A participação dos EUA e da
própria CIA está mais do que comprovada numa tragédia para expulsar um
presidente que vinha materializando avanços sociais
Leonardo Wexell Severo, de
Assunção – Paraguai / www.cartamaior.com.br
Os advogados dos trabalhadores
sem-terra julgados pela morte de seis policiais em Marina Kue, no município de
Curuguaty, conseguiram novamente nesta quarta-feira, em Assunção, suspender o
processo, que se cala a respeito dos 11 camponeses que também perderam a vida
na tragédia. Desta vez, o julgamento foi paralisado devido à postura arbitrária
dos juízes do Tribunal de Sentença do Paraguai, que sequer disponibilizaram
tradutores para o guarani – a língua dos acusados – como já havia sido
determinado previamente.
“Libertad, libertad, a los presos
por luchar” comemoraram as dezenas de militantes dos movimentos sociais,
intelectuais e familiares dos sem-terra, que tomaram o plenário acompanhados
por “pyragues” – espiões do governo de Horacio Cartes.
“Queriam pisotear até mesmo o
direito linguístico dos camponeses, mais um atropelo feito por esta justiça
politizada, paga, que está recebendo ordens de fora e tem de desaparecer”,
declarou Pablo Aguayo, advogado dos sem-terra, rechaçando o elitismo de um
setor considerável do judiciário paraguaio, que quer silenciar a língua da grande
maioria do seu próprio povo.
De acordo com Pelao Carvallo, da Articulação
Curuguaty, que engloba várias entidades populares solidárias à luta pela terra,
“o fato é que, para os juízes, falar em guarani nesse ambiente refinado
representaria um desprestígio. “Para a elite, a formulação é feita em
castelhano ou inglês, o apego ao guarani é somente para que suas decisões sejam
entendidas e suas ordens cumpridas. Ou para ganhar votos”, frisou.
TIERRAS MAL HABIDAS
No dia 15 de junho de 2012,
lembrou Margarita Duran, professora de História e intelectual, houve um
confronto em Marina Kue, nas terras “mal habidas” – que pertencem ao Estado,
entregues pelo poder público a apaniguados ou simplesmente tomadas por latifundiários.
Sendo assim, o local não poderia ter sido objeto de “despejo” para satisfazer a
um grande proprietário – como Blas Riquelme – que chegou a comandar o partido
do ex-ditador Alfredo Stroessner, da mesma forma como o pai do promotor Jalil
Rachid, que trabalha incansavelmente pela condenação das vítimas.
“Há um julgamento absurdo, como
se apenas os policiais mortos fossem pessoas, desconsiderando totalmente os
camponeses. Estão vomitando uma sentença de 25 anos de prisão. O promotor
Rachid não quer perder tempo, pois pretende criminalizar a luta pela terra, a
fim de que o caso sirva de exemplo”, assinalou Margarita Duran. Segundo a
professora da Universidade Católica de Assunção, “embora seja lastimável,
acabamos sendo privilegiados por assistir a um caso que será estudado durante
anos, da mesma forma como o de Gastón Gadín”.
DEFENDER OS DIREITOS HUMANOS
Último fuzilamento ocorrido no
Paraguai, em 1917, o francês Gastón Gadín era menor de idade quando foi
condenado à morte pelo assassinato dos pais. A lei paraguaia não permitia a
execução da sentença contra um menor. Sem a certidão de nascimento, a lei
estabelecia que um médico fosse convocado para “comprovar” quantos anos tinha.
Sob a pressão da opinião pública, foi sentenciado. “A certidão finalmente
apareceu: Gadín era menor de idade. Como cidadãos preocupados com os direitos
humanos isso deve nos fazer refletir”, disse Durán.
De acordo com Clyde Soto Badaui,
do Centro de Documentação e Estudos (CDE), de uma forma evidente, “o julgamento
de Marina Kue foi armado para condenar os camponeses”. “Aos poucos, pelo
ativismo nacional e internacional, fomos desarmando, desmontando os argumentos
da acusação, demonstrando que há um padrão de atuação da repressão contra os
movimentos sociais que exibe todo o seu esplendor neste massacre. A partir daí
há um processo político que está sendo freado pela determinação e valentia dos
acusados”, destacou.
O advogado Aguayo reitera a
inocência dos camponeses: “isso é comprovado pelo vídeo do ABC Color, que
mostra que não foram eles que iniciaram os disparos”. “Mais do que nunca é
preciso investigar a fundo para saber quem foram os responsáveis, para castigar
os mandantes. Temos o dever moral de salvar a Justiça e para isso fazemos um
apelo à Corte Suprema”, enfatizou.
A participação dos Estados Unidos
e da própria CIA, conforme a professora Margarita Duran, “está mais do que
comprovada”, não só pelo envolvimento dos franco-atiradores como de todo a
extensa e complexa rede armada. Uma intervenção de 324 soldados contra menos de
60 sem-terra - metade deles mulheres, crianças e anciãos - desemboca
rapidamente numa tragédia para expulsar um presidente que vinha materializando
avanços sociais, e isso não é investigado, mas banalizado, porque abriu espaço
ao impeachment. “Não pensaram nas consequências, que as pessoas iam se
perguntar. O helicóptero militar sobrevoou para filmar e fotografar o
acampamento. Onde está a filmagem? Agora o piloto, que era uma testemunha
chave, morre. É muita sujeira”, assinalou.
Para Marta Almada, representante
do Serviço de Paz e Justiça (Serpaj) na Articulação Curuguaty, o julgamento
escancarou a existência de um sistema de justiça que viola todos os direitos
humanos e que é altamente excludente, uma vez que só foca na morte dos
policiais sem dar o mínimo espaço ao contraditório. No vídeo Desmontando
Curuguaty, conta Marta com orgulho, contribuímos para a “desconstrução
comunicacional que havia contra os camponeses, apontando as inúmeras
irregularidades do processo”.
Os grandes conglomerados de
mídia, assinalou Liz Torres, da coordenação do Serpaj, “tentam construir no
imaginário coletivo uma verdade com toda a montagem do julgamento”. Mas aos
poucos, pondera, o cenário de mentiras e manipulações vai se decompondo, pois
“a força da articulação entre as vítimas diretas construiu uma unidade muito
forte de enfrentamento ao sistema, e conseguiu calar fundo”. “Agora, até mesmo
os familiares dos policiais não fazem acusação direta aos camponeses”,
asseverou.
No entendimento de Cristina
Coronel, também coordenadora do Serpaj, a verdade “única e oficializada”, que
coloca os camponeses como vagabundos e delinquentes, vai se dissipando e dando
lugar a visões cada vez mais críticas. “O trabalho cuidadoso e sério
desenvolvido pela Articulação Curuguaty e pelas entidades populares que se
somaram ao movimento de solidariedade se instalou na agenda social e política
do Paraguai para que o julgamento não passasse despercebido. Não é fácil, mas
com a ação nacional e o apoio internacional começamos a enfrentar este fato
emblemático da nossa história, apontando seus vícios e iniciando seu
desmantelamento, o que fez com que a própria imprensa também começasse a
duvidar. É uma ação rigorosa, que representa uma ameaça ao sistema”, concluiu Cristina.
Créditos da foto: Cony Oviedo
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