Sem criar forças sociais de crítica e combate, os
governos petistas pagam por si os custos das práticas gerais da contraditória
legalidade corruptiva.
Alysson Leandro Mascaro // www.cartamaior.com.br
O direito não é causa nem é o único vetor da crise
brasileira, mas é seu solo estratégico, condensado e simbólico, que permite
extrair consequências para o jogo político, para as correlações econômicas e
para derivações ideológicas. No palco da crise brasileira, o direito entra como
reputado remédio da corrupção. É nesse campo, de uma legalidade dos negócios
públicos ou dos atos administrativos, que se levanta um horizonte no qual o
direito é o restaurador da moralidade governamental e, daí, condutor de alguma
ordem de redenção nacional.
Para que o direito assuma tal papel, é preciso uma
larga cadeia social de construção da corrupção como mazela icônica e
insuportável, galvanizando a sensibilidade do imaginário social nacional. O
direito só logra assumir proeminência como combatente da corrupção e ativador
de uma dinâmica social “ética” se estiver ao lado de uma articulação ideológica
imediata que a ele conflua, empreendida por meios de comunicação de massa. Para
tanto, a crise brasileira então também encontra, para além de uma histórica
resistência dos meios tradicionais de comunicação – televisões, rádios,
jornais, revistas – a governos de esquerda, a sua consolidação em bloco de
visão política quando da assunção dos governos petistas. Como novidade, dá-se
um alinhamento de conteúdo e estratégia de empresas que até então concorriam
pela diferença de visões, alguma respeitabilidade, vanguarda de noticiário ou,
simplesmente, mercado. Num processo de poucos anos, o discurso de
imparcialidade e a parcimônia em face de distorções da imprensa tradicional dão
lugar a uma cadeia de bombardeio ideológico e uma radicalização em posições
ainda mais à direita de tais órgãos de comunicação.
Os governos petistas, assumindo mandatos depois de
uma longa etapa de propaganda ideológica neoliberal junto ao público formador
de opinião no Brasil, impõem-se a partir de soluções políticas de dosagens
menos regressivas dentro desse espectro neoliberal, não rompendo com seus
paradigmas e mesmo perseguindo dissidências à esquerda.[1] No primeiro mandato
de Lula, o discurso político é claramente de rendição ao capitalismo e ao
neoliberalismo como estruturas inexoráveis. No segundo mandato, troca-se
parcialmente o discurso de neoliberalismo pelo de algum desenvolvimentismo,
mantendo-se o capitalismo como horizonte legitimado. Nesse contexto, o petismo
eleva, ao máximo, contradições gestadas desde sua origem, quando se assume como
partido de esquerda mas operante nas estruturas do capitalismo e defensor da
democracia, da cidadania e dos direitos humanos, carreando ainda consigo a
bandeira de certa autenticidade da luta social – contra o velho trabalhismo de
Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola.[2] Além disso, assenta-se em uma
plataforma de defesa da ética, da legalidade e de combate à corrupção.
Justamente tal discurso empreendeu um acoplamento parcial do PT, nas décadas de
1980 e 1990, com alguns órgãos de imprensa. Tal visão, que prestigiava a
liberdade de expressão da mídia e a defesa das opiniões divergentes, somou-se à
ausência de disputa ideológica quando do início do governo Lula. Nos termos
consolidados da prática política do PT, os meios de comunicação de massa não
poderiam ser cerceados. A crença em algum de imparcialidade do noticiário – ou
de triunfo social da verdade ao cabo das perseguições da imprensa – guiou a
política petista nos anos de poder, em que pese todo o longo histórico de
combates sofridos pela esquerda brasileira – golpe contra Jango, Brizola nas
eleições de 1982 e, de modo simbólico, Lula nas eleições de 1989.
O processo de acomodação ao horizonte ideológico de
neutralidade ou de indiferença em face das modulações políticas dos meios de
comunicação de massa também se dará, de modo igual, no que tange às esferas do
direito e das instituições estatais. Os governos petistas armam-se numa
estratégia de imobilismo ou de indiferença à tecnicidade de tais esferas,
vangloriando-se, inclusive, da não-intervenção em suas práticas e costumes, sob
argumentos de republicanismo e respeito à legalidade. O histórico de nomeações
a tribunais superiores revela uma ausência de estratégia política dos governos
petistas e mesmo de entendimento sobre horizontes ideológicos a serem
disputados. A esfera do direito, os tribunais e órgãos como Polícia Federal
são, assim, naturalizados, e sua operação respeitada como imparcial por ser
lastreada na técnica jurídica. Uma ideologia política liberal burguesa e
jurídica permeou, de ponta a ponta, os governos petistas.
A corrupção e o caso brasileiro
A corrupção é estrutural do capitalismo. A
mercadoria atravessa a tudo e a todos; a intermediação dos vínculos jurídicos
por estratégias de favorecimento pessoal não é uma negação da natureza desses
mesmos vínculos, mas uma de suas possibilidades, sendo inclusive, em modelos
médios de reprodução capitalista, sua possibilidade central e provável. Nesse
nível estrutural, o capital, podendo a tudo e a todos comprar, apenas se
confirma quando a corrupção é dada. Não há limites éticos, morais, culturais ou
sociais ao motocontínuo da determinação econômica capitalista – a acumulação
não reconhece fronteiras.
Há uma especificidade da corrupção no capitalismo,
na medida em que ela é, em alguma medida, uma negação da legalidade, que, por
sua vez, é sustentada pela forma jurídica e pela forma política estatal que são
espelhos da própria forma mercantil. A corrupção, assim, é uma contradição
necessária da reprodução capitalista, na medida em que revela que as formas
sociais pelas quais o capitalismo se estrutura não estabelecem um circuito
lógico ou funcional de acoplamento. O capital só há com direito e Estado –
sendo a legalidade a resultante da conformação dessas formas[3] –, mas, ao
mesmo tempo, toda ordem estatal e legalidade só existem em função do capital.
Com isso, o poder do capital e as estratégias da acumulação atravessam
negativamente o solo da legalidade que é, ao mesmo tempo, sua própria condição
de existência. A forma de subjetividade jurídica arma-se como derivada da
mercadoria, a forma política estatal do mesmo modo, e a legalidade, derivada
secundária dessas formas quando conformadas, arranja-se numa tensão constante
entre limitar o poder do capital e/ou da força bruta ou apoiá-la.
Com essa necessária e estrutural natureza da
corrupção no capitalismo, sua contradição com a legalidade se resolve sempre na
casualística, que tem no direito apenas um ponto de condensação, mas não seu
núcleo de resolução estrutural. Quantos e quais capitais, capitalistas, atos e
negócios jurídicos serão acusados e combatidos como corruptos, esta é uma decisão
do campo das relações concretas de força econômica, política, ideológica e
cultural no seio das sociedades e de sua história. São luzes e sombras lançadas
por fatos, notícias, reações sociais e decisões jurídicas e institucionais
individuais e de grupo que sensibilizam variadamente as percepções das
corrupções e seus respectivos combates. É certo que uma dosagem minúscula de
combate à corrupção não instaura condições suficientes à reprodução capitalista
e que uma dosagem máxima desse mesmo combate enfrentaria tamanha reação
contrária que inviabilizaria a estabilidade do poder de classe e das próprias
explorações e opressões arraigadas. Mas no vasto campo possível entre os
governos de Papas Bórgias e de Savonarolas está a múltipla dosagem da corrupção
no capitalismo.
Em termos de limitação, seria possível vislumbrar,
no grande capital determinante do processo de acumulação de uma sociedade, o
teto do combate às ilegalidades e à corrupção. Mesmo assim, há variantes de
sensibilidade social do tempo e dos agentes jurídicos em específico que podem
fazer com que o combate ultrapasse as determinações arraigadas do poder
econômico para se materializar, ocasional e parcialmente, no direito. Além
disso, o teto do combate à corrupção pode ser ultrapassado por hipóteses de
incitação ensejadas por razões concorrenciais – por exemplo, mesmo grandes
capitalistas brasileiros podem ser submetidos ao direito e penalizados por
corrupção e isto se aproveita a capitalistas estrangeiros, num processo
contraditório de atuação de forças múltiplas no seio da burguesia justamente
devido à sua natureza concorrencial – e, daí, suas correlatas estratégias
geopolíticas.
A quantidade variável de práticas de corrupção e as
distintas modulações de seu combate no solo do capitalismo não negam o papel
central de tais práticas na própria reprodução do sistema, perpassando
empresas, governos, agentes privados e públicos. Dentro desse quadro, a
reiteração da corrupção estabiliza formas médias de interação e vínculo social. No caso brasileiro, o Estado se materializa e
orienta sua dinâmica permeado diretamente por acordos entre empresas e agentes
públicos. Não é o Estado a única fonte de corrupção, dado que esse modelo é
social, desde pequenas corrupções quotidianas a acordos de compras nos escalões
gerenciais das empresas privadas. Mas, de modo geral, o alvo da crítica à
corrupção costuma circunscrever-se ao Estado e, com isso, considerando razoável
uma ordem privada de pequenos favores. E, mesmo em se tratando da questão da
corrupção no seio do Estado, há uma preponderância de crítica e perseguição aos
governantes e agentes públicos, menos presente aos corruptores, via de regra
grandes empresas. Na sociabilidade capitalista, os vínculos sociais corruptos
quotidianos – que a todos perpassam – não são pelas pessoas assim considerados;
a corrupção empresarial, dado exatamente seu poder econômico central, não é
denunciada nem muitas vezes compreendida como tal; corrupção, daí,
circunscreve-se ao Estado e seus agentes. Ela é tida como tal privilegiadamente
– ou apenas – no campo da política.
A reiteração do governo e da administração do
Estado pelas classes e grupos tradicionalmente dominantes faz com que suas
práticas recebam chancelas institucionais de legalidade, reservando-se o
controle, a denúncia e a penalização de crimes a instrumentos eminentemente
políticos. Quase sempre, a incidência jurídica contra a corrupção é em desfavor
apenas de governantes frágeis ou grupos opositores novidadeiros ou de menor
inserção nas instituições estatais e sociais. Nos casos brasileiro e
latino-americano, o combate à corrupção é historicamente um mote que serve de
arma a classes e grupos tradicionais, a serviço da restauração de velhas
dominações políticas. Assim se fez o combate a Getúlio Vargas pela direita de
seu tempo, encabeçada pela UDN. O mesmo se dá contra o PT, em campanhas dos
partidos à direita. Nesses dois momentos, a imprensa teve papel fundamental na
construção de uma sensibilidade que se levante contra os governos combatidos. O
grau de seletividade dessa moralidade é espantoso – no passado udenista e na
atualidade dos variados partidos de direita que combatem a corrupção grassam as
mais variadas experiências do mesmo tipo, quiçá em grau até maior. Alta dose de
cinismo preside as campanhas éticas no plano da política.[4] Ética é arma de
disputa.
O caso das práticas de corrupção nos governos
brasileiros do PT revela, inclusive, a capitulação final da esquerda brasileira
tanto ao modelo de política arraigado, de domínio do capital em conluio com o favorecimento
dos detentores de cargos públicos, quanto ao horizonte da legalidade e da
eticidade correspondente que ajudou a gestar e que não foi capaz de superar.
Dentre outros aspectos, a crítica à ditadura militar brasileira se fez também
com a denúncia de sua corrupção e do uso do Estado, ao tempo, para negociatas
com interesses privados, de que as construtoras são o caso notório. O PT, em
sua alvorada na década de 1980, encampou o discurso da ética pública nos termos
de uma legalidade a ser plenamente cumprida. Os governos civis brasileiros
posteriores – José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique
Cardoso – baseados no mesmo modelo ditatorial anterior, de corrupção por
simbiose com grandes empresas, acrescidos de um jogo constante de costura de
acordos políticos nas casas legislativas –, foram simbolizados, ao tempo, pela
esquerda brasileira, como falência de um republicanismo legalista idealizado.
Quando o PT ganha o poder federal, se insere
exatamente no mesmo quadro de governabilidade por práticas políticas de ganhos
corruptivos ao grande capital e de construção de apoio político por
favorecimentos estatais, nomeação a cargos públicos, porcentagens de contratos
em licitações etc. As práticas de governo revelam um fio condutor único que vai
da ditadura militar ao governo do PT, estabelecendo-se, do mesmo modo, nos
demais níveis de governo da federação – Estados e municípios. A corrupção por
pressão de grandes empresas e como estratégia de favorecimento econômico
imediato de políticos é o modelo específico de armação política do Brasil há
décadas, podendo, se não se quiser remontar a uma longínqua sequência,
estabelecer a ditadura militar brasileira como marco de sua nova estruturação
junto às empresas privadas e o governo Sarney como padronizador da dependência
corruptiva entre os poderes Executivo e Legislativo. [5]
A tomada de poder no plano federal pelo PT se fez
com a estratégia de composição política para a obtenção de maioria legislativa.
Dos pequenos e médios partidos conservadores que de início adentraram à base
aliada até chegar, posteriormente, ao PMDB, a política dos governos petistas em
nada diferiu dos hábitos arraigados da dinâmica política brasileira.[6] No
entanto, sua condição novidadeira em face do manejo das instituições jurídicas
e policiais e seu proclamado respeito ao republicanismo dessas mesmas
instituições tornaram tais governos reféns de uma reação jurídica respaldada e
consequente, mas que contra os demais não se deu. A luz da sala da corrupção
acendeu-se principalmente na hora em que o PT a ela adentrou. Somando-se a esse
quadro a natureza conciliadora dos governos petistas, a ausência de disputa
ideológica e a inação em face do controle da opinião pública, avulta a
desfiguração do balanço político daí resultante, na medida em que a sociedade
se levantou com ódio contra a comprovada corrupção petista, mas não consegue
estender seu mesmo ódio aos partidos mais à direita.
A corrupção é a prática recorrente e estrutural do
modelo capitalismo brasileiro, mas seu combate se aproveita em favor de frações
do grande capital nacional e estrangeiro e em benefício dos agentes políticos
tradicionalmente poderosos, mais conservadores e à direita. O discurso
jurídico, o moralismo e o republicanismo, como ideologias de direita, têm, ao
fim e ao cabo, apenas o proveito político que é de sua natureza.
Aos governos petistas, a corrupção não é seu
problema central mas, sim, derivado de sua materialidade político-econômica.
Justamente porque são governos de larga composição com o capital – ainda que
com algum direcionamento de inclusão consumerista distinto da mera evolução
inercial de sua dinâmica tradicional –, são reféns das próprias práticas do
capital. Não podem enfrentá-lo em momentos de crise, dado que não se armaram
discursiva e efetivamente para uma posição de combate nem tampouco forjaram uma
disputa ideológica que gerasse mobilização progressista de massas. Como a
reprodução capitalista é necessariamente de alguma sorte de corrupção na sua
acepção jurídica, daí, exatamente porque se forjaram simbióticos ao capital – e
isso nos seus termos econômicos, políticos e jurídicos já dados –, sem criar
forças sociais de crítica e combate, os governos petistas pagam por si os
custos das práticas gerais da contraditória e inexorável legalidade corruptiva
que move, nos espaços da forma estatal, esse mesmo capital.
Alysson Leandro Mascaro jurista e filósofo do direito, é professor da tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (o Largo São Francisco) e também da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, é autor, dentre outros, de Estado e forma política (Boitempo, 2013). O texto acima faz parte de artigo que será publicado na íntegra na edição 25 da revista Margem Esquerda (Boitempo), a ser lançada em novembro.
[1] Cf. GENRO, Luciana; ROBAINA, Roberto. A falência do PT e a atualidade da luta socialista. Porto Alegre, L&PM, 2006.
[2] Cf. SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo, Ateliê Editorial, 2015. POMAR, Walter. A metamorfose. São Paulo, Página 13, 2014.
[3] Cf. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo, Boitempo, 2013.
[4] Cf. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo, Boitempo, 2008.
[5] Cf. CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais. As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói, Ed. da UFF, 2014. BORTONI, Larissa; MOURA, Ronaldo de. O mapa da corrupção no governo FHC. São Paulo, Perseu Abramo, 2002.
[6] Cf. NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento. Da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.
Créditos da foto: Lula Marques / Agência PT
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12