Fronteira entre Haiti e República Dominicana
Justiça do país caribenho determinou em 2013 que a
nacionalidade decorre da descendência, e não mais do local de nascimento,
atirando 300 mil pessoas para um limbo jurídico sem direito à cidadania. Dados
do governo dominicano estimam que 40 mil pessoas tenham cruzado a fronteira em
direção ao Haiti
Na República Dominicana, tudo é negócio.” Debaixo
do forte sol de verão que toma conta da ilha que o país divide com o Haiti,
Mariano, um senhor de meia-idade, descreve o labirinto burocrático que enfrenta
todos os anos para conseguir os documentos necessários para matricular sua
filha na escola.
São papéis, assinaturas e carimbos às dezenas,
escritórios que mudam de lugar da noite para o dia e funcionários que se
disponibilizam a agilizar o processo por alguns milhares de pesos dominicanos
(R$ 1 = 13 pesos dominicanos).
Fosse essa a história de um haitiano, teríamos um
exemplo claro da atual política de imigração empregada pelo governo da
República Dominicana. Porém, Mariano é dominicano. Ele já testemunhou cenas de
abuso de autoridade nas ruas da “primeira cidade das Américas”, como é
conhecida Santo Domingo. E já viu policiais extorquirem imigrantes e os
expulsarem das ruas, fazendo uso da força.
São cenas, no entanto, que dificilmente se
repetirão tão cedo. Ao menos não na região central. “Eles estão sendo
deportados”, disse uma comerciante que ouvia a conversa com Mariano. Ao que ele
replicou: “Não, ninguém está sendo deportado. Por enquanto, eles estão indo por
conta própria”.
A situação atual é o desfecho de uma série de
alterações nas políticas de reconhecimento da cidadania na República
Dominicana. Operando por um princípio de jus solis, a Constituição dominicana
garantia a cidadania a todas as pessoas nascidas em território nacional. Esse
princípio foi alterado em 2010, quando a Justiça estabeleceu que a
nacionalidade seria atribuída por descendência.
Em 2013, depois da sentença 168/13, a nova lei
passou a agir retroativamente, contando a partir de 1929, e atingiu
particularmente haitianos e dominicanos de origem haitiana, considerados
pessoas “em trânsito” – mesmo as famílias que estão há gerações na República
Dominicana. O argumento é de que a nacionalidade lhes foi conferida por engano,
tal como consta em um site oficial do governo
(http://leonelfernandez.com/articulos/the-dominican-republichaiti-immigration-process/).
Calcula-se que ao redor de 300 mil pessoas foram atiradas num limbo jurídico,
perdendo o direito à cidadania.
O ano de 1929 foi escolhido numa tentativa de
desatrelar o novo princípio jurídico da figura do ditador Rafael Trujillo, que
governou o país de 1930 a 1961, fazendo da República Dominicana sua própria
plantation. Desde o início, Trujillo executou um plano de “dominicanização da
fronteira”, destruindo um rico universo social marcado por trocas, trânsitos e
liberdades, no qual as diferenças econômicas e sociais com o Haiti eram pouco
significativas.
Seu projeto político ganhou um viés ideológico
centrado, sobretudo, na consolidação do anti-haitianismo, política identitária
e pseudocientífica baseada na reprodução de preconceitos étnico-raciais com
relação à população vizinha. Diferenças como a língua e a origem colonial
ganharam um peso identitário, apagando traços históricos culturais
compartilhados entre os dois lados da ilha. Uma das consequências dessa
política foi o Massacre de 1937, conhecido como “El Corte”, um ritual de sangue
e silenciamento que instituiu simbolicamente a fronteira entre os dois países
ao custo de dezenas de milhares de vidas.
Cinquenta e quatro anos após seu assassinato, o
ditador parece ser o fantasma por trás dessa nova crise humanitária.
A presença de haitianos na República Dominicana não
difere de outros contextos fronteiriços em que as diferenças econômicas entre
países próximos ocasionam fluxos de imigrantes em busca de trabalho e acesso a
serviços. O que muitas vezes se ignora é a contribuição desses imigrantes à
produção de riquezas nacionais. Segundo as Nações Unidas, imigrantes haitianos,
que trabalham principalmente no corte da cana e nas plantações de arroz, no
setor turístico e na construção civil, contribuem com 5,4% dos US$ 64 milhões
do PIB dominicano.
Contudo, não é somente a questão econômica que está
em jogo. O que está no centro do debate é uma nova política de cidadania. No
dia 17 de julho, chegou ao fim o Plano Nacional para a Regularização de
Estrangeiros em Situação Irregular, um dos principais feitos do governo de
Danilo Medina, eleito em 2012, que tenta reeleição no ano que vem.
O plano foi uma resposta às críticas de Estados e
órgãos internacionais à sentença 168/13 e um esforço para resolver o que é
localmente conhecido como “o problema haitiano”. No entanto, o plano teve
efeitos controversos, ao exigir de migrantes pobres que trabalham no setor
informal o pagamento de elevadas taxas e a apresentação de comprovantes de
emprego e de residência para conseguirem documentos.
Helène, haitiana que vive na periferia de Santo
Domingo desde 2010, conseguiu com muito custo solicitar sua documentação, mas
ainda não sabe se será naturalizada, se lhe darão um visto de trabalho ou de
residência. Ela contou com a ajuda do Centro Bonó, ONG dominicana que trabalha
auxiliando imigrantes e pessoas em situação de risco. Outros haitianos,
contudo, foram vítima de falsários e advogados oportunistas.
Ana Geraldo, advogada da ONG, diz que as
informações prestadas pelo governo dominicano sobre o plano nunca foram claras,
prejudicando os haitianos e dominicanos interessados em se regularizar. Ana
María Belique, dominicana de pais haitianos e representante do Movimento
Reconocido, acrescenta que a existência de planos coincidentes e o excesso de
categorias atrapalham o processo. Ela foi uma das 55 mil pessoas que, mesmo
nascidas na República Dominicana, perderam a cidadania.
Na corrida pela reeleição em 2016, veem-se cartazes
com a imagem de Medina por todo o país. A partir do fim do Plano de
Regularização, o presidente e diversos embaixadores apresentaram-se a órgãos
internacionais para tentar justificar as recentes políticas de seu governo.
Dividido entre conseguir o apoio interno de
ultraconservadores e não perder os auxílios políticos e econômicos da Europa e
dos Estados Unidos, o governo fala em conspiração internacional e defende-se
com argumentos sobre a importância da soberania nacional. Em 8 de julho, em
sessão da Organização dos Estados Americanos (OEA), o governo haitiano
mostrou-se crítico em relação à nova política e preocupado com o fluxo de
pessoas que começa a chegar ao país. Em resposta, o governo dominicano aprovou
a visita de uma missão internacional que acompanhou o processo atual de
regularização entre os dias 10 e 14 de julho, emitindo um relatório crítico da
situação.
A partir de agosto, após a entrega dos vistos aos
imigrantes e da resolução da situação dos nascidos na República Dominicana,
começam as ações da polícia de imigração para deportar do território nacional
pessoas de ascendência haitiana que não conseguiram correr contra o tempo e
enfrentar a desorganização e a crueldade burocráticas descritas por Mariano.
Por ora, entre haitianos e dominicanos de origem
haitiana, uma categoria que o governo insiste em dizer que não existe, o medo e
os rumores de um endurecimento das deportações e de violências oportunistas que
adquiriram o respaldo do Estado têm sido políticas efetivas de expulsão.
Por outro lado, manifestações estão tomando conta
da capital, chamando atenção para o fato de que não se trata somente de uma
questão interna. Por meio de cartazes e frases em coro, mensagens são
veiculadas conectando os eventos recentes do país às formas diversas de
discriminação e violência contra populações negras em todo o globo, como nos
dizeres “black lives matter” (vidas negras importam), em referência à chamada
que se popularizou após as manifestações de Ferguson, nos Estados Unidos. No
fundo, a luta que se trava na República Dominicana não parece tão distinta do
que a que se vive em outros contextos globais.
Dados do governo dominicano falam em 40 mil pessoas
que já cruzaram a fronteira, número provavelmente subestimado. Do lado
haitiano, campos provisórios estão sendo montados para receber os imigrantes,
ecoando uma imagem que se tornou habitual no Haiti após o terremoto de 12 de
janeiro de 2010.
Rodrigo Charafeddine Bulamah
Rodrigo Charafeddine Bulamah é antropólogo, faz
doutorado na Unicamp e trabalha com história e ecologia no Haiti e na República
Dominicana
Ilustração: Alex Polmos
(de Santo Domingo, República Dominicana)
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