Se o acordo TTIP for aprovado como as
multinacionais desejam, todos os cidadãos estarão em perigo por causa das
substâncias tóxicas e do fim dos genéricos.
Susan George - espacio-publico.com // www.caramaior.com.br
O Espaço Público me pediu que apresente o debate
sobre o polêmico Tratado Transatlântico de Livre Comércio (TTIP), e estou
encantada e orgulhosa por fazê-lo. Este tratado, entre a União Europeia e os
Estados Unidos está sendo negociando desde meados de 2013, mas muita gente,
tanto na Espanha como no resto da Europa, nunca ouviu falar dele. Por isso este
debate é vital: acho que o TTIP é uma das iniciativas mais perniciosas que já
se colocaram numa mesa de negociação.
Quem espera desta introdução um ponto de vista neutro,
melhor parar de ler agora mesmo. Para mim, pedir uma visão equitativa do TTIP é
como tentar manter uma discussão objetiva sobre os prós e os contras do câncer
ou da guerra nuclear.
Antes de explicar porque defendo que o TTIP é um
perigo indiscutível para todos nós, deixem-me dizer que também creio que
podemos derrotá-lo, e quando falo de “nós” me refiro aos cidadãos comuns, tanto
estadunidenses quanto europeus. As pessoas comuns são as únicas que podem dizer
“não” com total firmeza, porque cada um dos 28 governos que conformam a União
Europeia possui delegados na Comissão Europeia para negociar o tratado, e todos
o fizeram sem informar nada à população sobre o tema. Ao agirem dessa forma,
nossos governos decidiram priorizar os interesses das corporações
internacionais (TNCs), verdadeiros arquitetos deste tratado, e deixar de lado o
bem-estar e a segurança dos seus próprios cidadãos.
Depois de dois anos de negociações, as pessoas hoje
estão se unindo para lutar, na Europa e nos Estados Unidos, e evitar que o TTIP
adquira categoria de lei. Estou segura que os dois meses de debate público
demonstrarão que o TTIP prejudicaria os interesses dos cidadãos europeus e
nossas tradições democráticas. A melhor arma de que dispomos para fazer frente
a ele é a informação. Como nos casos de câncer e da guerra nuclear, a única
opção decente, a única alternativa, é que o TTIP desapareça.
Este tratado foi criado pelas maiores e mais
poderosas corporações transnacionais dos Estados Unidos e da Europa. Começaram
a preparar seu golpe de Estado há vinte anos, quando fundaram o TABD (Diálogo
Empresarial Transatlântico), em 1995, com o apoio dos governos de todos os
países. O TABD impulsionou um projeto de acordo de livre comércio e
investimentos de amplo alcance, que se constituiu no grande projeto para situar
os interesses das multinacionais por cima da soberania nacional, do império da
lei e dos direitos dos cidadãos. Seu objetivo é a “integração” e “harmonização”
das economias europeia e estadunidense, segundo os desejos das empresas, e seu
slogan era: “Aprovado uma vez [pelo TABD], aceito em todas as partes”.
Portanto, se este tratado entre Europa e Estados
Unidos for aprovado e promover governos de, por e para essas mesmas
multinacionais transatlânticas, isso não deverá ser uma surpresa. O TTIP é uma
grave ameaça para as atribuições executivas, legislativas e judiciais de todos
os nossos governos e pretende substituir de forma permanente as normativas e os
procedimentos favoráveis para as corporações.
As grandes empresas não querem governar diretamente
– já possuem políticos que fazem isso por elas – mas, diferente de nós, podem
seguir as negociações passo por passo. O texto do TTIP se mantém em segredo,
para conhecer o seu conteúdo, até mesmo os parlamentares europeus da Comissão
de Comércio tiveram que solicitar uma permissão especial para entrar numa sala
secreta em Bruxelas, superprotegida, na qual não é permitido fazer cópias e nem
mesmo fazer anotações. Recentemente, os altos funcionários dos governos dos
países-membros foram comunicados que também terão que passar por essa mesma
sala de Bruxelas se quiserem revisar o texto. Os cidadãos dependem das
publicações especializadas e dos vazamentos.
Apesar do nome, essa “Associação de Comércio e
Investimento” trata muito pouco sobre comércio. As tarifas aduaneiras entre
Estados Unidos e Europa já são baixas, exceto para a agricultura, sua média
está em torno de 2% ou 3%, e por isso não vale a pena manter longas e
complicadas conversações para reduzi-las ainda mais. Mas precisemos que se a
União Europeia renuncia às tarifas de proteção da agricultura, grande parte dos
13 milhões de famílias europeias que ainda dependem do campo não poderão
competir com as gigantescas granjas industriais norte-americanas de utilização
intensiva de capital. As pequenas famílias de granjeiros e agricultores serão
aniquiladas, exatamente como ocorreu com os dois milhões e meio de camponeses
mexicanos que foram arruinados pela importação massiva de milho subvencionado e
barato após o NAFTA, o acordo de livre comércio assinado há 20 anos entre
Estados Unidos, México e Canadá. Onde essas pessoas encontrarão uma nova forma
de sobreviver, um outro emprego? O mais provável é que acabem engrossando as
filas dos desempregados.
As multinacionais não estão muito interessadas em
reduzir as tarifas, mas se estão concentrando duramente no que se conhece como
barreiras “não tarifárias” ou “pós-fronteiriças”. Estas podem ser qualquer
coisa, um incômodo legal ou um custo o qual a corporação queira se livrar. Por
exemplo, “impedimentos para ter um melhor acesso ao mercado”, como as
regulações governamentais em matéria de alimentação, produtos farmacêuticos,
químicos, meio ambiente, etc.
Na atualidade, os europeus dispõem de um sistema de
regulação melhor que o dos Estados Unidos em praticamente em todas as áreas,
exceto no caso das finanças. Se o TTIP é aprovado como as multinacionais
desejam, todos os cidadãos estarão em perigo – pelos produtos alimentícios, as
substâncias tóxicas, os custos dos medicamentos não genéricos, os pesticidas e
outros muitos produtos. Portanto, se os europeus se negam, por exemplo, a comer
carne bovina criada com antibióticos e hormônios, ou frangos lavados com cloro.
Se não querem comer alimentos processados com organismos modificados
geneticamente, se querem se resistir a usar cosméticos e produtos de uso diário
que contenham elementos químicos até agora proibidos na Europa, qual será o
cenário?
Os norte-americanos argumentarão que isso “não é
científico”.
As agências europeias de controle de qualidade dos
alimentos, assim como os legisladores, aceitaram o “princípio de cautela”,
porque assim mandam os tratados da fundação da União Europeia, que afirmam que
esse princípio deve ser aplicado nos casos em que “um fenômeno, produto de um
processo, possa ter um efeito perigoso” para o meio ambiente, a alimentação ou
a saúde dos humanos, dos animais ou das plantas. Em outras palavras, “se existe
um risco real de que algo pode ser danoso, não o permita”. Se uma empresa
quiser colocar um produto no mercado, é o fabricante quem deve demonstrar que é
saudável e seguro. Não se pode exigir essas provas do importador potencial.
Os norte-americanos adotam o ponto de vista
contrário, e por isso pressionam nas negociações do TTIP: se os europeus querem
rejeitar seus produtos ou processos, deveriam ser obrigados a proporcionar
provas científicas que demonstrem que o produto é perigoso. Especialmente
quando está em jogo algo tão complexo como o corpo humano, isso pode ser
impossível. Como pode alguém estar totalmente seguro de que um ingrediente ou
produto A tem um impacto danoso sobre a função B do corpo humano? Foi possível
demonstrar isso com o amianto, porque causa um câncer pouco comum nas pessoas
que trabalharam ou viveram com ele, mas não se pode dispor de uma prova
irrefutável em cada caso. Os lobbys corporativos são capazes de atrasar uma
regulação durante anos, e provocar assim muitas mortes desnecessárias. Um
exemplo flagrante é a forma em que o lobby do tabaco foi capaz de postergar
durante décadas a proibição de fumar e a inserção de textos nos pacotes
avisando dos prejuízos desse hábito para a saúde.
A Europa conta com aproximadamente três mil
“indicações geográficas” sobre gastronomia e vinhos – os negociadores
norte-americanos do TTIP querem transformar todos os nossos queijos, vinhos,
presuntos e outros produtos em genéricos – de modo que se possa produzir queijo
Cheshire, champagne, presunto Parma, entre outros, em qualquer lugar, e que
continuem sendo denominados com esses termos.
Uma das queixas de todas essas companhias –
estadunidenses ou europeias – é sobre o quanto é inútil analisar todos os
produtos em ambos os lugares, e o elevado custo disso. Isso é verdade. Todos
poderiam aceder a evitar duplicidades se as análises, tanto nos Estados Unidos
como na Europa, fossem exatamente iguais – mas isso não é necessariamente
certo. Os Estados Unidos, por exemplo, tem uma agência de segurança do
automóvel, mas a General Motors foi obrigada recentemente a revisar 12,8
milhões de carros porque seu sistema de ignição corria risco de se apagar e
deixar os condutores sem freios ou sem direção. Com que meticulosidade foi
realizado esse controle de qualidade? E por que a agência de “segurança” tardou
mais de uma década em reconhecer que estes carros eram perigosos, apesar dos
numerosos informes de acidentes com feridos e mortos?
Isso nos leva a outra das demandas corporativas: se
desfazer de todos os problemáticos “obstáculos para o comércio”, com a
cooperação incondicional de seus respectivos governos. Querem um sistema para o
que a Comissão Europeia denomina “melhor regulação” ou “cooperação
regulatória”, no qual as multinacionais se envolvem plenamente como
“especialistas” e que – segundo denunciou a rede ambiental cidadã Amigos da
Terra Europa – levantará “mais e mais barreiras para impedir o estabelecimento
de novas normas de cuidado ambiental, segurança no trabalho, e de saúde e
segurança que protejam os cidadãos” (…) e que “ameaça debilitar os atuais
critérios sobre alimentação, produtos químicos e biodiversidade”. É fácil ver
que isto é um potencial golpe de Estado, a serviço dos negócios, contra os
nossos representantes democraticamente eleitos. As multinacionais poderão,
assim, se sentar na mesma mesa que as instituições e agências reguladoras e
influir nas suas resoluções antes das mesmas serem adotadas.
O TTIP é um tratado de comércio e de investimento,
e quer dar às empresas, em nome da proteção desse investimento, a capacidade de
processar os governos nos tribunais privados de arbitragem, quando entendam que
uma normativa governamental pode prejudicar seus benefícios, agora ou no
futuro. Isso é uma característica habitual dos tratados bilaterais de comércio
e investimentos conhecidos como ISDS (sigla em inglês para Arbitragem de
Diferenças entre Investidor e Estado) e é o aspecto do TTIP que tem sido objeto
de maior rejeição pública até agora. Um duelo “entre Investidor e Estado”, ou
“Investidor contra Estado”, pode ter sido uma proposta justa em 1959, data do
primeiro tratado bilateral de investimentos entre a Alemanha e o Paquistão,
quando ninguém poderia estar plenamente seguro da imparcialidade de um tribunal
paquistanês. Mas no caso do TTIP estamos falando de sistemas judiciais maduros,
equitativos e comprovados nos Estados Unidos e na Europa, nos quais se
considera que há garantias de sobra de que haverá um julgamento justo sempre
que uma empresa recorra por estimar que foi expropriada ou tratada injustamente
por alguma regulação governamental.
Hoje em dia, temos um conjunto de mais de 600
tratados privados de arbitragem concluídos ou em processo, e é possível
comprovar como eles estão sendo utilizados continuamente de forma arbitrária
para se desfazer de regulações incômodas e para obrigar os governos – ou seja,
seus contribuintes – a pagar enormes quantidades de dinheiro às companhias. Os
governos da Europa, especialmente os de países menores e mais frágeis, pensarão
duas vezes antes de se arriscar a aprovar qualquer nova lei que possa
desagradar os investidores. Alguns dos casos mais conhecidos são ameaças
evidentes ao clima, promovidas por empresas decididas a evitar a transição na
direção de um futuro livre de combustíveis fósseis, como o caso da empresa Lone
Paint contra o Estado canadense de Quebec, demandando uma indenização de 250
milhões de dólares, porque Quebec impôs uma moratória sobre o fracking e a Lone
Paint quer operar no San Lorenzo.
Ou no caso da Occidental Petroleum no Equador, onde
a empresa ganhou 1,8 bilhão de dólares num tribunal de arbitragem, em sentença
dada por três juízes privados, porque o país sul-americano se negou a permitir
a perfuração para buscar petróleo numa zona natural protegida. Outros casos são
ameaças diretas à saúde pública ou ao dever dos governos de proteger o
bem-estar dos seus cidadãos. Como o da Philip Morris contra a Austrália e o
Uruguai, por exigir que as caixas não contenham alertas sobre os graves perigos
do tabaco para a saúde. Ou o caso da Veolia contra o Egito, porque o governo
egípcio aumentou o salário mínimo.
Eu espero que vocês já estejam planejando fazer
algo para deter esse tratado que ataca as funções executivas, legislativas e
judiciais dos governos democráticos, para evitar que tanto esses mesmos governo
quanto a União Europeia permitam que isso aconteça. As negociações estão
começando a vacilar em vários pontos, graças aos protestos dos cidadãos – os
governos esperavam assinar antes do final de 2015, mas agora estão falando, de
maneira “mais realista”, de fazê-lo somente em 2017. A União Europeia tentou se
justificar dizendo que trará “empregos e crescimento”, mas seus argumentos
foram desmontados, e ficou demonstrado que suas “investigações” são, em realidade,
propaganda.
O conhecimento é a melhor arma. Continuem com este
debate, aprendam mais e informem a todos os seus amigos e conhecidos. Podem
assinar a Iniciativa dos Cidadãos Europeus, que, no momento em que escrevo
estas linhas, já supera os dois milhões e meio de aderentes, em 18 países
diferentes, incluindo a Espanha. Nosso objetivo é reunir três milhões. Para
assinar é preciso acessar o link: https://stop-ttip.org/es/?noredirect=es_ES.
Assinem, e busquem outros apoios, convençam seus amigos. Também podem se unir à
Attac, Amigos da Terra ou outras campanhas de organização contra o TTIP. Podem
pressionar aos políticos usando argumentos e frases como “ou vocês dizem NÃO ao
TTIP ou nós diremos NÃO a você” (ou “se vocês disserem NÃO ao TTIP, ou nós vamos
dizer NÃO a você”). Os espanhóis demostraram que tem muita imaginação política.
A luta contra o TTIP pode acabar com uma vitória e vocês podem ser parte dela.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: Bob Nichols / U.S. Department of
Agriculture
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12