Evitar a gravidez produto de uma violência como o
estupro e disponibilizar todos os medicamentos anti-HIV é o mínimo que o Estado
tem que garantir.
Marina Gazarolli* // www.cartamaior.com.br
Na noite do dia 30 de outubro milhares de mulheres
se reuniram na cidade São Paulo para protestar contra o PL 5069/13 e contra o
deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). Autor do projeto de lei, aprovado na CCJ
(Comissão de Constituição e Justiça) no último dia 21, o presidente da Câmara
foi o principal alvo das palavras de ordem que ecoaram pela Av. Paulista e pela
Av. Brig. Luís Antônio: “fora Cunha”, “Cunha é ditador” e “Cunha, seu opressor,
esse PL defende estuprador”, foram alguns dos gritos entoados ao som de
baterias improvisadas.
A manifestação, que paralisou a Paulista e
concentrou cerca de 5 mil mulheres segundo informações da Polícia Militar do
Estado de SP (50 mil segundo as organizadoras), foi convocada pelos mais
diversos coletivos, partidos e organizações e divulgada online, via Facebook.
Manifestações semelhantes estão agendadas em todo o Brasil e hoje, dia 31,
haverá nova manifestação, com concentração às 17 horas no vão livre do MASP, em
São Paulo.
Atualmente, no Brasil, o aborto legal é assegurado
por lei às vítimas de estupro (art. 128, inc. II), às mulheres cuja gravidez
representa risco de morte (art. 128, inc. I) e nos casos de gravidez de feto
anecéfalo (ADPF 54, STF). Isso significa dizer que, nestes casos, o atendimento
das mulheres deve ser garantido pela rede de saúde pública.
Às vítimas de estupro, por exemplo, quando
encaminhadas ao posto de saúde, são administrados gratuitamente coquetéis
antivirais e contraceptivo de emergência, conforme dispõe a Lei 12.845/13, que
trata sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de
violência sexual.
O projeto de lei, que altera o art. 127 do Código
Penal, dificultará o acesso das vítimas de estupro ao atendimento básico de
saúde. A proposta criminaliza o “anúncio de meio abortivo” e o cuidado médico
às vítimas, com prisão de 5 até 10 anos para agentes públicos de saúde. A
orientação ou até mesmo o simples apoio prestado às vítimas – “instruir ou
orientar (…) prestar-lhe qualquer auxilio”, diz o PL - também seriam tratados
como crime com detenção de 4 a 8 anos.
É sempre bom lembrar que a CCJ é composta por 66
deputados titulares, dentre os quais apenas 2% ou 3% são mulheres. Na Câmara,
apenas 51 das 518 cadeiras são ocupadas por deputadas, o que representa cerca
de 10%. Ou seja, são homens legislando sobre os direitos e sobre os corpos das
mulheres. Homens que não enfrentam a realidade de abusos, assédio e violência
sofrida pelas mulheres e tão bem ilustrada com os milhares de relatos que
tomaram as redes sociais com a hashtag #primeiroassédio, campanha lançada pelo
coletivo ThinkOlga.
O texto ainda prevê o aumento da pena em um terço
no caso de vítimas crianças ou adolescentes. O atendimento das crianças e
adolescentes, maiores vítimas de violência sexual e também as mais vulneráveis
no acesso aos seus direitos, seria, mais uma vez, o mais prejudicado.
A proposta vai na contramão da proteção integral à
saúde e contra os direitos humanos das mulheres. Segundo relatório do IPEA
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em relação ao total das notificações
ocorridas em 2011, mais da metade tinha menos de 13 anos de idade e mais de 70%
dos estupros vitimizaram crianc%u027as e adolescentes. Ainda, 51% das vítimas
eram de cor preta e 15% dos estupros registrados no Sinan (Sistema de
Informac%u027a%u003o de Agravos de Notificac%u027a%u003o) foram cometidos por
dois ou mais agressores.
Fernanda de Moraes, do Fórum Paulista de Travestis
e Transexuais, manifestou seu apoio e afirmou: “Queremos ser reconhecidas
enquanto mulheres, enquanto cidadãs brasileiras. Mesmos que nós não possamos
parir, somos mulheres e viemos endossar essa luta, que também é nossa, porque
passamos pelo mesmo preconceito, que é o machismo e o fundamentalismo religioso
que retira os direitos de todas nós enquanto gênero feminino”.
Yasmin Nóbrega, da Liga Brasileira de Lésbicas,
afirmou que a LBL “tem um compromisso com a luta feminista” e que “as causas
que vão contra os nossos direitos não são as nossas causas. Estamos aqui hoje
pela saída do Cunha e de toda a bancada ruralista, moralista e fundamentalista
do Congresso, pelos nossos corpos e pelas nossas vidas!”.
Sônia Maria Coelho Gomes, da Marcha Mundial de
Mulheres, declarou: “o projeto é misógino, perverso, impõe um retrocesso enorme
a todas as mulheres, por isso estamos na rua, pra falar não só com as mulheres
dos movimentos, mas com a população, explicar o que este é o projeto, realizar
debates, ações de rua, para que a população entenda que se trata de um
retrocesso. A maioria dos estupros acontecem com meninas de até 16 anos e este
projeto impede o acesso ao atendimento de saúde. Toda mulher, quando sofre
violência sexual precisa ser acolhida, ser cuidada tanto física quanto
psicologicamente e este projeto impede este atendimento de saúde, impede que a
pessoa tenha acesso à orientação e ele vai impedir que a pessoa tenha acesso ao
aborto legal. Vivemos numa situação muito grave porque a maioria das mulheres
que sofrem estupro não denunciam, ou porque foram estupradas por pessoas
próximas da família ou da comunidade e não podem ou tem medo de denunciar, ou
não denunciam por causa do constrangimento que elas passam quando tem que
repetir a mesma história de violência mais de 10 vezes. Imagina se ela for
obrigada a fazer B.O. pra ser atendida?”.
A sub-notificação é um problema grave no
enfrentamento da violência sexual contra a mulher. Estima-se que no mínimo 527
mil pessoas são estupradas no Brasil e que, desses casos, apenas 10% chegam ao
conhecimento da polícia (IPEA) . Os entraves encontrados pelas vítimas de
violência que buscam notificar a polícia são infindáveis. A cada vez que tem
que relatar os fatos a um agente de polícia ou do Judiciário, a vítima é
obrigada a reviver um episódio traumático de violência. Como se não bastasse, a
culpabilização da vítima é comum. Perguntas como “você bebeu?” e “que roupa
você estava usando?” são frequentes e escancaram a cultura do estupro enraizada
também nas instituições públicas, aquelas que mais deveriam proteger as
mulheres. As delegacias especializadas de atendimento à mulher (DEAMs) não
funcionam à noite e aos finais de semana, horários em que mais ocorrem os
episódios de violência contra a mulher.
Essa mesma cultura do estupro, ou seja, o consenso
e a naturalização da violência contra a mulher, impõe sobre as vítimas as
consequências de uma maternidade indesejada, fruto de um trauma. Segundo o
Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), o aborto é a quinta maior causa
de mortalidade materna no Brasil, responsável por cerca de 10% dos casos e por
2.010 óbitos maternos de 1995 a 2010, mas estimativas extraoficiais apontam
números maiores.
O Estado brasileiro é laico (art. 5o, VI da CF) e
para formar sua opinião sobre o PL 5069 não importa se você é religioso ou
ateu, de direita ou de esquerda. É pela a saúde e pela vida das mulheres, das
crianças e das adolescentes vítimas de violência sexual todos os dias no
Brasil. Evitar a gravidez produto de uma violência como o estupro e
disponibilizar todos os medicamentos anti-HIV acessíveis é o mínimo que o
Estado tem que garantir à vítima. Sem necessidade de B.O., sem decisão
judicial, sem culpabilização da vítima. Ninguém escolhe ser estuprada. Nenhuma
mulher. Nunca.
* Marina Ganzarolli é advogada, co-fundadora do
Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, pesquisadora do Núcleo de
Direito e Democracia (NDD) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(CEBRAP), e foi Conselheira Municipal da Criança e do Adolescente da Cidade de
São Paulo.
Créditos da foto: Mídia Ninja
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