Nesses mares revoltos nossa
hipocrisia atingiu as águas mais profundas.
Em um planeta todos os dias
bombardeado por milhões de imagens que vem de todos os lados fica difícil
comentar as mais impactantes, ou mesmo refletir sobre elas, dada a velocidade
com que nascem e morrem nos dias seguintes. Apesar disso, quero aqui puxar pela
memória do leitor e comentar a imagem que mais me impressionou, sobre a mais
recente onda de mortes de imigrantes nas águas do Mediterrâneo.
Não estou falando das imagens das
muitas crianças mortas que chegaram afogadas à praia. Com suas expressões entre
a serenidade e a estupefação. Não estou falando dos restos de barcos toscos, de
comida, de objetos que flutuam revelando serem inúteis partes desimportantes de
vidas dadas como desimportantes. A imagem que mais me entristeceu e chocou na
semana passada foi uma tomada de cima, onde uma dúzia de afogados formavam um
círculo perfeito, boiando sobre as águas escuras do mar que os matou. Ao centro
desse circulo, dois ou três objetos, como pontinhos de uma foto-pintura
absolutamente surreal, que não seria imaginada nem na gótica mente de um Bosch
contemporâneo. A sinistra poesia de um balé da morte.
O horror dessa foto
paradoxalmente revela uma beleza macabra de composição, que atenua a nossa
percepção do quanto aquilo é desumano, absurdo, impensável num mundo
civilizado. E mais surreal ainda que esse amontoado de cadáveres em círculo de
imigrantes afogados lembre tristemente as estrelas que se vêem na bandeira da
União Européia.
Escrever sobre uma imagem
amplamente difundida talvez seja inócuo ou dispensável. Muita gente viu. Mas
não consigo pensar e nem escrever hoje sobre outra coisa diante da indiferença
mundial diante dessa imagem de raro impacto poético. Imagem que representa uma
indiferença abissal que temos diante desses milhares à deriva pelos mares do
mundo, levados como peixe podre até as praias dos países tubarões, que, na
verdade, fabricaram a secular tragédia do colonialismo, origem, ovo da serpente
de toda essa tragédia que se dá na costa européia. São humanos como todos nós
esses que perecem. Mas ao vê-los assim de cima, mortos à deriva, não se parecem
com nada que seja humano. O desumano ao qual são submetidos os transforma em
máscaras de horror, para as quais o cinismo do mundo “civilizado” não quer nem
olhar. Nesses mares revoltos nossa hipocrisia atingiu as águas mais profundas.
Texto de Ricardo Soares
Fonte indicada: Domtotal
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