O filme mostra as
consequências dessa invasão americana no dia-a-dia. Foi o silêncio mais denso
que experimentei na vida ao sair de uma sala de cinema.
Léa Maria Aarão Reis* // www.cartamaior.com.br
A penúltima imagem seguida
da noite da tela negra e de um tiro seco, no filme do monumental documentário
de quase seis horas (dividido em duas partes), Terra Natal/Iraque ano Zero:
Antes da Queda e Depois da Batalha, do cineasta franco-iraquiano Abbas Fahdel,
é um soco no rosto do espectador. Tão violenta a situação filmada, que o
diretor, depois daquele instante trágico, durante dez anos não conseguiu tocar
no material com o qual filmou a sua própria família, em Bagdá, a partir de
fevereiro de 2000.
Agora,
depois de recusado por exibidores e produtores europeus pela sua duração fora
dos padrões comerciais, o filme de Fahdel inicia, enfim, um circuito de
apresentações em festivais. Em Tribeca, em Nyon, na Suiça, Locarno e em três
sessões, na Mostra Fronteiras, no
Festival do Rio, este mês. Homeland está sendo mostrado também no New York Film
Festival. Na primavera de 2016 estreia na França com distribuição da produtora
árabe Nour.
No
Festival de Tribeca foi recebido como “documentário fundamental para se
compreender o Oriente Médio do passado e do presente.%u20B Não é preciso
mostrar uma vez mais o que a gigantesca máquina de guerra norte-americana é
capaz de fazer. Para isso existe o jornalismo, as séries de televisão e os
filmes de Brian de Palma, Kathryn Bigelow e Clint Eastwood que parecem frívolos
diante de Terra Natal,” escreveu o crítico Victor Guimarães, durante o Festival
de Nyon.
Sem
narração em off nem comentários de qualquer espécie, até para preservar a
segurança familiar, a primeira parte, Antes da Queda, antecede a invasão
americana. Foi realizada durante a censura feroz da ditadura de Saddam Hussein.
As imagens dessas crônicas familiares de Fahdel têm uma força tal que levam o
espectador a acompanhar, escorregando para ela até desapercebido, a vida
cotidiana sem maquilagem e quase nada conhecida, de uma família - a do diretor
- de classe média, da capital do Iraque, culta, educada, bem posta, de
intelectuais, profissionais liberais, moças e rapazes estudantes
universitários, originada da cidade de Hit, cerca de 150 quilômetros de Bagdá,
à beira do Eufrates – ocupada atualmente pelo exército do Estado Islâmico.
Abbas
Fahdel aposta na alegria de viver, nessa primeira parte, apesar da vida
difícil, e rejeita o sentimentalismo. Não há uma nota musical na trilha sonora
que seja externa à cena. Tudo é aparentemente tranquilizador na confortável
casa com chão forrado de tapetes. As mulheres trabalham na cozinha, o fogareiro
no meio da sala aquece, a televisão ligada (e censurada) nos seguidos discursos
ridículos de Saddam. O terraço árabe, o pomar do vizinho, a sombra das
macieiras, a placidez. Mas os takes insistentes no relógio de mesa parecem
lembrar que o tempo está se esgotando para mais uma guerra começar, depois das
guerras do Irã e do Golfo – é fevereiro de 2002.
Um
dos sobrinhos de Fahdel assume o protagonismo. Menino de 12 anos, carismático,
perspicaz e inteligente, amadurecido antes do tempo, Haydar será um fio
condutor, no filme, de várias situações apresentadas: na feira, no mercado, no
sebo de livros antigos, nas férias com os colegas em Hit. A nova guerra que
está por vir não assusta. ”Guerra é o nosso destino,” diz um professor cujo
parco salário de 15 dólares em escolas na capital o faz retornar para trabalhar
na propriedade da família, em Hit.
Lá,
galos cantam nos jardins e os meninos brincam no Tigre. Judeus convertidos ao
islamismo na década dos anos 80 são entrevistados. Outros, comunistas
declarados, também. “A vida era melhor antes do petróleo”, diz um. “O embargo
(N.R. econômico) já uma guerra,” diz outro, comentando a falta de medicamentos,
o racionamento de alimentos e os estoques de pão e cestas básicas distribuídas
pelo governo que começam a serem providenciados (mais uma vez) pelas famílias.
Um
comunista, na segunda parte, lembra: Saddam converteu o povo iraquiano em uma
multidão de esquizofrênicos. A censura fazia com que a pessoa fosse uma no
trabalho e outra em casa; uma pessoa por fora e outra por dentro, diz ele.
Antes
da queda, no entanto, as crianças falam, com naturalidade, sobre guerras, bombas e mísseis.
Em
Depois da Batalha (que não houve) da capital e da invasão americana não há
mais, é claro, militantes do partido Baath, nos bairros, percorrendo
regularmente as residências para fiscalizar o retrato de Sadam pendurado na
sala. As ruínas estão por toda parte. Vê-se prédios públicos incendiados depois
de bombardeados; um deles, os estúdios do antes avançado cinema iraquiano, com
todos os seus arquivos. “Pode-se vingar de um regime político, mas não de uma
cultura; e transformar a memória de um povo em pó,” diz, desolado, um parente
de Abbas.
Os
americanos chegaram, e o filme mostra as consequências dessa invasão no
dia-a-dia dos personagens. A poderosa crônica do cotidiano do Iraque mostra a
tragédia do povo e ganha momentos mais intensos.
Um
grupo de garotos mostra um companheiro com as pernas atrofiadas, que seria alvo
do deboche de soldados americanos. O irmão do cineasta explica que a guerra
criou um exército de saqueadores, sempre dispostos a agir no imenso caos da
violência cotidiana da cidade dos ladrões e da dilapidação sem trégua. Todos
devem se armar e guardar munição em casa para tentar garantir a segurança
familiar. Não há polícia nem ao menos guardas para ordenar o salve-se quem puder
do trânsito. As moças não saem de casa, sozinhas, porque correm o risco
permanente de estupro. Se tudo mudou é apenas para continuar igual. A ameaça
que antes se dirigia aos adversários do governo anterior, baathista, persiste
agora sobre os acusados (muitos, injustamente) de terem pertencido ao partido
de Saddam, e estão condenados ao desemprego permanente e ao desespero.
Um
homem muito pobre, revoltado, recolhendo lixo em uma carreta, se pergunta por
que os soldados sempre apontam suas armas, gratuitamente, contra ele. E se
antes eram as valas comuns da ditadura, depois da invasão, é a bala que mata um
jovem carregando a peça sobressalente de um automóvel para ajudar o vizinho. Um
crime que nunca será investigado porque não há ninguém para investigar.
“Um
documentário meu, Back to Babylon, foi exibido em um canal de TV francês. Uma
indagação perturbadora, no artigo publicado em jornal, sobre o filme, me deixou
abalado,” diz Abbas Fahdel. ”Seremos os últimos a ver aquelas pessoas
vivas?" perguntava o autor do texto. A pergunta me chocou. A idéia de que os membros da minha família,
meus amigos e as pessoas desconhecidas que eu filmei poderiam não sobreviver à
próxima guerra era quase insuportável para mim. Sob a pressão de certa
superstição não admitida, decidi voltar ao Iraque e continuar a filmar a parte
dois. Fui levado pela esperança, também supersticiosa, de que poderia salvá-los
do perigo iminente. Infelizmente, a espiral de violência que tomou o país, em
breve mergulharia a minha família no luto.”
O
sobrinho de Fahdel, o menino Haydar, de 12 anos, foi alvejado e morto por uma
bala perdida, dentro do carro que atravessava uma avenida de Bagdá. Em sua
companhia estavam o tio e o próprio Fahdel com a sua câmera na mão. Terra
natal/Depois da Batalha termina com o grito de Haydar. Em seguida, a tela
negra.
“Foi
o silêncio mais denso que experimentei na vida ao sair de uma sala de cinema,”
escreveu um crítico suíço. Mesma sensação nós experimentamos, deixando o cinema
do Instituto Moreira Salles, na Gávea, no Rio de Janeiro.
(Abbas
Fahdel é autor dos docs Back to Babylon e We Iraquis. Nasceu na região da
antiga Babilônia e vive na França desde os 18 anos. Estudou cinema em Paris com
Jean Rouch e mora na cidade com a mulher e a filha. Com o seu passaporte
europeu conseguiu entrar e sair do Iraque com o material filmado de
Homeland/Iraq Year Zero - e com a ajuda de amigos da capital iraquiana e de um
diplomata francês. Atualmente filma Bagdah.)
*Jornalista.
Créditos
da foto: reprodução
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