O momento é de defesa
incondicional da ordem constitucional, dos direitos sociais e trabalhistas,
como forma de evitar retrocessos.
Jorge Luiz Souto Maior / www.cartamaior.com.br
É importante saber que se há uma
crise econômica é porque no capitalismo as crises são cíclicas e inevitáveis,
sendo certo que se o capitalismo tem sido capaz de se reinventar na superação
de cada crise, também é certo que as crises, no processo dialético, têm sido
cada vez mais graves e profundas, exigindo que se leve a sério a necessidade de
se pensar na organização de um novo modelo de sociedade, sob pena de, falseando
a realidade, sermos conduzidos à barbárie pensando que estamos fazendo algo
efetivo para melhorar as coisas, como se dá, por exemplo, com o projeto de redução
da maioridade penal.
Claro que a inevitabilidade da
crise não retira as responsabilidades de ações políticas e econômicas que podem
acelerar o ciclo ou piorar o problema. Há, por certo, várias críticas que se
podem fazer ao governo federal neste assunto, como, por exemplo, referente ao
modo como lidou com os direitos trabalhistas, tratando a classe que vive do
trabalho como mera reprodutora da lógica do capital, propondo uma inserção
social apenas por meio do consumo e não pela realização de projetos sociais de
base.
Mas não é possível concluir que
sem os erros que possam ser apontados não adviria uma crise, como se o
capitalismo fosse sempre justo, bom e equilibrado e que são os governos os
culpados de algum eventual desajuste, sendo mais grave ainda querer obter um
benefício político eleitoral da crise, tentando fazer supor, de forma
absolutamente artificial, que a crise não adviria caso outros nomes sejam
conduzidos ao poder governamental.
Por outro lado, parece-me também
equivocado imaginar que não se possa interferir no percurso histórico e que
toda racionalidade só tem sentido para o desencadear de um processo
revolucionário. Mesmo com limites, muito pode se fazer quanto à declaração e à
efetivação de direitos sociais e tanto os governos quanto às instituições e a
classe trabalhadora, na cobrança e na luta, são responsáveis pelo incremento
dessa obra, que se não é suficiente para superar a lógica capitalista, baseada
na concorrência e na exploração do trabalho, que parte do pressuposto da acumulação
do capital e da desigualdade social, ao menos é capaz de minorar os sofrimentos
pessoais, o que é, para tantos, essencial, além de estimular a organização
política e as próprias práticas emancipatórias.
Vale perceber, também, que o
tamanho real da crise não há como ser medida e esta pode, portanto, ser
bastante aumentada por rumores e medos. Os receios e as incertezas do futuro
fazem com que muitas empresas, para não sofrerem perdas que possam, mais
adiante, ser irreparáveis, pensem em saídas como a diminuição de custos com a
redução de pessoal ou mesmo como a diminuição de salários por meio da redução
da jornada. Isso, no entanto, apenas reforça a lógica da crise, vez que o
desemprego piora o consumo, seja pela perda mesmo de consumidores, já que os
desempregados perdem os seus ganhos, seja pelo medo que aqueles que ainda estão
empregados têm de consumir, preferindo, em atitude responsável, poupar o
dinheiro. Essa redução drástica do consumo causa prejuízo às próprias empresas,
mesmo àqueles que buscaram soluções por meio de demissões.
O que se percebe no noticiário de
boa parte da grande mídia é que muita gente, infelizmente, está apostando na
crise, isto é, incentivando os sentimentos que a agravam.
A quem interessa isso? As
respostas não são óbvias. No entanto, a hipótese mais visualizável é a de que a
crise econômica interessa a quem deseja estimular o advento de uma crise
institucional.
Claro que os fatos noticiados na
grande imprensa são relevantes e devem mesmo ser veiculados, apurados, para que
os responsáveis sejam efetivamente punidos. No entanto, se os casos estão sendo
noticiados, se as instituições (Justiça Federal, Ministério Público Federal e
Polícia Federal) estão funcionando, com políticos e empresários de grandes
corporações presos, parece-me que o propósito dessa desintegração social vai
além de trocar os nomes dos governantes e do partido no poder.
O que se pretende, segundo se
anuncia na já divulgada Agenda Brasil, é justificar demandas de redução de
direitos trabalhistas, pressionando o governo para encampar as medidas
políticas necessárias para tanto, sendo este um percurso facilitado por uma suposta
dificuldade de resistência da classe trabalhadora, que se vê diante do dilema
de se opor à desestabilização institucional e com isso favorecer a preservação
de um governo que tem partido para cima, literalmente, dos direitos
trabalhistas, tendo encampado, inclusive, o nefasto projeto de ampliação da
terceirização e de privatização das instituições públicas ligadas à educação,
saúde, ciência, tecnologia, desporto e meio ambiente, por meio da terceirização
e da entrega da administração de serviços públicos nas áreas mencionadas a
OSCIPs e OSs, ou de não fazer nada, para não se aliar aos propósitos de
sustentação do governo, e com isso ver seus direitos perecerem sem sequer ter
lutado por eles.
O mais grave é que a lógica de
diminuição do Estado e do ataque frontal aos direitos sociais, criada no
governo Collor, aprofundada no governo FHC e continuada nos governos petistas,
serviu para fragilizar a classe trabalhadora e ao mesmo tempo aumentar o poder
e a influência de alguns setores econômicos, favorecendo a promiscuidade entre
o interesse público e o interesse privado da qual se alimenta a corrupção.
Assim, quando se pensa em mudanças na sociedade para a correção da corrupção,
da forma como o tema tem sido tratado, na linha da pessoalidade, não se está cuidando,
nem perifericamente, da reversão desse estado de coisas. Com isso, mesmo o
movimento pela moralidade está a serviço de interesses privados não revelados,
não sendo apto para a correção dos problemas da corrupção.
À classe trabalhadora é essencial
perceber que está em curso, de forma extremamente forte, um grande golpe
engendrado para a destruição da garantias sociais historicamente conquistadas:
MPs 664 e 665 (já convertidas nas leis n. 13.134/15 e n. 13.135/15) que
ampliaram os requisitos para obtenção de benefícios previdenciários; MP 680,
que apresentou para os trabalhadores a conta da crise, absolvendo empresas que
obtiveram enormes lucros nas duas últimas décadas; PLC 30/15, que trata da
ampliação da terceirização; PL 8.294/14, que propõe a eliminação do direito do
trabalho quando: “I – o empregado
for portador de
diploma de nível superior e
perceber salário mensal
igual ou superior
a duas vezes o
limite máximo do
salário-de-contribuição da
previdência social; II – o empregado, independentemente do
nível de escolaridade, perceber
salário mensal igual
ou superior a três
vezes o limite
máximo do salário-de-contribuição da previdência social”, retomando, mais uma vez, de forma
indireta, a ladainha do negociado sobre o legislado; e dois esdrúxulos Projetos
de Decreto Legislativo (PDL), um com trâmite no Senado Federal, n. 43/15, e
outro com trâmite na Câmara dos Deputados, n. 1408/13, que visam sustar a
aplicação da NR-12, do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata da Segurança
no Trabalho em Máquinas e Equipamentos1.
Em paralelo a isso, como forma
mesmo de se conseguir enfim levar às últimas consequências o projeto
neoliberal, se está produzindo uma destruição das instituições públicas que
seriam, ao menos em tese, responsáveis pela aplicação do direito social e de
sua racionalidade.
Para a classe trabalhadora há uma
necessidade, paradoxal, portanto, de sair em defesa das instituições
democráticas, sem, com isso, legitimar tudo o que os governos, nos últimos 20
anos têm realizado, e que ainda prometem realizar, no que se refere ao ataque a
direitos trabalhistas.
É importante afastar-se dos
dilemas políticos partidários e das chantagens da crise, que só servem para
mascarar a realidade e para evitar a produção de um raciocínio voltado ao
enfrentamento dos efetivos problemas que nos impedem de possuir uma sociedade
sem corrupção, sem desigualdades, sem opressões de toda espécie, sem miséria e
justa.
Aliás, ao falar isso já antevejo
comentários, vindos de todos os lados, acusando-me de sonhador, iludido ou
utópico. Mas o problema desses burocratas, que querem manter suas regalias ou
tentar assumir as regalias dos outros, pautando-se na inexorabilidade ou na
lógica do mal menor, é exatamente o de vedarem a toda uma geração a
possibilidade de ter sonhos e de lutar por um mundo melhor, buscando
mergulhá-los na individualidade egoísta.
Além disso, os ajustes de
sustentabilidade já firmados pelo governo com o setor econômico, à revelia do
debate popular, notadamente com a classe trabalhadora, carregam consigo, em
razão do próprio modo como estão sendo concretizados, uma carga autoritária
muito forte, sendo certo que a sensação de um poder quase absoluto, percebida
pelos setores que estão conseguindo acuar o governo (que, de todo modo, não
pode ser visto como vítima), não verá limites para promover ações
persecutórias, de índole ideológica, no âmbito de instituições públicas e mesmo
privadas.
Veja-se, por exemplo, a
publicação, em 20/08/15, da Carta Aberta de Professores Eméritos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, nenhum deles ligados ao Direito,
direcionada ao Ministro da Educação, pedindo a este que tome providências
contra o Reitor da Universidade, Prof. Eduardo Serra, precisamente porque este Reitor,
enfim, após longos anos de negação da ordem constitucional, resolveu respeitar
o direito de greve e sua lei reguladora (Lei n. 7.783/89), que determina que a
continuidade dos serviços essenciais deve ser deliberada de comum acordo com os
trabalhadores em greve. A Carta dos Eméritos em questão representa, claramente,
a tentativa de supressão das instâncias institucionais, judiciais, para solução
de conflitos, buscando uma “solução” autoritária, ditada pelo império das
próprias razões e com uso da força do Estado impulsionada pela pessoalidade,
ferindo, inclusive, os princípios constitucionais do ato administrativo (art.
37).
A Carta serve, portanto, para
demonstrar como as articulações para um golpe fazem escola e para advertir
quanto é importante defender as instituições democráticas em momentos de pouca
tolerância e escassa racionalidade como o que vivemos.
Há, pois, uma emergência na
defesa das instituições democráticas e dos direitos sociais e humanos, não
representando isto uma defesa do governo e muito menos da impunidade.
O fato é que a quebra da
institucionalidade seria, por certo, um problema imediato para toda a sociedade
e, em especial, para a classe trabalhadora. Claro que não seria o fim da
história e pode até ser que deixar a crise do capitalismo chegar ao extremo,
como pretendem mesmo alguns setores do grande capital, conduza a um processo
dialético mais intenso, sendo compreensível, por isso, que parte da esquerda
também aposte na crise e até mesmo que parte do setor econômico, também
percebendo isso, comece a reduzir seus impulsos para estimular o aprofundamento
da crise econômica, política e institucional.
Mas não me parece que seja
racional e mesmo humano apostar no caos. O processo histórico dialético,
certamente, é complexo e imprevisível. De concreto mesmo o que se tem até agora
é um ajuste entre o governo e alguns setores da economia para fazer com que os
trabalhadores paguem a conta da crise, haja vista o advento abrupto, de cima
para baixo, de uma tal “Agenda Brasil”, que massacra os trabalhadores e
esfacela as instituições públicas.
Ocorre que sem uma oposição a
tudo isso, com a pretensão de corroborar a Agenda ou com o objetivo de apostar
no caos para incrementar uma ação revolucionária mas sem uma agenda concreta,
ou seja, não se apresentando ao menos uma racionalidade pautada pela
fundamentalidade da democracia e dos direitos sociais e humanos, que, bem ou
mal, trazem algum projeto, o que resta é apenas a sensação de uma completa
desordem, que elimina utopias. Isso não apenas atrai um individualismo
pragmático, mas também gera intolerância, alimentando ódios, violências,
linchamentos, reações xenófobas e até o advento de seitas fundamentalistas ou,
simplesmente, desesperança, desilusão e desânimo2. Não se trata, pois, de proposições
que favorecem a avanços, e sim a graves retrocessos.
É urgente, pois, tentar
estabelecer uma racionalidade sobre as complexidades que envolvem o ponto
central da vida na sociedade capitalista que é a relação capital-trabalho,
inclusive para aproveitar a força que está nas ruas, que não deixa de ser,
ainda, um reflexo de junho de 2013.
Em vez da classe que vive do
trabalho ficar acuada e temerosa quanto às possibilidades de retrocesso,
precisa retomar as ruas e colocar as suas pautas, que devem ser: a defesa da
democracia, das instituições públicas e dos direitos trabalhistas e sociais. É
totalmente pertinente, portanto, os lemas que correm entre os trabalhadores:
“nenhum direito a menos” e “os trabalhadores não vão pagar pela crise”.
Do ponto de vista jurídico,
impõe-se a defesa da ordem constitucional vigente, que instituída a partir da
noção de Estado Democrático de Direito, prevê, em seu artigo 3º, como objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III -
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Esta mesma Constituição, ademais,
fazendo menção às relações internacionais, deixa claro que o Estado brasileiro
se rege pelos princípios da prevalência dos direitos humanos (inciso II, art.
4º); da defesa da paz (inciso VI, art. 4º); da solução pacífica dos conflitos (inciso
VII, art. 4º); e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade
(inciso IX, art. 4º). A propriedade possui, necessariamente, uma função social
(conjugação dos incisos XXII e XXIII do artigo 5o e incisos II e III do art.
170 e art. 184).
A economia, por sua vez, deve
pautar-se pelos ditames da justiça social (art. 170) e os direitos sociais, no
projeto constitucional, foram alçados ao Título dos Direitos e Garantias
fundamentais. O artigo 6º garante a todos os cidadãos “a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. O art.
7º consagra o postulado da melhoria da condição social aos trabalhadores. E o
art. 9º confere aos trabalhadores o direito de lutar por meio da greve.
Desses dispositivos todos decorre
o princípio do não-retrocesso, que impede, concretamente, a redução de
direitos, sobretudo como fórmula para sair da crise. Além disso, impedem
dispensas coletivas e garantem aos trabalhadores os direitos de resistência e
de greve, para se oporem contra os ataques aos seus direitos e para lutarem por
melhores condições sociais e econômicas, que adviriam com a eliminação da
terceirização3, a garantia contra a dispensa arbitrária, a redução da jornada
sem redução salarial, a proibição do trabalho em horas extras de forma
habitual4, o respeito ao concurso para acesso ao serviço público, a reversão
dos efeitos da ADI 1923 (dos convênios no serviço público), a revogação das
leis n. 13.134/15 e n. 13.135/15 etc.
Sem a necessidade de qualquer
advento futuro, cumpre verificar que a jurisprudência trabalhista atual, que
começou a ser construída por ocasião da crise de 2008 para impedir que as
ameaças de desemprego fossem utilizadas como argumento para a diminuição de
direitos, já se posicionou claramente no sentido de que as dispensas coletivas,
que requerem comprovação dos motivos técnicos e econômicos por parte dos
empregadores, devem ser definidas em negociação coletiva com o sindicato dos
trabalhadores, considerando exercício abusivo do direito a dispensa que não
atenda a essa condição. Vide, a respeito: TRT 2ª R., SE 2028120080000200-1, AC.
SDC 00002/2009-0, j. 22.12.08, Relª Juíza Ivani Contini Bramante, LTr 73-03/354;
TRT 15ª R., DC 309-2009-000-15-00-4, AC. 333/09, DO de 30.03.09, Rel. José
Antonio Pancotti, LTr 73-04/476 e PROCESSO Nº TST-RODC-309/2009-000-15-00.4,
Rel. Ministro Maurício Godinho Delgado.
E mesmo essa negociação não pode
servir como mero instrumento de legitimação das dispensas vez que os
fundamentos da normatização coletiva são: a) fixar parâmetros específicos para
efetivação, em concreto, dos preceitos normativos de caráter genérico
referentes aos valores humanísticos afirmados na experiência histórica; b)
melhorar, progressivamente, as condições sociais e econômicas do trabalhador.
Assim, não cumpre aos
instrumentos coletivos, fruto das negociações coletivas, apenas autorizar as
dispensas de trabalhadores. Uma negociação coletiva neste sentido é
juridicamente inválida. O requisito jurídico, estabelecido pela jurisprudência
relacionada, não é formal, mas de conteúdo. Exige, pois, que se estabeleçam
compensações para que se chegue ao sacrifício dos trabalhadores, sacrifício
este que deve atingir, igualmente, a diretores e a acionistas da empresa. A
negociação, além disso, deve ser necessariamente precedida de demonstração da
dificuldade econômica e de estudos que demonstrem o resultado positivo da
diminuição de empregos, garantindo aos que ficam condições de trabalho em
padrões de quantidade, para que não se tente compensar a produção da saída de
trabalhadores com o aumento da produção dos que ficam. Além disso, a situação
deve se regular como temporária, fincando-se o compromisso da retomada da situação
anterior, já que o princípio do direito do trabalho é o da melhoria da condição
social dos trabalhadores e não o de se adaptar às deficiências do modelo
econômico.
O projeto constitucional é o da
justiça social e o que vem a ser justiça social? Nada mais é do que a
consideração valorativa de que todos os seres humanos estão integrados a uma
“família humana”, como consignado, aliás, na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, sendo certo que essa consideração faz com todas as pessoas,
pelo simples fato de terem nascido, devem ter acesso aos meios necessários que
lhes assegurem uma existência digna, isto é, sem passar por privações que lhe
impeçam a sobrevivência e a elevação moral, intelectual, física, psíquica,
econômica, social e política da sua condição humana, tomando-se esse acesso
como um direito, ou seja, como obrigação do Estado e de todos os demais
cidadãos nas suas correlações subjetivas, e não como mero favor.
A fórmula jurídica básica para se
estabelecer esse valor nas relações sociais emerge da fixação do princípio de
que “o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de
comércio, mas como colaboração livre e eficaz na produção das riquezas” (art.
427, da Constituição da OIT). Ora, lembrando-se que o capitalismo é um sistema
pelo qual a sociedade de classes se organiza polarizada em duas classes sociais
mais evidentes, uma que ostenta o capital e os meios de produção e outra que
para sobreviver precisa vender seu trabalho para a produção de mais valor em benefício
da primeira, o que só foi possível com a transformação histórica do trabalho
humano em força de trabalho, qual seja, em uma mercadoria como outro qualquer
que se comercializa com obediência da lei da oferta e da procura, de modo a
favorecer a reprodução do capital, ao se dizer que o “trabalho humano não é
mercadoria” estabelece-se um mecanismo com o qual se busca distribuir de forma
mais equânime a riqueza socialmente produzida, visando à satisfação dos
objetivos relacionados.
A função do Direito Social (em
especial, o Direito do Trabalho, por lidar com a relação básica da sociedade
capitalista, que é a relação trabalho-capital) é, portanto, distribuir a
riqueza coletivamente produzida, para fins não apenas de eliminar, por
benevolência, a pobreza, mas para compor o projeto de uma sociedade na qual
todos possam, efetivamente, adquirir, em sua significação máxima, o sentido da
cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo certo que um dos
maiores problemas que agridem a humanidade é a injustiça.
A defesa concreta da dignidade
humana é a expressão máxima do Direito Social, na medida em que vislumbra a
formalização das bases existenciais necessárias para que esses valores humanos
sejam efetivados, sendo de se destacar que a maior relevância do direito neste
assunto diz respeito às pessoas que estão em posição inferiorizada na sociedade
dos pontos de vistas político, cultural, social e econômico. A racionalidade
imposta pelo Direito Social deve permitir que se vislumbrem as angústias, as
dificuldades e as restrições que atingem todas as pessoas que integram a
sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente, incentivando
a prática de atos voltados à efetiva defesa dos seus direitos.
Do ponto de vista normativo, a
Declaração e Programa de Ação, fruto da Conferência Mundial dos Direitos
Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993, estabelece, em seu item 15, que
“o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem distinções de
qualquer espécie, é uma norma fundamental do direito internacional na área dos
direitos humanos”.
Conforme consta dos
“considerandos” da Declaração de Viena, de 1993, repetindo diretriz já traçada
na Carta das Nações Unidas, os Estados devem implementar políticas necessárias
para “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, de estabelecer
condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações emanadas de
tratados e outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, de
promover o progresso social e o melhor padrão de vida dentro de um conceito
mais amplo de liberdade, de praticar a tolerância e a boa vizinhança e de
empregar mecanismos internacionais para promover avanços econômicos e sociais
em benefício de todos os povos”.
A mesma Declaração destaca que
“todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e
inter-relacionados”, estabelecendo que “a comunidade internacional deve tratar
os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e
com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser
levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e
religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos
e culturais.”
Além disso, como signatário da
Declaração Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica,
de 1969), o Estado brasileiro deve responder à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos pelos seus atos e omissões que digam respeito às normas do
referido Tratado, podendo ser compelido pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos a inibir a violação dos direitos humanos e até a reparar as
conseqüências da violação desses direitos mediante o pagamento de indenização
justa à parte lesada (art. 63, Pacto São José da Costa Rica).
De fato, com todos esses
instrumentos normativos, válidos no âmbito nacional e internacional, nas mãos
de instituições que estejam em regular funcionamento, não é preciso se submeter
aos interesses eleitorais de alguns partidos políticos que se preocupam mais
com sua estrutura interna do que com as políticas públicas e que para se
preservarem fazem ajustes com segmentos econômicos específicos, em quatro
paredes, sem qualquer participação popular.
O funcionamento adequado dessas
instituições não é, de todo modo, uma questão de formalidade. É preciso que
busquem realizar uma atividade com a racionalidade do serviço público,
comprometendo-se, pois, com as causas e os interesses das pessoas em situação
fragilizada nos arranjos sociais, como, ademais, consta do projeto
constitucional, sendo que para que isso efetivamente ocorra é necessário que os
movimentos sociais, trabalhistas e populares estejam mobilizados e em luta
constante, porque é da força desses movimentos que a democracia social se
produz concretamente.
Não há a mínima possibilidade de
se realizar um projeto de Estado Social, conforme previsto na Constituição, sem
que se confira uma real possibilidade de mobilização dos segmentos da sociedade
mais diretamente interessados na conclusão dessa obra. Há uma urgência nesta
reivindicação do reconhecimento da legitimidade dos movimentos sociais, que
inclui, necessariamente, um claro direcionamento dos próprios poderes públicos,
que devem agir sob o comando da ordem jurídica, pois a incompreensão das
instituições acerca da vigência do Direito Social tem provocado uma situação de
intolerância frente aos movimentos sociais extremamente prejudicial à
democracia.
É essencial para a efetivação do
Estado Democrático de Direito Social que os movimentos sociais se mobilizem
para exigir das instituições, que até se beneficiam pela atuação popular em sua
defesa, que se empenhem de forma concreta para levar adiante o compromisso
internacionalmente assumido pelo respeito aos direitos humanos de índole
social, reconhecendo, sobretudo, os direitos de liberdade de expressão e de
reivindicação dos segmentos em situação de vulnerabilidade na sociedade:
sem-teto, sem-terra, desempregados, trabalhadores e trabalhadoras, estudantes,
mulheres, população LGBT, negros e negras, indígenas, pessoas com deficiência,
repudiando-se todas as práticas opressivas e repressivas, antissindicais,
antidemocráticas, discriminatórias e preconceituosas, pois só assim se pode
evitar o autoritarismo e caminhar em direção concreta na construção de uma
sociedade sem desigualdade social e econômica e que garanta as diversidades.
O momento, portanto, é de defesa
incondicional da ordem constitucional, dos direitos sociais e trabalhistas,
como forma de evitar retrocessos políticos, econômicos e sociais, de modo a
proporcionar meios para que se prossiga no avanço da realização do projeto
inacabado da condição humana.
São Paulo, 31 de agosto de 2015.
(*) Professor livre-docente de
Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.
1.
http://reporterbrasil.org.br/2014/07/mais-de-55-mil-trabalhadores-sofreram-acidentes-com-maquinas-em-2013/
2. Vide, a propósito, a crônica
de Denise Fraga, Chacina, Faxina e Lava Jato, publicada na Revista da Folha, em
30/08/15, p. 98.
3.
http://reporterbrasil.org.br/2012/04/terceirizado-esta-mais-sujeito-a-acidente-de-trabalho-diz-mte/
4.
http://reporterbrasil.org.br/2012/04/caminhoneiros-sao-os-trabalhadores-que-mais-morrem-no-brasil/
Créditos da foto: reprodução
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