ROBERTO
AMARAL // http://www.brasil247.com/
Difícil
saber se Carlos Heitor Cony simplesmente ignora a História da qual foi
contemporâneo, ou distorce os fatos, e mente para seus leitores de forma
consciente e deliberada.
Sua
crônica "Obscenidade" (FSP, 6/10/15) é verdadeira retomada do samba
do crioulo doido, do saudoso Stanislaw Ponte Preta, porém sem a graça e o
pitoresco, a verve poética e a sensibilidade de cronista do criador de Primo
Altamirando.
Procurando
gancho para atacar a presidente Dilma Rousseff, sua ideia fixa dos últimos
tempos (já teve outras melhores, quando jovem), Cony, sem nenhum
constrangimento aparente, transpõe para 1964 fatos ocorridos em 1954 e 1955.
Reescreve a seu talante a História do Brasil.
O
passado, dizem, é imprevisível...
O
escriba diz, por exemplo, que, para evitar comprometer-se com a deposição de
Getúlio Vargas, de quem era vice-presidente, Café Filho "se internara num
hospital e assim ficara livre de não participar daqueles dias tumultuados que
levariam ao suicídio do presidente em exercício". Tudo errado.
Café
Filho não estava internado em agosto de 1954 (mas muito ativo nas conspirações
contra Vargas], e sim em novembro de 1955, quando da tentativa de impedir a
posse de Juscelino Kubitscheck, episódio que o PSDB e seus satélites se
esforçam por reproduzir desde o fim das eleições do ano passado.
Mas
o cronista não se cansa de malbaratar os fatos e volta a fazer da História um
delírio de samba- enredo de Escola de Samba. Escreve: "Tão logo correu a
notícia da morte de Vargas, deram alta hospitalar ao vice para que ele
assumisse a Presidência [Café Filho não estava hospitalizado em 1954!], mas os
militares que haviam dado o golpe que instauraria a ditadura [o que só
ocorreria, lembremos, em 1964], consideravam Café Filho comprometido com a
situação deposta".
Puro
devaneio, elucubração, viagem, fantasia.
A
imaginação do imortal não tem limites. Animado com o próprio engenho, prossegue
o nefelibata: "Cercaram com tanques e tropas o prédio [onde morava o vice,
em Copacabana] para impedir que Café saísse de casa e fosse ao Catete para
tomar posse na Presidência da República. No dia seguinte, o poeta [Manuel
Bandeira] escreveu um artigo no Jornal do Brasil considerando obscena aquela
manifestação de força contra um homem desarmado que, naquela hora, já era
presidente do Brasil". Tudo falso. O artigo de Manuel Bandeira é de 1955
(e não de 1964) e trata da já mencionada tentativa de golpe para impedir a
posse de JK, recém eleito presidente da República.
O
título da crônica de Cony é 'Obscenidade', e como tal ele qualifica, tomando o
adjetivo emprestado ao poeta pernambucano, o ato oficial da posse dos novos
ministros nomeados pela presidente Dilma. Toda a história inventada é apenas
isso, a procura de um gancho para desqualificar a posse do novo ministério.
O
compromisso com a honestidade intelectual exige que recuperemos a História.
Primeiro
de tudo: os fatos, distorcidos na crônica, remontam a 1954 (e não a 1964, ano
da 'Redentora', quando João Goulart é deposto e os militares tomam o poder) e
ao suicídio do presidente Getúlio Vargas na madrugada de 24 de agosto. Na
contramão do que escreve o cronista da Folha, Café Filho, vice-presidente,
eleito com Getúlio, não se internou durante a crise de agosto de 1954, pelo
contrário, são e sadio participou ativamente das tratativas golpistas.
Ficou
célebre, por exemplo, seu discurso no Senado (então o vice-presidente presidia
o Senado Federal) sugerindo a renúncia do titular (a propósito, Cony, na má
companhia de FHC vira e mexe pede a renúncia de Dilma). Anunciado o suicídio de
Vargas, Café Filho corre ao Palácio do Catete e ainda de manhã toma posse na
presidência e instaura o governo da UDN, com o brigadeiro Eduardo Gomes
ministro da Aeronáutica e o general Juarez Távora, seu Chefe da Casa Militar.
Eleito
Juscelino Kubitschek (tendo Jango como vice) no pleito de outubro de 1955, os
militares, numa conspiração da qual o presidente da República se fizera
porta-voz, tentam impedir sua posse.
Relembro:
fracassada a tentativa de impedir a candidatura de JK, fracassada a tentativa
de impedir sua eleição, a UDN e sua fração militar (Távora, Eduardo Gomes, Pena
Boto, Bizarria Mamede, Canrobert Pereira da Costa e outros menores) e o sistema
de comunicação comprometido (Globo e Estadão à frente de todos) se voltam para
o golpe militar. O objetivo era impedir a posse de JK.
Para
facilitar a operação, o presidente Café Filho (relembremos, vice-eleito com
Vargas que assumira a presidência em agosto de 1954 com o suicídio do
presidente) se licencia para que em seu lugar assumisse a presidência o
presidente da Câmara Federal, o deputado Carlos Luz — que, cumprindo sua parte,
demite o ministro da Guerra, general Lott, da ala legalista, o qual, com o
apoio do comandante do I Exército, sediado no Rio, reage ao golpe.
Fracassada
a tramoia, Café Filho, que se internara no Hospital dos Servidores alegando
problemas cardíacos, se declara sarado e anuncia o propósito de reassumir o
posto. É impedido, porém, pelo Congresso Nacional, que, quiçá animado em seu
civismo pelo calor das tropas, declara incapacitados para o exercício da
presidência sucessivamente ele Café Filho e o presidente da Câmara, o já
mencionado Carlos Luz.
Em
casa, Café Filho quedou sob uma espécie de 'custódia' das tropas de Lott. O
episódio ficou conhecido ora como 'novembrada', ora como 'contragolpe de Lott'.
Carlos Luz e uma meia dúzia de áulicos, entre os quais Carlos, embarcam em
navio da Marinha comandado pelo trêfego almirante Pena Boto, dá uma volta pela
baía de Guanabara e terminam se entregando às autoridades, que mandam a súcia
passear. Nenhum dos insurretos foi preso, e todos os conspiradores seriam
depois beneficiados pela Anistia decretada por JK.
Com
a vacância da presidência, decorrente da inabilitação de Café Filho e Carlos
Luz, assume, seguindo a ordem constitucional, o vice-presidente do Senado,
senador Nereu Ramos, que conclui o mandato iniciado com Vargas, e em janeiro de
1956 passa a faixa ao presidente eleito, Juscelino Kubitscheck, que iria
enfrentar duas intentonas militares e uma série de pedidos de impeachment, até
o final de seu governo.
Onde
entra o artigo de Manuel Bandeira, que é de 1955 e não de 1964? Café Filho,
relembro, deixara o hospital e voltara ao seu apartamento na Av. N. S. de
Copacabana, onde ficou virtualmente retido pelos militares, com o aparato de
tropas e carros tão ao gosto deles. É a este fato que se referia Manuel
Bandeira, em 1955.
No
último domingo, despedindo-se antes das férias, Clóvis Rossi ('Palhaçada'
5/10/2015), outro colunista ilustre da Folha, escreveu – irônico, claro – que
seu jornal deveria demitir todos os seus articulistas políticos, pois o único
que estaria à altura dos acontecimentos, por assim dizer, é o José Simão. Os
demais, segundo Rossi, são competentes, porém, sérios. E o momento, acrescento
por minha conta e risco, é de esculhambação – especialidade do Simão.
Basta
dizer que ninguém menos que o cidadão Eduardo Cunha, acusado de crimes diversos
pelos Ministérios Públicos do Brasil e da Suíça, é quem está, até o momento em
que escrevo estas linhas, incumbido de avaliar o mérito de pedidos de abertura
de processo contra a Presidente da República, cidadã sabidamente honrada.
O
'ministro' Augusto Nardes, sob investigação (acusado de haver recebido R$ 1,8
milhão, como pagamento pela anulação fraudulenta de dívida fiscal da RBS, a
poderosa sócia e repetidora da Rede Globo no sul do país), foi o relator das
contas de Dilma no TCU. Prato cheio para Stanislaw e seu Febeapá. Foi-se o
festival de besteiras da era dos militares, agora o país é assolado pela
pornografia política.
Para
o Febeapá, reconheçamos, também contribuem os feiticeiros do Planalto, com seus
erros de cabo-de-esquadra, pois, de outra forma não se compreende uma reforma
ministerial montada para garantir uma maioria no Congresso que é negada no
primeiro teste!
Tal
qual é a extemporânea valorização do TCU (que não é Corte coisa nenhuma, mas um
simples conselho de contas, que não passa, constitucionalmente, de órgão
auxiliar do Legislativo e, portanto nada decreta) e do relator Nardes (que é um
simples conselheiro e não um magistrado), sabendo que a decisão da autarquia,
já conhecida, era contra o governo? Ou não sabiam? Se não sabiam, pior ainda...
De
quem foi a ideia de pedir a substituição do relator e de ameaçar com a ida ao
STF, ida que não haverá, e que apenas serviu para levantar a bola da oposição
quando essa caminhava para o esvaziamento? O governo, mais uma vez funcionando
como regra três da oposição, conseguiu, com a competência que felizmente falta
a esta, aumentar o desgaste inevitável. Esperemos, porém e ainda, que as
negociações das quais resultaram o novo ministério valham o preço pago.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12