O
governo de Horacio Cartes, envolvido com narcotráfico e fraudes bancárias,
eleito depois do golpe contra Fernando Lugo, enfrenta resistências populares.
Rafael
Salinas, Socialismo ou Barbárie // www.cartamaior.com.br
“O Paraguai é como uma mulher fácil e bonita,
com a qual poderão fazer o que queiram. Poderão repatriar quase tudo o que
ganharem, os impostos que deverão pagar serão mínimos, e sobretudo, não terão
que arcar com o lastro dos sindicatos”. (Horacio Cartes, presidente do
Paraguai, falando com investidores estrangeiros ao assumir seu cargo, Última
Hora, 20/082013).
“Usem
e abusem do Paraguai porque este é um momento importante de oportunidades”.
(Horacio Cartes falando com uma centena de empresários brasileiros, Última
Hora, 18/02/2014)
“Uma
vaca ou um cachorro são iguais a qualquer estudante”. (Froilán Peralta, reitor
da Universidade Nacional de Assunção, Paraguay.com, 21/09/2015)
O
Paraguai vive atualmente uma situação política que desperta sinais de interrogação
sobre o futuro de seu narco-presidente, Horacio Cartes, e também do regime
autoritário-policial que ele encabeça. Um regime que sua base política já não
consegue dissimular nem a brutalidade, nem a corrupção.
Isto
começou há uns dois meses com um feito que nenhum meio de comunicação noticiou.
Os estudantes do colégio de Salesianos, em Assunção, fizeram um enorme
protesto. Normalmente algo assim não transcendia as paredes de um colégio ou
uma faculdade. Mas agora esta faísca encontrou a quantidade necessária de
pólvora que estava acumulada.
O
protesto foi crescendo cada vez mais, com ocupações e manifestações massivas
nas ruas. Dos colégios de ensino fundamental públicos e privados, o incêndio
passou para a Universidade Nacional de Assunção (UNA), a principal e mais
atinga do país.
Na
UNA, em 22 de setembro, milhares de estudantes tomaram as 12 faculdades e os
reitores ficaram presos até a noite, fechados em uma sala sem ar condicionado
sob um calor de 40ºC. Antes que passassem mal, os estudantes deixaram que
saíssem da universidade. Mas, ao sair, a situação piorou para eles, tamanha era
a multidão hostil que os esperava com gritos de “delinquentes”, “canalhas”,
“crápulas”, “ladrões”, “ignorantes”. Só uma intervenção de estudantes foi capaz
de salvá-los de um linchamento durante a fuga.
Froilán
Peralta – veterinário, reitor da UNA e famoso por sua inspirada frase: “uma
vaca ou um cachorro são iguais a qualquer estudante” - se salvou de ser
capturado por não ter ido neste dia à universidade. Passou imediatamente à
clandestinidade e logo abandonou o cargo, enquanto um juiz investiga seus
roubos.
Mais
setores se unem aos protestos, o que demonstra um descontentamento geral
O
notável é que o movimento tende a prolongar-se depois do impulso dos
secundaristas e da UNA e agora abarca também outros setores.
Na
segunda-feira 5 de outubro, houve grandes mobilizações de estudantes e
trabalhadores da educação em Assunção em outras cidades, com manifestações,
fechamentos de avenidas e ocupação do prédio do Ministério da Educação e
Cultura (MEC). As principais reivindicações são aumento do investimento em
educação para 7% do PIB e fim do autoritarismo e da corrupção educacional e
estatal.
Mas
a história vai muito além. Uma pesquisa do Ibope-Paraguai de agosto deste ano
revela que 64% da população desaprova o governo Cartes. Passados dois anos, o
descontentamento crescente e generalizado com a quadrilha do Partido Colorado é
arrasador... mas também afeta a falsa “oposição” do Partido Liberal Radical
Autêntico (PLRA), que tenta fazer o jogo. A questão é que em muitos casos, por
exemplo na Universidade, há uma divisão negociada de cargos, privilégios... e
oportunidades de roubar a quatro mãos, e aos liberais também toca uma parte.
Este
descontentamento generalizado – como dizíamos – tem um conteúdo político que
objetivamente vai além dos “educadores” que consideram seus alunos vacas ou
cachorros, e do escândalo de “professores” que cobram salários exorbitantes por
sete cátedras que nunca cumprem. O movimento questiona potencialmente todo o
cenário político, incluindo o presidente Cartes.
As
consequências de uma derrota
O
atual governo é produto de uma derrota popular, o golpe “brando” que derrubou
sem grande resistência o governo de Fernando Lugo, em 2012. Esta derrota se
combina com os recursos de autoritarismo brutais dos aparatos políticos e
estatais, herdados de décadas de ditaduras.
Esta
séria derrota política (agravada pela vergonhosa atitude de Lugo) e as ilusões
semeadas em Cartes (que assume a presidência em agosto de 2013) abriram
expectativas em setores da classe média urbana (cujos filhos iniciaram agora este
movimento de protestos), mas também nos meios mais populares.
Porém,
o neoliberalismo selvagem e entreguista, encarnado por Cartes, burlou suas
ilusões. Não trouxe nenhum benefício a estes setores, tampouco à classe
trabalhadora. Cartes se orgulha em afirmar que o PIB do Paraguai, segundo
estatística oficiais, havia crescido em 2014 a notável cifra de 4,4%. Mas isso
– e muito mais – foi para os bolsos dos empresários, em grande parte
estrangeiros, que aplicam ao pé da letra sua consigna: “usem e abusem do
Paraguai”! A maioria da população não notou melhoras e está em uma situação
pior.
Os
festejos pelos “êxitos” da economia na verdade provocaram raiva nos que não
foram afetados com nenhuma fatia. Como acontece em boa parte do mundo, o
“crescimento” econômico neoliberal arrecada uma distribuição cada vez mais
desigual e polarizada.
No
caso do Paraguai – como temos visto recentemente também em Honduras – a raiva
surge também contra a corrupção exacerbada de políticos e funcionários
Uma
alternativa política dos trabalhadores, da juventude e dos setores populares
contra Cartes
As
manifestações e protestos têm levantado exigências democráticas e econômicas,
desde o rechaço ao autoritarismo, até a questão do investimento na educação (e
seu saqueamento pelos colorados ou liberais). Isto é um grande avanço desde a
situação de retrocesso e derrota provocada pelo ex-bispo!
Mas
só isso não basta. Este primeiro passo exige seguir adiante... sob pena de
retroceder. Há algo que poderão mudar em Cartes, que governaria até 2018 com a
linha de que o “Paraguai é como uma mulher fácil e bonita com a qual poderão
fazer o queiram”?
Hoje
este governo desfruta de forte rechaço de dois terços do povo paraguaio. Há que
lutar para que este repúdio generalizado, esse amplo descontentamento, se
materialize em um movimento que dê uma alternativa política democrática. Isto
tem dois aspectos principais: o primeiro é que Cartes se vá agora; o segundo é
que o povo paraguaio decida democraticamente – por exemplo em uma Assembleia
Constituinte imposta com mobilizações – se quer que o Paraguai siga submetido
aos exploradores nacionais e estrangeiros, ou se é necessária uma mudança
revolucionária.
Neste
panorama seria decisivo que a juventude e os educadores que estão se mobilizando
se relacionem com outros setores da classe trabalhadora, que podem estar
dispostos a lutar, como por exemplo os motoristas de ônibus.
Transformar
o descontentamento geral em mobilização da juventude e dos trabalhadores é o
meio de acabar com Cartes e abrir uma nova perspectiva.
Sem
“o lastro dos sindicatos” nem sua “chantagem social”
“A
crucificação dos motoristas é uma chantagem social, pois apelam à compaixão
para recuperar seus empregos... As empresas têm todo o direito de demitir seus
trabalhadores”. (Guillermo Sosa, ministro do Trabalho. Jornal Hoy, 22/07/2015)
Já
vimos como o presidente Cartes, ao assumir, prometeu aos capitalistas que no
Paraguai “não terão que arcar com o lastro dos sindicatos”. Através,
principalmente, do Ministério do Trabalho se aplica uma política de “terra
arrasada”, na qual sequer são tolerados os sindicatos burocráticos. Cartes quer
impor à força o modelo ianque de “open shop”; ou seja, fábricas e empresas sem
nenhuma organização dos trabalhadores.
Mas
esta política também começa a ser contestada. Ainda que não seja de forma
massiva, alguns casos já estão causando impacto.
Em
junho deste ano começou um conflito na empresa de ônibus La Limpeña,
propriedade do deputado Celso Maldonado do Partido Liberal, que é “a leal
oposição de sua majestade” ao presidente Cartes.
As
condições de trabalho são horrorosas. A jornada “normal”, sem pagamento de
horas extras, é de 18 horas, os trabalhadores devem pagar os reparos dos ônibus
que dirigem, a empresa sonega a contribuição para as aposentadorias, entre
outros abusos. Finalmente fartos, os motoristas começaram a organizar um
sindicato. A resposta do deputado foi despedir 57 funcionários. O Ministério do
Trabalho se aliou, obviamente, ao setor patronal.
Em
meio a este retrocesso, e ainda sem as manifestações estudantis consolidadas,
os trabalhadores despedidos resolveram chamar a atenção: se instalaram em
barracas em frente à empresa e ao Ministério e seus dirigentes começaram a se
crucificar (literalmente) semanalmente.
Isto
começou a ter certo impacto, inclusive internacionalmente. No final de agosto
foi realizada uma marcha de solidariedade de diversos sindicatos até o
Ministério do Trabalho. Ao se aproximar do prédio foram brutalmente reprimidos
com cassetetes e balas de borracha. Como disse o ministro, ele não vai tolerar
“chantagens”.
Breve
resumo sobre Cartes & Family Corp.
A
calamidade que foi o golpe contra Lugo deixou uma desmoralização e confusão
política bem aproveitadas pela direita. Horacio Cartes foi “vendido” no
“mercado eleitoral” como um “homem jovem” na política (ele se filiou ao partido
em 2009). Era a “renovação” necessária que teria um “jovem empresário exitoso”.
Igual
a Mauricio Macri – com quem se parece em alguns aspectos, em primeiro lugar no
neoliberalismo raivoso – Cartes deu o salto à política desde o futebol. Isso
porque era presidente do clube Libertad, um dos principais do Paraguai. Isto
lhe rendeu uma “popularidade” convenientemente vazia de definições políticas.
Mas
Cartes também tem uma trajetória “empresarial” peculiar. Ele e sua família
pertencem a essa burguesia que tem peso relevante no Paraguai e em outros
países latino-americanos.
Assim,
depois de estudar nos Estados Unidos, enviado por sua família – a concessionária de aviões Cessna – o “jovem empreendedor”
Horacio Cartes fundou, em 1989, a casa de câmbios Amanbay (logo Banco
Amanbay)... que em meados dos anos 90 protagonizou uma fraude de US$ 34 milhões
para o Banco Central. Por este primeiro “empreendimento”, Cartes esteve
foragido por quatro anos, até que a Corte Suprema, bastante cúmplice, o ajudou.
O
negócio familiar dos aviões teve também seus rentáveis desenvolvimentos.
Segundo documentos da DEA revelados pelo Wikileaks, os Cartes estão envolvidos
em operações e lavagem de dinheiro provenientes de contrabando de cigarros e
drogas nas aeronaves. Em 2000 foi capturado um dos aviões na fazenda Esperança,
pertencente a Horacio Cartes, com 343 quilos de maconha e 20 de cocaína. Seu
tio, Juan Domingo Vivero Cartes, passou seis anos detido no Brasil por
narcotráfico. O sobrinho teve mais sorte: pousou na presidência do Paraguai.
Tradução
de Mariana Serafini
Créditos
da foto: wikimedia commons
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