Publicado no Unisinos // http://www.diariodocentrodomundo.com.br/
Tudo o que é sadio pode ficar doente. Também as
religiões e as igrejas. Hoje particularmente assistimos a doença do
fundamentalismo contaminando setores importantes de quase todas as religiões e
igrejas, inclusive da Igreja Católica. Há, às vezes, verdadeira guerra
religiosa. Basta acompanhar alguns programas religiosos de televisão
especialmente, de cunho neopentecostal, mas não só também de alguns setores
conservadores da Igreja Católica para ouvir a condenação de pessoas ou de
grupos, de certas correntes teológicas ou a satanização das religiões
afro-brasileiras.
A expressão maior do fundamentalismo de cunho
guerreiro e exterminador é aquele representado pelo Estado Islâmico que faz da
violência e do assassinado dos diferentes, expressão de sua identidade.
Mas há um outro vício religioso, muito presente nos
meios de comunicação de massa especialmente na televisão e no rádico: o uso da
religião para arrebanhar muita gente, pregar o evangelho da prosperidade
material, arrancar dinheiro dos frequeses e enriquecer seus pastores e
auto-proclamados bispos. Temos a ver com religiões de mercado que obedecem à
lógica do mercado que é a concorrência e o arrebanhamento do número maior
possível de pessoas com a mais eficaz acumulação de dinheiro líquido possível.
Se bem repararmos, para a maioria destas igrejas
mediáticas, o Novo Testamento raramente é referido. O que vigora mesmo é o
Antigo Testamento. Entende-se o porquê. O Antigo Testamento, exceto os profetas
e de outros textos, enfatiza especialmente o bem estar material como expressão
do agrado divino. A riqueza ganha centralidade. O Novo Testamento exalta os
pobres, prega a misericórdia, o perdão, o amor ao inimigo e a irrestrita
solidariedade para com os pobres e caídos na estrada. Onde que se ouve, até nos
programas católicos, as palavras do Mestre: “Felizes vocês, pobres, porque de
vocês é o Reino de Deus”?
Fala-se demais de Jesus e de Deus, como se fossem
realidade disponíveis no mercado. Tais realidades sagradas, por sua natureza,
exigem reverência e devoção, o silêncio respeitoso e a unção devota. O pecado
que mais ocorre é contra o segundo mandamento:”não usar o santo nome de Deus em
vão”. Esse nome está colado nos vidros dos carros e na própria carteira de
dinheiro, como se Deus não estivesse em todos os lugares. É Jesus para cá e
Jesus para lá numa banalização desacralizadora irritante.
O que mais dói e verdadeiramente escandaliza é usar
o nome de Deus e de Jesus para fins estritamente comerciais. Pior, para
encobrir falcatruas, roubo de dinheiro público e de lavagem de dinheiro. Há
quem possui um empresa cujo título é “Jesus”. Em nome de “Jesus” se amealharam
milhões em propinas, escondidas em bancos estrangeiros e outras corrupções
envolvendo bens públicos. E isso é feito no maior descaramento.
Se Jesus estivesse ainda em nosso meio,
seguramente, faria o que fez com os mercadores do templo: tomou o chicote e os
pôs a correr além de derrubar suas bancas de dinheiro.
Por estes desvios de uma realidade sagrada,
perdemos a herança humanizadora das Escrituras judeo-cristãs e especialmente o
caráter libertador e humano da mensagem e da prática de Jesus. A religião pode
fazer o bem melhor mas também pode fazer o mal pior.
Sabemos que a intenção originária de Jesus não era
criar uma nova religião. Havia muitas no tempo. Nem pensava reformar o judaismo
vigente. Ele quis nos ensinar a viver, orientados pelos valores presentes em
seu sonho maior, o do Reino de Deus, feito de amor incondicional, misericórdia,
perdão e entrega confiante a um Deus, chamado de “Paizinho” (Abba em hebraico)
com características de mãe de infinita bondade. Ele colocou em marcha a
gestação do homem novo e da mulher nova, eterna busca da humanidade.
Como o livro dos Atos dos Apóstolos o mostra, o
Cristianismo inicialmente era mais movimento que instituição. Chamava-se o
“caminho de Jesus”, realidade aberta aos valores fundamentais que pregou e
viveu. Mas na medida em que o movimento foi crescendo, fatalmente, se
transformou numa instituição, com regras, ritos e doutrinas. E aí o poder
sagrado (sacra potestas) se constituíu em eixo organizador de toda a
instituição, agora chamada Igreja. O caráter de movimento foi absorvido por
ela. Da história aprendemos que lá onde prevalece o poder, desaparece o amor e
se esvai a misericórdia. Foi o que infelizmente aconteceu. Hobbes nos alertou
que o poder só se assegura buscando mais e mais poder. E assim surgiram igrejas
poderosas em instituições, monumentos, riquezas materiais e até bancos. E com o
poder a possibilidade da corrupção.
Estamos assistindo a uma novidade que cabe saudar:
o Papa Francisco nos está resgatando o Cristianismo mais como movimento do que
como instituição, mais como encontro entre as pessoas e com o Cristo vivo e a
misericórdia ilimitada que a férrea disciplina e doutrina ortodoxa. Ele colocou
como Jesus, a pessoa no centro, não o poder, nem o dogma, nem o enquadramento
moral. Com isso permitiu que todos, mesmo não se incorporando à instituição,
podem se sentir no caminho de Jesus na medida em que optam pelo amor e pela
justiça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12