduto da
competição por poder entre Estados Nacionais, por que os episódios anteriores e
extra-europeus de intensa competição geopolítica não deram origem a esta
ruptura original? A hipótese de Fiori é que, embora certamente tenha havido
outros momentos na história de “explosões expansivas” de poder e riqueza, elas
não produziram a ruptura para a “modernidade” porque elas foram mais cedo ou
mais tarde abortadas por unificações territoriais do tipo imperial (Império
Romano, Chinês, Persa, Otomano, Mugal, etc.) que fizeram cessar a competição
geopolítica e, portanto, a energia que faz o sistema dar saltos qualitativos.
É exatamente aqui, friso eu, que
encontramos o Fiori mais original, o Fiori que produz teoria da história. A
tentativa de destrinchar esse “sistema de unidades de poder competitivas”
necessariamente o levou, cronologicamente falando, para muito antes do
capitalismo. Para a meta-narrativa ser geral e consistente, era preciso
explicar quando esse sistema original de competição por poder, esse prime mover
da história, produzia as rupturas e quando ele não as produzia. A tentativa de
construir essa teoria geral levou o gaúcho a desenvolver o que ele mesmo chama
de uma metafísica do poder, cujas características ele mais uma vez resume no
prefácio do História, Estratégia e Desenvolvimento.
Num esforço teórico
interdisciplinar que empresta conceitos da física, da antropologia e da
biologia, Fiori desenvolve uma teoria do poder que já seria suficiente para
colocá-lo ao lado dos grandes mestres aludidos no início dessa resenha. Tal
como o conceito de capital de Marx, que parece acometer-se de uma energia
irresistível que o obriga a se valorizar para continuar existindo, o “poder”,
em Fiori (p. 18-20), é fluxo, é energia, é ação e movimento. Tal como o capital
em Marx, o poder é uma relação que se constitui e define pela disputa e luta
contínua pelo próprio poder: ele é, portanto, (1) limitado – se fosse absoluto,
não haveria competição e, portanto, ele não existiria; (2) relativo – se algum
vértice ganha poder, outro necessariamente perde; (3) heteroestático – qualquer
variação de poder provoca sempre uma reação imediata das partes desfavorecidas,
que buscam recompor o “equilíbrio” inicial de poder; (4) expansivo e
“triangular” – se as relações de poder fossem binárias e fechadas sobre si
mesmas, transformar-se-iam num jogo de soma zero, por isso a fronteira (o
“terceiro” vértice) é necessária para exercer uma pressão competitiva a um
sistema que, de outro modo, entraria em equilíbrio e, portanto, em entropia.
Vale a pena dedicar algumas
linhas a este quarto ponto, pois os conceitos da termodinâmica são essenciais
para o entendimento da metafísica do poder de Fiori. A segunda lei da
termodinâmica diz que a quantidade de entropia (desordem) de um sistema isolado
tende a aumentar com o tempo até alcançar o equilíbrio térmico, onde a
“desordem” é máxima porque não há mais complexidade, onde há apenas um todo
homogêneo. O conceito de desordem parece aqui contra intuitivo, mas um exemplo
simples irá clareá-lo.
Se despejarmos a água de uma
chaleira aquecida numa panela com água fria, a maior energia potencial da água
mais quente irá imediatamente se distribuir entre as moléculas da água mais
fria, até o equilíbrio termodinâmico ser alcançado. Quando isto acontece,
perdemos complexidade (ordem) porque “perdemos” energia para sempre, isto é, o
calor, após distribuído, não está mais disponível para realizar trabalho. A
entropia, definida como calor irrecuperável, aumentou.
A analogia com o mundo do poder é
direta. Enquanto na física o grau de desorganização de um sistema tende a
aumentar caso ele não receba estímulos externos contrários, no mundo do poder
as unidades políticas tendem a perder dinamismo quando cessa a pressão externa.
O Poder, assim, é uma energia que se desenvolve no desequilíbrio, uma energia
que desafia a força termodinâmica que age, quase que instantaneamente, para
minimizar ou mesmo dissipar os desequilíbrios. Portanto, se nos últimos 1000
anos o sistema que se originou na Europa manteve-se em movimento, sem grandes
retrocessos ou estagnações, é porque conseguiu manter-se suficientemente
competitivo para contrabalançar esta tendência natural, “física”, ao
equilíbrio.
Mas engana-se quem acredita que a
teoria de Fiori não tem valor heurístico fora da competição entre Estados
Nacionais. Ela nos ajuda, por exemplo, a explicar o surgimento dos primeiros
Estados, que os antropólogos políticos admitem ter sido resultado direto do
aumento da competição territorial entre grupos humanos que foram se
sedentarizando após a revolução Neolítica (adoção da agricultura). Mas,
principalmente, a teoria de Fiori nos mostra como o conflito entre grupos
humanos, uma vez iniciado, cria os seus próprios mecanismos de
retroalimentação, pois gera dilemas de segurança em que o próprio poder passa a
ser a “moeda de troca” da disputa. Isto é, embora a competição e a guerra se
originem inicialmente de um estado fundamental de escassez, a competição e, em
última instância, a guerra se alimentam da desconfiança e do impulso por poder
que elas próprias criam. Quando o “outro” é considerado um potencial inimigo,
sua própria existência suscita ameaça, pois “ele” pode um dia atacar. Por isso,
devem-se tomar precauções e aumentar o próprio poder. O problema é que isso
sempre será interpretado como uma ação ofensiva pela outra parte, gerando um
clássico dilema de segurança do qual é impossível escapar.
Assim, o conflito gera uma
acumulação de poder permanente que em determinadas circunstâncias permite
grandes rupturas qualitativas, como o surgimento de novas espécies, se recorrermos
à teoria evolucionária e à sociobiologia, de novos tipos de agrupamentos
humanos, dos Estados e, mais recentemente, do capitalismo. Mas mesmo no
capitalismo, e não poderia ser diferente dado o ponto de partida de Fiori, o
poder, por natureza desigual, assimétrico e relativo, continua sendo a moeda
universal mediante a qual todos os outros objetivos (e. g., riqueza) podem ser
conquistados.
Embora a obra de Fiori não tenha
caráter explicitamente normativo, não poderíamos terminar essa resenha sem rascunhar
como a teoria da história que ele desenvolve pode nos ajudar a reavivar o
debate sobre o desenvolvimento. Desde
2003 o o governo brasileiro vem sendo conduzido por uma coalizão de forças que
conseguiu patrocinar um tímido “capitalismo de Estado” e uma política externa
relativamente autônoma. Mas esta coalizão enfraqueceu-se sobremaneira a partir
do momento em que Brasil deixou de contar a seu favor com o boom das
commodities da primeira década do século, e agora corre o risco de se
desintegrar com a debandada do congresso e os ataques diários da mídia
conservadora e ultr-liberal.
Esses ataques, no entanto, apenas
revelam a cada vez mais importante posição geopolítica do Brasil no novo mapa
mundial que está se desenhando. Iniciativas como a Organização de Cooperação de
Xangai e os Bancos de Desenvolvimento dos BRICS apontam para um mundo cada vez
mais bipolar, reminiscente da Guerra Fria, e prenhe de oportunidades de
alianças estratégicas e de desenvolvimento. Este mundo contará com a presença relativa
cada vez menor da Europa – fustigada pela sua crise interna e pelo malogro
absoluto de suas guerras civilizacionais na África e no Oriente Médio – e verá
regiões como o Pacífico e a América do Sul cada vez mais disputadas pelos dois
blocos principais de poder que caracterizarão as próximas décadas: um liderado
pelos Estados Unidos e outro liderado pela China.
A América do Sul e o Brasil, em
particular, terão, portanto, que decidir se perseguem uma estratégia autônoma
ou se aderem às zonas de influência de uma das duas grandes potências. Mas
contra toda ideologia, a história nos mostra que não é principalmente a
“escolha” por uma potência particular o que promove o desenvolvimento, mas sim
a capacidade de se articular uma estratégia nacional que aproveite as
oportunidades e saiba exigir as contrapartidas que os sucessivos quadros
geopolíticos oferecem, em menor ou maior grau.
Créditos da foto: reprodução
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12