Por seis meses, contra todos, a Grécia foi pregada ao
pelourinho por seus parceiros em reuniões intermináveis. A União Europeia
revelou na ocasião uma face intransigente, vingativa. Ministro grego das
Finanças durante os enfrentamentos entre Bruxelas, Berlim e Atenas, Varoufakis
retoma diversos episódios da guerra que viveu
por Yanis Varoufakis / http://www.diplomatique.org.br/
Em 2010, o Estado grego perdeu a capacidade de garantir o
pagamento de sua dívida. Em outros termos, ele se tornou insolvente e se viu
privado do acesso aos mercados de capitais.
Preocupada em evitar a falência dos bancos franceses e
alemães já fragilizados, que tinham emprestado bilhões aos governos gregos tão
irresponsáveis quanto os próprios bancos, a Europa decidiu conceder a Atenas o
mais importante plano de ajuda da história. Com uma condição: que o país
realizasse uma consolidação orçamentária (fenômeno mais conhecido como
austeridade) de uma amplitude nunca antes imaginada. Sem surpresa, a operação
provocou uma queda da renda nacional sem precedentes desde a Grande Depressão.
Foi assim que se desencadeou um círculo vicioso pelo qual a deflação,1
consequência direta da austeridade, aumentou o fardo da dívida e lançou a
hipótese de seu reembolso para o campo do irrealizável, abrindo o caminho para
uma crise humanitária considerável.
Durante cinco anos, a Troika dos credores – Fundo Monetário
Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia
representando os Estados-membros que tinham emprestado dinheiro para Atenas –
bateu cabeça com um impasse para o qual os especialistas em finanças têm um
nome: extend and pretend, ou estratégia do “como se”. Isso consiste em
emprestar ainda mais a um devedor insolvente como se ele não o fosse, a fim de
não ter de registrar perdas em seus títulos. Quanto mais os credores se
obstinavam, mais a Grécia afundava na crise econômica e social e menos se
tornava reformável.
Foi por essa razão que nosso partido, o Syriza, ganhou as
eleições legislativas de janeiro. Se a população estivesse convencida de que a
Grécia estava se reerguendo, não teríamos sido eleitos. Nosso mandato era
simples: acabar com a estratégia do “como se” e com a austeridade que a
acompanha; e demonstrar que podíamos realizar as reformas profundas de que o
país precisava com o consentimento popular.
Em minha primeira reunião do Eurogrupo,2 em 11 de fevereiro,
entreguei a meus interlocutores uma mensagem simples: “Nosso governo será um
parceiro digno de confiança. Faremos de tudo para encontrar um entendimento com
o Eurogrupo, nas bases de uma estratégia de três pontos, visando responder às
dificuldades econômicas da Grécia: 1) uma série de reformas profundas visando
melhorar a eficiência de nossas instituições e lutar contra a corrupção, a
evasão fiscal, a oligarquia e a renda; 2) o saneamento das finanças do Estado
graças a um superávit primário3 modesto, mas viável, que não exige esforços
muito importantes do setor privado; 3) uma racionalização, ou uma reavaliação
da estrutura de nossa dívida, de modo a obter esse superávit primário e a taxa
de crescimento requerida para otimizar o reembolso de nossos credores”.
Alguns dias antes, em 5 de fevereiro, eu tinha feito minha
primeira visita a Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças alemão. Tinha
tentado tranquilizá-lo: ele podia contar conosco para pensar em propostas que
não iriam apenas ao encontro dos interesses da população grega, mas também ao
de todas as populações europeias.
Infelizmente, nenhuma de nossas nobres intenções suscitou o
menor interesse das pessoas de comando na União Europeia. Teríamos um duro
aprendizado ao longo dos cinco meses de negociação que se seguiriam...
Em 30 de janeiro, alguns dias depois de minha nomeação para o
cargo de ministro, o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, me visitou.
Poucos minutos se passaram e ele já me perguntou o que eu pretendia fazer a
respeito do memorandum, o acordo que o governo precedente tinha assinado com a
Troika. Respondi que nosso governo tinha sido eleito para renegociá-lo; em
suma, que iríamos solicitar a revisão, em linhas gerais, das políticas
orçamentárias e das medidas que tinham causado tantos danos ao longo dos
últimos cinco anos: queda de um terço da renda e mobilização do conjunto da
sociedade contra a simples ideia de reforma.
A resposta de Dijsselbloem foi tão imediata quanto
categórica: “Isso não vai funcionar. Ou é o memorandumou é o fracasso do
programa”. Em outros termos: ou aceitávamos as políticas impostas aos governos
precedentes, as mesmas que tínhamos sido eleitos para questionar porque
fracassaram lamentavelmente, ou nossos bancos fechariam. Pois aí está, em
termos concretos, o que implica o “fracasso do programa” no caso de um
Estado-membro que se encontra privado do acesso aos mercados: o BCE corta
qualquer financiamento aos bancos, que não têm, então, nenhuma outra escolha a
não ser fechar as portas e encerrar o funcionamento dos caixas eletrônicos.
Essa tentativa mal disfarçada de exercer uma chantagem sobre
um governo recentemente – e democraticamente – eleito não foi a única. Na
reunião seguinte do Eurogrupo, onze dias depois, Dijsselbloem confirmou seu
desprezo pelos princípios democráticos mais elementares. Mas Schäuble conseguiu
ir ainda mais longe. O ministro das Finanças francês, Michel Sapin, tinha
acabado de tomar a palavra para convidar cada um a tentar encontrar um meio de
conciliar, por um lado, a validade do acordo em vigor e, por outro, o direito
do povo grego em nos dar um mandato para renegociar questões importantes.
Intervindo logo depois dele, Schäuble não perdeu um segundo para colocar Sapin
onde ele estimava ser seu lugar: “Não podemos deixar as eleições mudarem o que
quer que seja”, soltou, enquanto uma ampla maioria dos ministros presentes
concordava com o chefe.
Ao final dessa mesma reunião, quando preparávamos a
declaração comum que deveria ser publicada, pedi que anexássemos o termo
“alterado” a uma referência ao memorandum. Tratava-se de uma frase em que nosso
governo se comprometia a respeitar seus termos. Schäuble vetou minha proposta,
argumentando que estava fora de questão que o acordo fosse renegociado sob o
único pretexto de que nosso governo tivesse sido eleito. Após algumas horas
tentando sair desse impasse, Dijsselbloem me alertou contra um “naufrágio
iminente do programa”, o que se traduziria pelo fechamento dos bancos em 28 de
fevereiro. O primeiro-ministro Alexis Tsipras me convidou a deixar a reunião
sem que tivéssemos chegado a um entendimento sobre o comunicado, preferindo
ignorar a ameaça de Dijsselbloem, que não foi diretamente executada. Mas isso
era apenas questão de tempo.
Eu perdi a conta do número de vezes em que balançaram à nossa
frente o fantasma de um fechamento de nossos bancos. Os credores e o Eurogrupo
se recusavam a ouvir nossos argumentos econômicos. Eles exigiam que
capitulássemos. E até nos criticaram por termos ousado lhes “dar uma lição”...
Aí está, em substância, o clima no qual as negociações com os
credores aconteceram: sob ameaça. E não se tratava de palavra vazia; entendemos
rápido. Mas não estávamos dispostos a baixar a guarda ou a abandonar a esperança
de a Europa mudar de atitude.
Um mês antes de nossa eleição, o governo precedente, em
conluio com o governador do Banco da Grécia, ele próprio ex-ministro das
Finanças do mesmo governo, tinha desencadeado a título de advertência um
minipânico bancário.
Algumas semanas depois de chegarmos ao poder, o BCE
multiplicou os sinais que sugeriam que ele fecharia a torneira de financiamento
do sistema bancário grego. No momento mais oportuno para o Eurogrupo, ele
agravava ainda mais a fuga dos capitais, fenômeno que iria “justificar” o
fechamento dos guichês, como nos tinha advertido Dijsselbloem.
A entrada dos tecnocratas na dança das negociações confirmou
nossos maiores temores. Em público, os credores clamavam seu desejo de
recuperar seu dinheiro e de ver a Grécia se reformar. Na realidade, eles tinham
apenas um objetivo: humilhar nosso governo e nos forçar a capitular, mesmo que
isso significasse a impossibilidade definitiva para as nações que tinham
concedido empréstimos recuperar seu investimento, ou o fracasso do programa de
reformas que apenas nós poderíamos convencer os gregos a aceitar.
Repetidamente, propusemos concentrar nossos esforços
legislativos em três ou quatro áreas, em acordo com as “instituições”: medidas
visando limitar a evasão fiscal, proteger o fisco das pressões dos poderes
político e econômico, lutar contra a corrupção na atribuição dos contratos
públicos, reformar o aparelho judiciário etc. A resposta era sempre a mesma:
“Com certeza, não!”. Nenhuma lei deveria ser votada antes do fim de um exame
aprofundado de nossa situação.
Nas negociações do Grupo de Bruxelas,4 nos pediam, por
exemplo, que apresentássemos nosso plano para reformar a taxa sobre o valor
acrescido (TVA) [um imposto sobre o consumo]. Antes mesmo que pudéssemos chegar
a um acordo sobre essa questão, os representantes da Troika decidiram passar
para a questão da reforma previdenciária. Mal ouviram nossas propostas, que
estimaram boas para serem jogadas no lixo, e passaram para o direito ao
trabalho. Assim que nossa proposta nessa área também foi varrida, era hora de
tratar das privatizações; e assim continuaram. As discussões passavam de um
assunto a outro sem que pudéssemos entrar num acordo sobre o que quer que
fosse, nem negociar seriamente. Durante longos meses, os representantes da
Troika se encarregaram de obstruir o bom andamento das discussões, insistindo
para que cobríssemos um conjunto de assuntos, o que resultava em não concluir
concretamente nenhum. Um gato correndo atrás do rabo teria sido mais eficiente.
Durante esse tempo, sem nem sequer ter formulado a menor
sugestão e nos ameaçando de interromper as discussões se tivéssemos a audácia de
publicar nossos próprios documentos, eles organizaram o vazamento de suas
confidências na imprensa, sugerindo que nossas propostas eram “fracas”, “mal
planejadas”, “pouco convincentes”. Na esperança de que um dia eles aceitariam
entrar no jogo e nos encontrar no meio do caminho, nós consentimos, no entanto,
em participar dessa farsa.
Para que as negociações acontecessem em boas condições,
também era preciso que nossos interlocutores não estivessem tão divididos. A
posição do FMI se casava com a nossa na questão da reestruturação da dívida,
mas o Fundo insistia para que destruíssemos o que restava do direito
trabalhista, suprimindo ao mesmo tempo todas as proteções existentes para as
profissões liberais. A Comissão Europeia se revelava mais flexível em relação
às questões sociais, mas não queria ouvir falar de reestruturação da dívida. O
BCE, por sua vez, também tinha uma ideia do que deveria ser feito. Em suma,
cada instituição estampava suas próprias anotações, que acabavam tecendo a teia
na qual estávamos presos.
Era preciso, ainda por cima, que sofrêssemos a “fratura
vertical” de nossos interlocutores: do mesmo modo que os dirigentes do FMI e da
Comissão tinham prioridades distintas das de seus capangas, os ministros alemão
e austríaco das Finanças defendiam pistas contraditórias com os objetivos
fixados por seus respectivos chanceleres.
O mais terrível foi sem dúvida ter de assistir à humilhação
da Comissão Europeia e dos raros ministros das Finanças bem-intencionados com
relação a nós. Ter de ouvir, de pessoas de alto nível na Comissão e no governo
francês, que “a Comissão deve aceitar as conclusões do presidente do
Eurogrupo”, ou que “a França não é mais o que ela era” quase me fez chorar. Sem
falar de minha decepção quando o ministro das Finanças alemão me explicou, em 8
de junho, em seu escritório, que não tinha o menor conselho a oferecer sobre o
melhor meio para evitar um acidente – uma saída do euro –, o que, no entanto,
se revelaria extremamente custoso para a Europa.
No final de junho, tínhamos abdicado e aceitado a maior parte
das exigências da Troika. Com apenas uma exceção: insistimos para obter uma
leve reestruturação de nossa dívida, sem dedução, por meio de trocas de
títulos. Em 25 de junho, participei do meu penúltimo Eurogrupo. Apresentaram-me
a última oferta da Troika, “pegar ou largar”. Tínhamos cedido em dezenove exigências
de nossos interlocutores e esperávamos que eles fizessem um esforço a fim de
que chegássemos a qualquer coisa que parecesse um acordo honrado. Eles
escolheram, ao contrário, endurecer o tom, sobre a TVA por exemplo. Não havia
mais dúvida. Se aceitássemos assiná-lo, o texto destruiria os últimos vestígios
do Estado social grego. Exigiam de nós uma capitulação espetacular que
mostrasse aos olhos do mundo que nos ajoelhávamos.
No dia seguinte, o primeiro-ministro Tsipras anunciava que
submeteria o ultimato da Troika a um referendo. Vinte e quatro horas depois, na
sexta-feira, 27 de junho, eu participava de minha última reunião do Eurogrupo,
a que desencadeou o processo de fechamento dos bancos gregos – uma maneira de
nos punir por termos tido a audácia de consultar a população.
Ao longo dessa reunião, o presidente Dijsselbloem anunciou
que estava a ponto de convocar um segundo encontro, naquela mesma noite, mas
sem mim. Sem que a Grécia fosse representada. Eu protestei, ressaltando que ele
não tinha o direito, sozinho, de excluir o ministro das Finanças de um
Estado-membro da zona do euro, e exigi um esclarecimento jurídico a esse respeito.
Depois de uma breve pausa, o secretariado nos respondeu: “O
Eurogrupo não tem existência legal. Trata-se de um grupo informal e, por
consequência, nenhuma lei escrita limita a ação de seu presidente”. Essas
palavras ressoaram em meus ouvidos como o epitáfio da Europa que Konrad
Adenauer, Charles de Gaulle, Willy Brandt, Valéry Giscard d’Estaing, Helmut
Schmidt, Helmut Kohl, François Mitterrand e muitos outros tinham procurado
criar. De uma Europa que eu tinha sempre considerado, desde a adolescência, meu
ponto de referência, minha bússola.
Alguns dias depois, a despeito do fechamento dos bancos e da
campanha de terror orquestrada pelas mídias corrompidas, o povo grego clamou
alto e forte seu “não”. No encontro dos chefes de Estado da zona do euro que
aconteceu em seguida, Tsipras se viu impor um acordo que não poderia ser
descrito de outra forma que não uma rendição. A arma de chantagem utilizada? A
perspectiva, ilegal, de uma expulsão da zona do euro.
Pouco importa a opinião que cada um tem sobre nosso governo:
esse episódio ficará na história como o momento em que os representantes
oficiais da Europa utilizaram as instituições (o Eurogrupo, o encontro dos
chefes de Estado da zona do euro) e os métodos que nenhum tratado legitimaria
para quebrar o ideal de uma união realmente democrática. A Grécia capitulou,
mas foi o projeto europeu que saiu derrotado.
Nenhum povo da região nunca mais deverá ter de negociar sob o
medo.
Yanis Varoufakis
Yanis Varoufakis é ex-ministro das Finanças grego e deputado
pelo Syriza.
Ilustração: Daniel Kondo
Todas as notas são da redação.
1 Baixa geral
da atividade, dos preços, salários e investimento
.2 Reunião dos
ministros das Finanças dos dezenove países da zona do euro.
3 Situação
orçamentária positiva de um Estado, antes do pagamento do serviço da dívida.
4 Quinteto
composto pelo governo grego, pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu
(BCE), pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) e pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI).
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