quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Contra a imbecilização do mundo

Escrito por Carolina Mainardes / http://www.profissaomestre.com.br/

Diálogo. Para a escritora e filósofa Marcia Tiburi, esse é o termo que melhor explica a filosofia. “Para filosofar, a gente tem que aprender a dialogar”, afirma. Marcia acredita que, hoje, falta tanto diálogo quanto olhar para o outro. E inserir o diálogo na sociedade é, para ela, a grande contribuição da filosofia. Doutora em Filosofia, graduada em Filosofia e Artes, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e autora de romances, ensaios e vários livros sobre filosofia, Marcia esteve em Curitiba para participar do Litercultura 2015, no mês de junho, e conversou com a Profissão Mestre. A autora acredita que, na escola, a filosofia deve ser encarada como uma contribuição para as pessoas experimentarem um processo de reflexão. No entanto, a filósofa alerta que o conteúdo deve ser abordado com base na cultura e nas questões contemporâneas, relacionadas a quem está na sala de aula. “Se não forem trabalhados com metodologias contemporâneas, esses conteúdos históricos [da filosofia] podem se tornar realmente enfadonhos”, adverte. Acompanhe a entrevista a seguir.

Profissão Mestre: Como você define filosofia?

Marcia Tiburi: Filosofia é um trabalho de linguagem que você faz com outra pessoa. É um processo de pensamento na base da linguagem, e o termo que mais explica a filosofia é diálogo. Para filosofar, a gente tem que aprender a dialogar. O problema é como dialogar, porque não é só conversar, não é só falar, também não é só escutar, precisamos colocar a dimensão do outro em perspectiva. E precisamos imaginar também, por isso necessitamos de um pouco de fantasia – mas em dose discreta –, sobre o que o outro pode estar entendendo daquilo que falamos. Então é difícil. Bater um papo já é difícil, às vezes. Conversar é difícil. Trocar uma ideia é difícil. E dialogar, que é uma forma profunda, porque envolve reflexão e acabamos sofisticando um pouco por meio das palavras e por conta da estrutura das frases, fica bem difícil. Mas acho que esse é o desafio de nossa época. A filosofia tem o diálogo como tarefa histórica e a grande contribuição que ela tem para nossa época é colocá-lo na sociedade. Falta diálogo, falta olhar para o outro, falta se perceber também como outro do outro.

Profissão Mestre: E como você avalia o ensino de filosofia nas escolas? Por que ela é uma disciplina que, em alguns casos, desagrada aos alunos do ensino médio?

Marcia: Há vários fatores que contribuem para uma experiência negativa com os conteúdos e os métodos da filosofia como disciplina. De um lado, existe um currículo pesado, voltado para a história da filosofia, que é algo interessante, mas que se não for trabalhada com metodologias contemporâneas, que envolvam a cultura e questões contemporâneas, e a experiência das pessoas que estão em sala de aula, pode tornar-se realmente enfadonha. Esses conteúdos históricos se tornam interessantes, para crianças e jovens estudantes, quando você faz conexões com o cinema, a literatura contemporânea, as notícias de jornal, a cultura pop. Ninguém consegue aprender fora de uma experiência afetiva, e essa experiência afetiva não é só uma experiência com o professor “bonzinho”. Ela tem relação com aquilo que nos chama atenção num conteúdo, quer dizer, o que estou vivendo, o que estou entendendo desse mundo, o que estou fazendo com as outras pessoas e por que posso me interessar por determinado conteúdo. Com a filosofia é a mesma coisa. Por exemplo, não adianta ensinar história da filosofia contando porque [Immanuel] Kant escreveu a Crítica da razão pura. Isso não interessará a uma pessoa jovem e dificilmente interessará a qualquer pessoa, em abstrato. Mas quando as pessoas percebem que certas questões que estavam, na época de Kant, colocadas para ele ainda são nossas [questões], tudo muda de figura. A filosofia também, em seu ensino, transforma-se em um diálogo com uma tradição. Não precisa ser só a tradição e não precisa ser só a tradição europeia. Acho muito bacana darmos aula de filosofia juntando conteúdos da cultura africana, da cultura asiática, da cultura de várias épocas. Acho muito legal mexermos com filosofia, hoje, falando das mulheres na história da filosofia. Para mim, filosofia nunca foi um conteúdo puro e simples. Claro, quando a gente fala de disciplina, existe também a questão do conteúdo. Mas filosofia mesmo é o método. E método significa o que estamos fazendo com determinado conhecimento, como chegamos a esse conhecimento e como trabalhamos esse conhecimento. Em filosofia, conhecimento é processo. Em sala de aula posso usar elementos e conteúdos que não têm relação com a tradição da história da filosofia para ajudar a garotada a pensar. A questão é como eu [professor] contribuo para as pessoas experimentarem um processo de reflexão.

Profissão Mestre: O aluno da atualidade tem um perfil ligado às novas tecnologias. É necessário adaptar o ensino da filosofia para gerar interesse?

Marcia: Acredito que sim. Nós que somos professores precisamos saber disso. Conviver com essas tecnologias é essencial, mas não se pode perder de vista que educação é formação humana. E tem algo que as tecnologias não nos dão – inclusive elas nos tiram –, que é nosso encontro, nossa capacidade de produzir afeto sem sermos interrompidos por um elemento objetivo ou objetificante. As tecnologias são inevitáveis, mas temos também que aprender a refletir sobre o caráter de dispositivo e de poder dessas tecnologias que se atravessam entre nós a todo momento.

Profissão Mestre: Em seus livros, você tem a intenção de tornar a filosofia mais acessível ao público?

Marcia: O problema é: qual filosofia? Não tenho nenhuma intenção de popularizar a filosofia, esse não é meu problema. No senso comum, na escola, há algo que foi produzido por certa teoria vendida no Brasil, que [defende que] filosofia é uma tradição de pensadores e de pensamento desses pensadores. Se as pessoas acham que o professor de filosofia ou que o filósofo hoje é um tradutor dos velhos textos, realmente acho isso chato, nada contra quem faz, mas eu não quero fazer. Eu penso a minha maneira, escrevo a minha maneira. Alguns de meus livros têm uma proposta de conversar com pessoas que não estão interessadas naqueles conteúdos supereruditos – [conteúdos] em que, às vezes, eu também estou superinteressada. Filosofia brincante [Ed. Galerinha Record], livro que fiz para e com crianças, é uma ideia que vale a pena ter sido feita no Brasil contemporâneo. Penso em fazer filosofia com meu tempo. Não necessariamente para meu tempo, não sei se não vou ser devorada por ele também. Quando fiz, em 2014, o livro Filosofia prática [Ed. Record], coloquei como epígrafe um texto de Roland Barthes: “Por que não falar a língua de todo mundo?”. Preciso, eu, falar o jargão acadêmico para desenvolver uma ideia? Quando estamos num jogo de história da filosofia, somos todos entendidos em [Friedrich] Hegel, somos todos leitores da fenomenologia e conseguimos comparar a Filosofia do Espírito com a Filosofia do Direito e com a Enciclopédia das ciências filosóficas. Podemos abordar isso com os termos adequados e que demonstram competência e erudição no caso dos estudos específicos desse tipo de autor. Isso é uma coisa. Outra coisa é a gente explorar a experiência cultural de nossa época e discutir com essa experiência cultural. Hoje me interesso por fazer uma filosofia da cultura brasileira, uma filosofia da mídia, uma filosofia feminista, uma filosofia política. Gosto muito de pensar tudo isso com a educação como [uma área] ético-política, do mesmo jeito que penso o próprio feminismo. Para mim, filosofia é isso também. A filosofia não é uma abstração tampouco é um conteúdo dado. Filosofia é uma ação teórica, que envolve diálogo, por isso essa ação teórica se manifesta na prática. Estamos sempre envolvendo, provocando, causando efeitos performáticos uns nos outros, e essa experiência é a que vale, porque estou vivendo o meu tempo, assim como você [está vivendo o seu tempo].

Profissão Mestre: É possível falar de filosofia para crianças? Você faz isso na obra Filosofia brincante?

Marcia: As crianças falam filosoficamente. Vamos ficando adulto e parece que vamos emburrecendo. As crianças são tão livres para o pensamento reflexivo, elas não têm medo da dúvida, elas perguntam. E essa ação da pergunta, que às vezes até pode parecer meio ingênua, leva a criança a perguntar coisas que perdemos a coragem de perguntar. A criança tem essa coragem de perguntar, essa coragem de pensar. É muito mais fácil fazer filosofia com crianças. E esse livro foi lido por muitos adultos.

Profissão Mestre: A ética também deve ser um tema abordado na escola? É mais difícil falar desse tema quando as instituições mais poderosas do país e do mundo dão exemplos de corrupção e de falta de ética cotidianamente?

Marcia: Fiz um livro chamado Diálogo educação (Ed. Senac) com uma professora do Rio Grande do Sul chamada Nadja Hermann, na forma de diálogo, para mostrar que estamos precisando disso. Nesse livro, a gente discute essa questão da educação como ética. A educação é uma questão política, mas também é uma questão ética. Ela nos envolve e implica a cada subjetividade. A educação que temos hoje, no Brasil, deriva ainda desse massacre histórico-cultural que foi a ditadura militar e de todos os acordos imperialistas que o Brasil viveu nesse campo. O que temos hoje é o que deriva desse massacre da educação, então as coisas ficam muito perigosas porque não temos uma educação que quebre com a pura repetição, com a pura preparação para o trabalho com a transformação de crianças, que são seres humanos, potências criativas, construtivas, políticas, sociais. A transformação dessas crianças [resulta] em trabalhadores ignorantes, dessensibilizados, com problemas emocionais pesadíssimos, confusas em relação a questões políticas. Falo isso porque a questão ética não é questão moral, é questão da construção de si [mesmo]. E a educação é ética enquanto ela é a construção de cada um. Mas temos uma coisa maluca no Brasil, em que há uma espécie de antieducação, uma educação que não funciona para nada, a não ser para humilhar e machucar as pessoas. A gente precisa de muitas transformações, algumas muito sérias, na política, no desenvolvimento de políticas públicas que realmente tenham objetivos libertadores e emancipatórios para as pessoas. Temos esse problema sério, político e, ao mesmo tempo, precisamos de políticas para a formação de professores, precisamos investir nisso e nas escolas. O que falta é investirmos em campanhas de valorização da educação. O sistema econômico e político no qual vivemos desvaloriza a educação, e isso vem de décadas atrás. Aliás, é a história do Brasil. O Brasil teve projetos isolados aqui e ali, mas não dá pra dizer que tivemos um tempo maravilhoso na educação. Tivemos sempre uma educação que foi de mal a pior. E, em certos momentos, ela foi sacrificada. Precisamos de campanhas que pudessem valorizar a educação nos âmbito da escola, da família e da cultura, porque as pessoas olham para o professor, a educação, os livros, a cultura, o conhecimento – quando conseguem colocar essa palavra “conhecimento” como uma palavra do seu cotidiano –, muitas vezes, com muito preconceito e ignorância. A educação precisa ser, sobretudo, um projeto de luta contra a imbecilização do mundo, contra essa ignorância prepotente que não enxerga o outro e oferece sempre um ponto de vista pronto sobre a realidade.

Profissão Mestre: Questões de interesse geral, como democracia, liberdade, política e preconceito, podem ser abordadas com base em preceitos filosóficos. Mesmo assim, poucas pessoas se interessam por esse tipo de abordagem. Qual o prejuízo para um país que considera a filosofia algo erudito? É possível levar esse conhecimento às camadas populares?

Marcia: É uma grande questão. Esse conhecimento deveria ser levado, inclusive, às elites, antes das camadas populares. Por que estamos pensando naquela pessoa que não teve chance de ser mais bem escolarizada? O problema do Brasil é um problema seriíssimo e envolve voltar atrás, no espaço. A desigualdade social é uma grande questão nesse contexto. Há também uma desigualdade educacional que não favorecerá ninguém. No limite, favorecerá meia dúzia de pessoas. Essa meia dúzia de pessoas não é o todo que importa e precisa ser levado em consideração numa democracia. Uma democracia implica podermos construir uma sociedade boa, decente, justa, igual para todas as pessoas, e hoje isso vai de mal a pior. Precisaríamos construir currículo, políticas escolares, políticas públicas e políticas de modo geral que pudessem nos levar a um desejo de reflexão. E é com isso que a filosofia trabalha. Houve, no Brasil, depois da ditadura militar, uma aproximação vagarosa com a filosofia. Eu mesma, quando estudei, fui fazer Filosofia no período da abertura política, no fim dos anos [19]80. Ninguém [nessa época] fazia Filosofia, eu era um ET. Hoje já vejo muita gente estudando filosofia, muitos livros de filosofia. Aconteceu muita coisa bonita com a filosofia no Brasil em termos de eventos, de programas de televisão, mas estamos de novo em um momento autoritário, tanto que desaparecem das mídias os atores mais críticos dessa cena. É um momento autoritário – em que as pessoas são autoritárias e acreditam que estão com razão em relação a vários aspectos da vida e das relações – e precisamos superá-lo. Podemos superá-lo fazendo um processo na contramão [do autoritarismo], usando as redes sociais, divulgando e chamando as pessoas. Mas, sem dúvida, fica tudo ainda muito desorganizado. Isso precisaria se tornar uma questão fundamental para a educação brasileira. E a educação é uma questão fundamental para a política brasileira.


 Entrevista publicada na edição de setembro de 2015.

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