Boa parte das atividades dos paraísos fiscais é
legal. A grande corrupção é cometida pelos grupos que sequestram o Estado e
geram a sua própria legalidade
Ladislau Dowbor // www.cartamaior.com.br
Nicholas
Shaxson – Treasure Islands: uncovering the damage of offshore banking and tax
havens – St. Martin’s Press, New York, 2011
Estamos acostumados a ler denúncias sobre os
paraísos fiscais, mas a realidade é que apenas muito recentemente começamos a
nos dar conta do papel central que jogam na economia mundial, na medida em que
não se trata de “ilhas” no sentido econômico, mas de uma rede sistêmica de
territórios que escapam das jurisdições nacionais, permitindo assim que o
conjunto dos grandes fluxos financeiros mundiais fuja das suas obrigações
fiscais, esconda as origens dos recursos, ou mascare o seu destino.
Todos os grandes grupos financeiros mundiais, e os
maiores grupos econômicos em geral, estão hoje dotados de filiais (ou matrizes)
em paraísos fiscais. Os paraísos fiscais constituem uma dimensão de praticamente
todas as atividades econômicas dos gigantes corporativos, formando um tipo de
uma gigantesca câmara mundial de compensações, onde os diversos fluxos
financeiros entram na zona de segredo, de imposto zero ou equivalente, e de
liberdade relativamente a qualquer controle efetivo. Os recursos serão
reconvertidos em usos diversos, nos espaços declarados formais, livres de
qualquer pecado. Não é que haja um espaço secreto, é que com a fragmentação do
fluxo financeiro, que ressurge em outros lugares e com outros nomes, é o
conjunto do sistema que se torna opaco: “Se você não pode ver o todo, você não
pode entendê-lo. A atividade não acontece em alguma jurisdição – acontece entre
as jurisdições. O ‘outro lugar’ se tornou ‘lugar algum: um mundo sem regras’”.(28)
Os volumes são conhecidos desde que a pressão das
sucessivas reuniões do G20 e os trabalhos técnicos do TJN (Tax Justice
Network), do GFI (Global Financial Integrity), do ICIJ (International
Consortium of Investigative Journalists)
e do próprio Economist passaram as nos
fornecer ordens de grandeza: são cifras da ordem de 21 a 32 trilhões de
dólares, para um PIB mundial de 73 trilhões (2012). O Brasil participa com algo
como US$520 bilhões, quase 30% do PIB. A OCDE acaba de lançar um primeiro
programa de contenção dos drenos e do caos financeiro mundial gerado, o BEPS
(Base Erosion and Profit Shifting), mais uma das múltiplas tentativas de se
criar um marco legal para conter o caos planetário gerado. Mas na base está um
problema central: o sistema financeiro é planetário, enquanto as leis são
nacionais, e não há governo mundial.
O sistema impacta diretamente os processos
produtivos: “Keynes entendeu a tensão básica entre a democracia e os fluxos
livres de capital. Se um país tentar reduzir as taxas de juros, digamos, para
estimular as industrias locais em dificuldades, é provável o capital vazar para
o exterior na busca de uma remuneração mais elevada, frustrando o seu
intento”.(56) Quando além disto se pode ganhar mais, e deixar de pagar
impostos, qualquer política econômica de uma nação se torna pouco realista.
Assim “o sistema offshore cresceu com metástases em todo o globo, e surgiu um
poderoso exército de advogados, contadoras e banqueiros para fazer o sistema
funcionar...Na realidade o sistema raramente acrescentava algum valor, mas pelo
contrário estava redistribuindo a riqueza para cima e os riscos para baixo, e
criando uma nova estufa global para o crime”. (130)
A questão dos impostos é central, e apresentada em
detalhe. O mecanismo do offshore é apresentado a partir de um relatório de 2009
elaborado pelo FMI: trata-se “do velho truque dos preços de transferência: os
lucros são offshore, onde escapam dos impostos, e os custos (o pagamento de
juros) são onshore, onde são deduzidos dos impostos”.(216) A conexão com a
crise financeira mundial é direta. “Não é coincidência que tantos dos
envolvidos em tramoias financeiras, como Enron, ou o império fraudulento de
Bernie Madoff, ou o Stanford Bank de Sir Allen Stanford, ou Lehman Brothers, ou
AIG, estivessem tão profundamente entrincheirados em offshore.”(218)
A maior parte das atividades é legal. A grande
corrupção, como já apresentamos em outro trabalho (L. Dowbor, Os estranhos
caminhos do nosso dinheiro, 2014), gera a sua própria legalidade, o que passa
pela apropriação da política, processo que Shaxson qualifica de “captura do
Estado”: Não é ilegal ter uma conta nas ilhas Cayman, onde a legalidade e o
segredo são completos: é “um lugar que busca atrair dinheiro oferecendo
facilidades politicamente estáveis para ajudar pessoas ou entidades a contornar
regras, leis, e regulamentações de outras jurisdições”.(228)
Trata-se, em grande parte, de corrupção sistêmica:
“No essencial, a corrupção envolve entendidos (insiders) que abusam do bem
comum, em segredo e com impunidade, minando as regras e os sistemas que
promovem o interesse público, e minando a nossa confiança nestas regras e
sistemas. Neste processo, agravam a pobreza e a desigualdade e entrincheiram os
interesses envolvidos e um poder que não presta contas”.(229)
A base da lei das corporações, das sociedades
anônimas, é que o anonimato da propriedade e o direito de serem tratadas como
pessoas jurídicas, podendo declarar a sua sede legal onde queiram e qual que
seja o local efetivo das suas atividades, encontraria o contrapeso na
transparência das contas. “Na origem, as corporações tinham de cumprir um
conjunto de obrigações com as sociedades onde se situavam, e em particular de
serem transparentes nos seus negócios e pagar os impostos... O imposto não é um
custo para os acionistas, a ser minimizado, mas uma distribuição para os
agentes econômicos (stakeholders) da empresa: um retorno sobre os investimentos
que as sociedades e os seus governos fizeram em infraestruturas, educação,
segurança e outros requisitos básicos de toda atividade corporativa”.(228)
Shaxson fez um trabalho meticuloso, o livro é muito
bem escrito, e compreensível para qualquer leigo. Jeffrey Sachs qualificou-o de
“an utterly superb book”, Nicholas Stern, que já foi economista chefe do Banco
Mundial, é igualmente um entusiasta. Estas referências são importantes, pois
Shaxson não fez um panfleto contra os paraísos fiscais, e sim desmontou os
mecanismos da finança internacional que neles se apoiam, oferecendo uma
ferramenta para entender o caos mundial que nos deixa cada vez mais perplexos.
O mecanismo nos atinge a todos, na injustiça dos
impostos, mas também no prosaico cotidiano: “A construção de monopólios
secretos por meio da opacidade offshore parece penetrar amplamente em certos
setores e ajuda muito a explicar porque, por exemplo, as contas dos nossos
celulares são tão elevadas em certos países em desenvolvimento”. (148) Os
impactos são sistêmicos: “As propinas contaminam e corrompem governos, e os
paraísos fiscais contaminam e corrompem o sistema financeiro global”.(229)
Créditos da
foto: reprodução
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