terça-feira, 15 de setembro de 2015

Graças a Deus pela Alemanha

Kramer / Wikimedia Commons
A Europa já acolheu refugiados belgas; judeus antes da Segunda Guerra; alemães; húngaros; mas geralmente todos tinham um ponto em comum: eram brancos.

Robert Fisk / www.cartamaior.com.br

Em 1940, quando nós, britânicos, aguardávamos uma invasão alemã a qualquer momento, funcionários públicos de Kent foram informados de que os refugiados que se encontravam nas estradas deviam ser deslocados para o campo. Aqueles que se recusassem "levariam um tiro". Logo que meu pai, um inválido veterano da Primeira Guerra Mundial, me deu este documento mimeografado, quando eu era estudante, na década de 1960, percebi o quão assustador era. Ele era comandante da Guarda local em 1940 – sim, este era o Exército do meu pai – e eu mandei uma fotocópia do documento para o Museu da Guerra Imperial. "Um tiro". Não uma execução após julgamento legal, repare. Um tiro. Montgomery não queria refugiados obstruindo as estradas da Grã-Bretanha como houve na França, quando impediram o avanço de suas tropas em direção a Dunquerque. Alguns britânicos mortos eram um pequeno preço a pagar se quiséssemos derrotar a Wehrmacht.

"Refugiados" sempre foi uma palavra problemática. Pessoas que procuram "refúgio". De que? A idéia, meu pai então achava, era que os "refugiados" estavam fugindo. Por isso o governo britânico colocava cartazes dizendo ao povo que "ficasse parado". Que não dificultasse o trabalho de nossas tropas. Não ficasse no caminho. Não fosse um incômodo. As pessoas fugindo para salvar suas vidas – e preocupadas com as vidas daqueles que amavam – sempre foram tratadas como uma peste. Em primeiro lugar, os soldados! Estávamos preocupados com uma invasão de soldados alemães. A última coisa que queríamos era uma invasão de refugiados.

Os invasores reais já eram bastante assustadores: Átila; Genghis Khan – cujas ruínas ainda se encontram no meio das ruínas modernas da cidadela de Alepo; e os Cruzados – que atacavam tanto cristãos bizantinos quanto muçulmanos e judeus de Jerusalém; e por fim o exército do Profeta. A história romana sugere que as tribos germânicas podem ter tido boas razões econômicas para avançar em direção ao Mediterrâneo – mas duvido que os romanos tenham preparado garrafões de água e sanduíches quando os godos, visigodos e ostrogodos se aproximaram das portas de Roma.

Poderíamos traçar os caminhos e as trilhas verbais desses invasores/refugiados. Na universidade, estudei linguística e durante semanas rastreamos o grupo de língua húngara que caminhou costeando o Báltico até a Finlândia, ou como a língua latina se moveu através do que chamamos hoje de países de línguas românicas, e ainda como o gaélico foi da Irlanda para a Escócia. Tendo feito um curso de gaélico para a minha tese de doutorado em Dublin, posso inclusive ler nomes escoceses no original. E quando cobri as guerras dos Bálcãs – eu me definia como o correspondente otomano, em contraste com os jornalistas especializados que lá viviam – pude ver como a língua dos árabes, passando pela Turquia, tornou-se servo-croata. Em árabe, "gezira" significa "ilha". Em servo-croata, significa "lago". Bastante próximo. Levou mais tempo para eu entender Gorni Vakuf, na Bósnia. "Vakuf" – um segundo nome de cidade bem familiar – é a corruptela de "Waqf" no Balcãs – que, em árabe, significa doação islâmica.

Migração é história, mas a história se move de forma misteriosa. Em sua tese de doutorado, o grande romancista iugoslavo Ivo Andric explicou como os turcos dividiram os povos ortodoxos e católicos cristãos dos Balcãs, e como %u20Bos convertidos eslavos ao Islã eram usados para desestabilizar os cristãos – porque eram a classe média e queriam manter suas terras sob o domínio otomano – e é claro que o pobre Andric morreu antes das guerras dos Balcãs da década de 1990. Os muçulmanos iriam mais tarde acusá-lo de ser um criminoso de guerra. O comandante de um campo de concentração, um homem chamado Popovic, me diria um dia que os muçulmanos devem ser chamados de "turcos". Esses Eslavos que se converteram ao Islã no século 14 nunca poderiam adivinhar o destino de seus descendentes bósnios muçulmanos.

Os alemães do Volga, do século 18 – convidados para ir para a Rússia pelo Tsar por suas proezas na engenharia – também nunca poderiam imaginar que os sucessores comunistas do Tzar acusariam seus descendentes de colaborar com o mesmo Wehrmach que meu pai devia combater – se os refugiados deixassem – em 1940. E vamos encarar os fatos, nem as dezenas de milhares de muçulmanos que hoje são cidadãos europeus poderiam pensar que uma aberração como o ISIS surgiria e os transformaria todos em potenciais suspeitos. Lembro-me de conversar com um policial francês em Paris, durante uma manifestação de franceses muçulmanos, e de ele ter usado a palavra "beure" para descrevê-los: não "beurre", que significa "manteiga" em francês, mas "beure", que é "árabe" dito de trás para frente, na pronúncia francesa.

Sim, é um caminho tortuoso passar de invasor a refugiado a imigrante a cidadão. E pobre de quem acredita que as palavras não podem tomar o caminho inverso. Os ingleses sempre enviaram homens para a Irlanda para impregnar as boas moças irlandesas com o melhor. Ao longo de três séculos, nós "Angles" realmente acreditamos que poderíamos cortejar as escocesas. Mas os ingleses sempre acabavam recorrendo às irlandesas. Eles "se tornaram nativos". E até gostavam da Irlanda. E se tornaram irlandeses. Bons protestantes, tornaram-se bons católicos. Tornaram-se, na verdade, bons irlandeses.

Quanto à política, alguns refugiados – que não têm a opção de "ficar parados" – são sim de nossa responsabilidade. Refugiados palestinos, centenas de milhares deles, são de nossa responsabilidade. Como fizemos promessas incompatíveis para seus avós e para os judeus cem anos atrás, achamos que isso de alguma forma nos exime de qualquer obrigação. Mas um palestino que vive hoje nos campos de refugiados do Líbano, e acorda todas as manhãs em tendas cobertas de sujeira armadas entre becos com esgoto a céu aberto, está vivendo os resultados diretos da declaração de Balfour. Para eles, foi ainda ontem que Lord Balfour assinou sua declaração de 1917, prometendo o apoio da Grã-Bretanha a uma pátria judaica na Palestina. A tinta da caneta ainda está fresca no papel. Os americanos estavam muito próximos da história para ignorar sua dívida com os refugiados vietnamitas: a TV trouxe o peso da culpa para bem perto. Para alguns de nós mais fossilizados, no entanto, as coisas são menos claras quando se pensa nos iraquianos que estão entre os novos refugiados da Europa. Afinal de contas, alguns de nós não morreram para eles se libertarem de Saddam? Como ainda ousam vir nos pedir uma nova casa?

No entanto, todos nós temos nossos momentos UKIP/Daily Mail (partido político e jornal ingleses de direita). Eu tive o meu na Estação Central de Oslo, no inverno de 2012, quando estava a caminho da Suécia, pelo The Independent, para investigar como explosivos suecos tinham chegado até rebeldes anti-Assad em Alepo. (Nota: os explosivos estavam escondidos em caminhões próprios para as estradas nevadas escandinavas, exportados pela %u20B%u20BVolvo para a Síria antes da guerra). Mas na estação de Oslo, encontrei bandos de jovens paquistaneses selvagens, de jaquetas de couro, rondando o saguão de passageiros às seis da manhã, de olho nos passageiros cansados. Eram gangues de ladrões, parte do cotidiano da estação. E me peguei me perguntando por que esses jovens paquistaneses queriam trazer a máfia de Karachi para este belo país e seu povo culto e generoso? Pouco depois, me fiz a mesma pergunta sobre pessoas do mesmo país que abusaram de mulheres jovens em uma cidade britânica.

Quando eu estava na escola, um padre idiota ("Professor de Assuntos Religiosos" era seu título absurdo) tentou nos convencer de que o cristianismo se tratava de ser "testado". Deus estava nos testando, não apenas dando-nos instruções para obedecer (como Ele – Deus, não o padre – supostamente fazia com os muçulmanos). Mas a Europa pós-guerra – ou, pelo menos, a Europa ocidental – está sendo realmente testada agora. Pensávamos que o nosso Dia do Juízo Final envolveria um teste de nosso amor pela guerra: a morte de Hitler não pôs um fim à tentação de uma Terceira Guerra Mundial?

Mas passamos por esse teste. Muito bem. Agora descobre-se que o que está sendo testado mesmo não é nossa natureza supostamente beligerante, mas nossos sermões moralistas e proselitistas. Demos lições às ditaduras árabes muçulmanas (cujos chefes criminosos apoiávamos com dinheiro, armas e formação em técnicas de tortura) sobre a necessidade de direitos humanos, igualdade e justiça. Então, de repente, exatamente desta região, vêm centenas de milhares – talvez milhões – de pessoas que decidiram, em um momento de agonia, que gostariam de pôr suas vidas nas mãos dessas pessoas bonitas que vinham ensinando-os há tantas décadas sobre os benefícios do Céu na Terra. Este paraíso incrivemente rico – uma terra de leite e mel literalmente disponíveis em qualquer supermercado – vinha há anos exaltando sua promessa de bondade humana, de elevados padrões de direito e justiça. Agora, essas pessoas queriam ter acesso a ele.

E nós – neste momento crítico da história do nosso continente, da história da União Europeia, e do que já foi chamado de "cristandade" – fomos reprovados no Grande Teste. Nossas nações tão perfeitas não quiseram essas pessoas miseráveis. Elas agora são sanguessugas, mosquitos humanos, contrabandistas de pessoas, um "enxame". E se os farrapos de nossa integridade como seres humanos foram recuperados nas últimas semanas foi graças à austera ética protestante de uma dona de casa da Alemanha Oriental que pode entrar para a história (ou não, lembremo-nos dos seus ancestrais, pelos quais meu pai devia atirar em seus próprios refugiados) por ter salvado nossa alma.

Se a nossa generosidade foi tão longe e acolheu refugiados belgas na Primeira Guerra Mundial, judeus antes da Segunda Guerra, alemães depois, húngaros fugindo do levante de 1956, e até alguns sobreviventes de Chernobil (alguns pouco antes de morrer), estes tinham, geralmente, alguns pontos em comum: eram brancos – ou perto o suficiente disso para não fazer diferença – europeus – ou perto o suficiente disso para não fazer diferença – e eram de nosso mundo monoteísta. Os refugiados bósnios de início da década de 1990 eram de maioria muçulmana, claro, mas tinham cara de europeus e eram europeus, e sua versão do Islã era, para nós, pitoresca, mais do que religiosa: mesquitas cobertas de neve em vez de quentes, uma bem-vinda pitada de culinária oriental acompanhada de Slivovica (bebida destilada à base de ameixa, típica dos balcãs).

Mas os caras que hoje acampam no norte da França, enquanto tentam chegar a Dover, são, como os amigos racistas do meu pai costumavam dizer, "tão pretos quanto o ás de espadas". Ou pelo menos um pouco pretos. Ou marrons. Mesmo os cristãos etíopes – que passariam no teste de cristianismo – serão reprovados na prova de cores. Temo que seja por isso que choramos pelo pobre Aylan al-Kurdi. Sua religião muçulmana (tal como ele a teria entendido nessa idade) era anulada pela origem curda – uma vez que os curdos são um povo bravo e guerreiro que admiramos, apoiamos, e geralmente traimos. Nós choramos por ele não só porque ele era uma inocente criança de três anos, mas porque era uma criança inocente de três anos branca.

Só mais uma observação – e digo isto pela primeira vez na vida, como filho de um pai que lutou contra os soldados do Kaiser no Somme, e de uma mãe que consertava rádios de Spitfires danificados durante a Segunda Guerra.

Graças a Deus pela Alemanha.

Tradução de Clarisse Meireles

Créditos da foto: Kramer / Wikimedia Commons

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