Tendo dificuldades para fazer valer plenamente seu
ponto de vista na Organização Mundial do Comércio, os EUA tentam outras vias
para impor seus interesses.
Paulo Kliass* // www.cartamaior.com.br
Com a nossa pauta tupiniquim absolutamente tomada
pelas notícias envolvendo o golpichment, o austericídio e as contas suíças
milionárias do terceiro colocado na linha sucessória da República, é
compreensível que muito pouco espaço esteja sendo conferido a uma importante
articulação levada a cabo pela diplomacia norte-americana.
Trata-se da Parceria Trans-Pacífica (TPP, da sigla em inglês “Trans-Pacific Partnership”), uma estratégia em desenvolvimento que
pretende ocupar o espaço vazio ainda existente nas relações econômicas
internacionais. O governo do Presidente Obama obteve a aprovação de um sistema
de “fast track” por parte do Congresso para o assunto, fato que garante maior
agilidade ao Poder Executivo na condução das negociações e no desenho final do
modelo de diplomacia econômica em curso.
O acordo em gestação prevê a inclusão de temas
amplos, como o comércio de bens e de serviços, além de propriedade intelectual,
patentes e direitos autorais. Como o próprio nome deixa a entender, os 11
países signatários iniciais estão todos voltados para a costa oeste
norte-americana, em direção ao Oceano Pacífico. São eles: Canadá, México,
Chile, Peru, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Cingapura, Vietnã e
Brunei. Apesar de não se constituir enquanto bloco econômico, a iniciativa
contempla o potencial econômico de 40% do PIB mundial. Ainda que não conte com
a participação de gigantes como Índia, China ou Rússia, o mercado do TPP pode
ser avaliado pelos 800 milhões de habitantes de seus países.
TPP e o mundo multipolar.
Um diferencial significativo em relação aos acordos
congêneres construídos até os dias de hoje refere-se ao poder concedido às grandes
corporações multinacionais nas soluções de questões e pendências. Ao contrário
do que ocorre atualmente, o setor privado vai ter o mesmo poder conferido aos
Estados nacionais na condição de atores e interlocutores nos litígios e nos
processos decisórios. Se imaginarmos o poder de fogo dos gigantes dos negócios
globais, veremos que muitas das vezes são superiores à dimensão econômica de muitos países. O risco estratégico de se oferecer tamanho poder ao capital nas
relações diplomáticas é o retrocesso na mediação e a imposição da lógica
explícita do lucro nas negociações internacionais.
O surgimento de tal iniciativa diplomática ocorre
num momento em que a cena mundial está marcada pela falta de inciativa
consolidada no universo do comércio entre as nações. Desde o fim do antigo
bloco do socialismo, paradoxalmente observa-se uma queda paulatina da
supremacia exercida pelos Estados Unidos na dinâmica de acumulação global. A
superação do mundo bipolar deu origem a um quadro de incerteza e instabilidade,
mas com a marca inequívoca da multipolaridade.
Além da trajetória de consolidação do poderio
chinês, assistiu-se ao fortalecimento de iniciativas e de blocos regionais, um
pouco na sequência da União Européia. Assim foi com o MERCOSUL, com o NAFTA,
com os diversos arranjos na África, na Ásia e no Oriente, além da falida
tentativa de constituição da ALCA. A experiência mais recente dos BRICS também
se soma a esse conjunto amplo de busca de saídas que envolva alguma forma de
articulação diplomática e comercial.
EUA passam ao largo da OMC.
Tendo em vista as dificuldades de fazer valer
plenamente seu ponto de vista no interior da Organização Mundial do Comércio
(OMC), os Estados Unidos tentam várias iniciativas por outras vias. É o caso
desse arranjo voltado para o Pacífico, que passa ao largo da União Européia, da
África e da China, mas busca uma rearticulação econômico-internacional pelas
beiradas, envolvendo um conjunto de países tão díspares quanto distantes.
A constituição de uma organização que se imponha
como reguladora das questões relativas ao comércio internacional é um processo
longo e de difícil manejo. A própria história da OMC revela tal processo. Desde
os tempos em que se tratava apenas de um Acordo Geral de Comércio e Tarifas
(GATT) em 1947 até a sua conformação institucional em organismo multilateral do
sistema das Nações Unidas em 1995, a realidade do comércio internacional também
passou por grandes mudanças. As nações mais desenvolvidas tentam impor aos
demais seus interesses em avançar para a área de serviços e propriedade
intelectual, uma vez que as querelas envolvendo bens primários ou manufaturas
de baixo valor não é mais o centro de suas preocupações. Por outro lado, os
países em desenvolvimento pressionam em sentido contrário e busca influir em um
modelo que contemple também seus interesses.
Desde as articulações iniciais da Roda Uruguai e a
constituição dos TRIPS (acordo envolvendo direitos autorais), a necessária
cadência diplomática da OMC não acompanha o ritmo frenético das inovações
tecnológicas e das mudanças do perfil da acumulação em escala global. Restam,
portanto, várias pendências em setores considerados estratégicos: armamentos,
medicamentos, informática, setor financeiro, recursos naturais, entre outros.
Os Estados Unidos tentam utilizar o TPP como laboratório para tais avanços
sobre os países em desenvolvimento, buscando criar a diplomacia do fato
consumado para as etapas a negociar no futuro.
As críticas de nosso liberalismo de botequim.
Um aspecto que chama a atenção é que a crítica
liberalóide em nossas terras ainda continua a levantar sua voz e acusar o governo
brasileiro de suposta omissão também nesse assunto. De acordo com essa
interpretação, estaríamos perdendo o bonde da História outra vez. Ou seja, a
mesma lenga-lenga dos tempos da rendição subserviente ao poderio
norte-americano, em sua tentativa de construir uma área de livre comércio aqui
nas Américas. Com a mudança de orientação diplomática a partir de 2003, o
Itamaraty contribuiu de forma decisiva para que não fosse adiante o projeto
ianque em torno da ALCA.
Com isso, a ambição da Casa Branca acabou tendo que
se resumir mesmo aos parceiros vizinhos na porção norte em torno da NAFTA, bem
como impulsionando um conjunto de iniciativas de acordos bilaterais com os
países do centro e do sul do continente. Já que não lograram constituir uma
área continental, passaram a tentar sabotar os arranjos regionais em torno da
América do Sul.
A alternativa apresentada pelos nossos defensores
de um falso liberalismo de botequim não resiste a qualquer avaliação mais
sensata e muito menos à realidade dos fatos. Buscando se equilibrar ainda nas
ondas da liberalização econômica incondicional, os representantes da ortodoxia
fingem acreditar na velha história das oportunidades trazidas pela abertura dos
portos e nas benesses que seriam trazidas pela sacrossanta exposição às leis de
mercado em escala internacional. Tudo muito simples em um mundo tranquilo e cor
de rosa.
Ora, nem mesmo os países que se dizem propagadores
da doutrina do liberalismo econômico conseguem praticá-lo em seus próprios
espaços econômicos, em especial durante os momentos de crise. Os Estados Unidos
e a União Européia, por exemplo, são exemplos concretos de práticas
protecionistas por décadas e têm sofrido, inclusive, derrotas em instâncias da
OMC, em ações levadas a cabo pelo Brasil. Podemos não aceitar que eles ajam
assim, mas devemos compreender. Afinal, a obrigação de um Estado é defender os
interesses de seus cidadãos e/ou empresas. Isso significa proteger seus
empregos e sua renda. Ou seja, tudo aquilo que nossos teóricos
livre-mercadistas não aceitam que façamos em causa própria.
Aderir ao TPP é rendição incondicional.
Aderir a esse tipo de protocolo sem a possibilidade
de defender seus próprios interesses econômicos é um verdadeiro crime de lesa
pátria. Basta ver o que tem acontecido com a sociedade brasileira ao longo dos
últimos anos, desde que o Plano Collor resolveu abrir as porteiras sem nenhum
mecanismo de transição que assegurasse os interesses nacionais. O processo de
desindustrialização tem início ali e foi aprofundado a partir de 1994, com a
irresponsável trajetória da política de sobrevalorização cambial.
Nossa indústria não apresenta condições de competir
com a deslealdade de condições das exportações provenientes da China, por
exemplo. E fomos perdendo nossa capacidade industrial instalada. Voltamos ao
modelo clássico do pós-colonialismo dependente. Excelentes exportadores de bens
primários de baixo valor agregado e cordiais importadores de bens de maior
valor agregado, os manufaturados. Ou seja, apresentamos um déficit estrutural de
transferência de nossa riqueza para o exterior.
E a desindustrialização por nossas terras não foi
acompanhada pelo crescimento correspondente dos serviços de elevado conteúdo
tecnológico, como aconteceu nos países desenvolvidos. Estimulamos toda a cadeia
do agronegócio exportador e nos especializamos em serviços de baixo valor
agregado e de baixa qualidade, como o setor de telemarketing. Assim, em termos
de capacidade econômica instalada e em condições de acompanhar as tendências da
vanguarda, regredimos algumas décadas.
E justamente esse é um dos objetivos centrais desse
acordo TPP. Incluir a economia do conhecimento no rol da liberalização radical
do comércio internacional. E aqui entram os serviços de alta tecnologia de hoje
e do futuro, como os processos e as patentes envolvidas em telecomunicações, informática,
mundo virtual, nanotecnologia, biotecnologia, economia da natureza e tantas
outras.
No entanto, as dificuldades impostas pelos Estados
Unidos são tantas no âmbito desse rascunho de TPP que os próprios países
signatários enfrentarão dificuldades para votar o acordo em seus respectivos
legislativos. Isso indica que o Brasil não perdeu nada pela ausência individual
no processo constitutivo do bloco.
Isso não significa que tudo seja um mar de rosas
nas negociações atuais envolvendo o MERCOSUL, os BRICS e outros arranjos dos
quais participamos. Porém, abrir mão dessas conquistas para entrar de forma
isolada em uma aventura transpacífica, com uma posição subalterna frente aos
interesses dos norte-americanos, não parece ser uma alternativa compensadora.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal.
Créditos da foto: United Nations Photo
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