O
conjunto de transformações na regulamentação da atividade pesqueira e dos
benefícios e direitos sociais está ligado a uma concepção exclusivamente
setorial da pesca, ignorando os aspectos sociais, culturais, econômicos e
históricos
por
Natália Tavares de Azevedo // http://www.diplomatique.org.br/
Em
2014, o Brasil presenciou uma acirrada disputa eleitoral, que produziu uma
aparente polarização na sociedade entre aqueles que defendiam os avanços
sociais e econômicos forjados durante a aplicação do modelo neodesenvolvimentista
dos governos Lula e Dilma e os que apontavam em outra direção, demandando
reformas neoliberais em nome da manutenção do crescimento econômico e do
combate à inflação. A ilusão da polarização entre os projetos se desfez logo no
início do segundo governo Dilma. A nomeação de Joaquim Levy para o Ministério
da Fazenda e o anúncio do ajuste fiscal apontaram as escolhas feitas pelo
Palácio do Planalto, contrárias às promessas eleitorais. O que se observou foi
que nem o PT nem a presidenta se mostraram capazes de fazer frente a uma
correlação de forças desfavorável, também expressa na crise política que se
instalou no Legislativo federal.
Assim,
o governo instituiu um pacote de medidas neoliberais que incluem cortes
orçamentários em áreas essenciais como saúde, educação e previdência, além do
aumento da taxa básica de juros, a Selic, que drena recursos para o pagamento
dos serviços da dívida aos agentes credores, favorecendo o mercado financeiro e
se mostrando ineficiente para reequilibrar a economia brasileira ao inibir o
crédito e os investimentos. São medidas regressivas, que voltam os cortes aos
trabalhadores, especialmente às parcelas mais vulnerabilizadas. Nesse cenário,
os pescadores e pescadoras artesanais foram também atingidos. O governo, além de
lançar uma série de normativas que restringiram seus direitos, focando
especialmente o seguro-defeso, acabou por extinguir o Ministério da Pesca e
Aquicultura (MPA), ameaçando as conquistas de pescadores e pescadoras
artesanais.
Os
direitos sociais e o seguro-defeso
Os
pescadores artesanais, assim como os trabalhadores rurais, foram a última
categoria social a ser incluída na seguridade social, na década de 1960, mas de
forma desigual em relação aos trabalhadores urbanos. A equiparação só ocorreu
após a Constituição de 1988, na qual o Movimento de Pescadores teve importante
incidência. Dessa forma, os pescadores artesanais passaram a ser incluídos na
seguridade social como segurados especiais.
Já
o Seguro-Desemprego ao Pescador Artesanal, mais conhecido como seguro-defeso,
foi criado em 1991. Trata-se do pagamento de um salário mínimo ao pescador
artesanal no período em que a pesca de determinada espécie é proibida, o
defeso, que em geral coincide com o período de reprodução. Foi a partir de 2003
que ele se tornou uma política de maior envergadura, com um crescimento
exponencial no número de beneficiários, passando de 92 mil em 2002 para 855 mil
em 2012, com execução orçamentária de quase R$ 2 bilhões.
Entre
os motivos apontados para o incremento dos gastos, figuram o aumento das
espécies abrangidas por períodos de defeso, a elevação do valor real do salário
mínimo e o crescimento do número de beneficiários. Este se tornou alvo de
suspeitas de irregularidades relacionadas à veracidade dos registros. Porém, em
vez de tentar sanar os problemas relativos ao registro da pesca, combatendo as
fraudes decorrentes de relações clientelistas ligadas ao histórico das colônias
de pescadores, fomentadas pelo próprio governo em muitos casos, este optou por
atacar os direitos dos pescadores artesanais, especialmente os das pescadoras.
Alterações
nos direitos
A
primeira forma de reduzir os direitos sociais dos pescadores artesanais foi a
publicação da Medida Provisória (MP) n. 665, em 30 de dezembro de 2014,
posteriormente convertida na Lei n. 13.134, de junho de 2015, e ainda
referendada pelo Decreto n. 8424. Por meio destes, alteraram-se as regras de
acesso ao seguro-desemprego, de forma geral, e ao seguro-defeso, de forma
particular. Para fazer jus ao benefício, passou-se a exigir que pescadores
artesanais tenham trabalhado de forma ininterrupta na atividade pesqueira e não
tenham renda oriunda de outra fonte; além disso, são considerados habilitados
apenas aqueles que trabalharam na captura, isto é, o seguro não será extensível
às atividades de apoio e aos familiares.
Estabeleceu-se
também que os pescadores artesanais não podem receber simultaneamente ao
seguro-defeso benefícios como o Bolsa Família e outros de prestação continuada
ligados à assistência social e à previdência, além de instituir o INSS como o
órgão ao qual o pescador deve se dirigir para dar entrada no seguro, no lugar
do Ministério do Trabalho e Emprego, como era anteriormente. A duração máxima
de recebimento do seguro-defeso passou a ser de cinco meses, independentemente
de o tempo de duração do defeso ser mais extenso.
Soma-se
a estes o Decreto n. 8.425, de 1º de abril de 2015, que regulamenta os artigos
24 e 25 da Lei n. 11.959, de 2009, a Lei da Pesca brasileira, dispondo sobre os
critérios para inscrição no Registro Geral da Pesca e para a concessão de
autorização ou permissão para o exercício da atividade pesqueira, instrumentos
necessários para que pessoas físicas ou jurídicas e embarcações pratiquem a
pesca no Brasil.
Destaca-se
a definição de que pescadores artesanais profissionais, que exercem a atividade
pesqueira com fins comerciais, podem realizá-la de forma autonôma ou em regime
de economia familiar, podendo utilizar meios de produção próprios ou mediante
contratos de parceria com embarcações de arqueação bruta de até 20AB. Essa
definição implica um tamanho incompatível com a realidade das comunidades
pesqueiras do país. O Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
afirma que estas devem ser consultadas, fazendo um apontamento prévio de que as
embarcações utilizadas pela pesca artesanal têm tamanho de até 10AB, como se vê
na Carta de Repúdio ao Decreto emitida pelo MPP.1
O
grande retrocesso apresentado pelo Decreto n. 8.425, somado às regulamentações
citadas anteriormente, é a categorização de trabalhador de apoio à pesca
artesanal, definido como a pessoa física que, de forma autônoma ou em regime de
economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de
parceria, exerce trabalhos de confecção e reparos de artes e petrechos de
pesca, de reparos em embarcações de pesca de pequeno porte ou atua no
processamento do produto da pesca artesanal. Esse dispositivo atinge de forma
mais direta as mulheres pescadoras, que em geral se ocupam das atividades
entendidas como de apoio, além de não reconhecer o caráter de economia familiar
da atividade pesqueira, sobretudo a forma própria das comunidades pesqueiras de
se organizar social e culturalmente.
As
comunidades pesqueiras e as pescadoras
Esse
conjunto de transformações na regulamentação da atividade pesqueira e dos
benefícios e direitos sociais está ligado a uma concepção exclusivamente
setorial da pesca, ignorando os aspectos sociais, culturais, econômicos e
históricos.
No
Brasil há uma grande diversidade entre as comunidades pesqueiras, com origens
sociais diretamente ligadas aos processos históricos de composição de nosso
território. Inclui-se a influência indígena, negra, portuguesa e açoriana,
formando grupos culturais distintos, como os jangadeiros no Nordeste, os
caiçaras entre o Rio de Janeiro e o litoral norte do Paraná, os ribeirinhos no
Norte e as comunidades pesqueiras de descendência açoriana no Sul do país, para
citar apenas alguns exemplos.
Essa
trajetória histórica das comunidades pesqueiras lhes atribui um caráter que vai
muito além da prática “profissional” da pesca – ser pescador artesanal
refere-se acima de tudo a uma identidade cultural. A prática pesqueira está
envolvida na tessitura da vida cotidiana dessas populações, configurando-se
como modos de vida específicos, tradicionais, que se reproduzem entre
resistências, assimilações e transformações em conjunto com a sociedade. Essa
diferença é tão evidente que as comunidades pesqueiras têm sido reconhecidas
como tradicionais no âmbito da Política Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais, criada em 2007 e coordenada e colocada em prática pela Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais.
Essa
integralidade inclui, na perspectiva da reprodução social dessas populações, a
pluriatividade, a prática de outras atividades econômicas além da pesqueira, a
depender do contexto social. Dessa forma, exigir que o pescador artesanal tenha
como fonte de renda exclusiva a atividade pesqueira para que possa acessar o
seguro-defeso é uma forma de desconhecer a realidade socioeconômica dessas
comunidades, que recorrem a outras atividades seja por questão cultural, como
nas comunidades de agricultores-pescadores, seja por necessidade de
complementação da renda diante da crise dos recursos pesqueiros. Ressalte-se
que esta é em grande parte ocasionada pela falta de capacidade do próprio
Estado de promover uma gestão sustentável da pesca, ao privilegiar a
produtividade e os grupos industriais em detrimento da sustentabilidade
ambiental e social.
Nesse
contexto das comunidades pesqueiras, no qual a integralidade do trabalho e da
reprodução social se dá pelo caráter familiar e coletivo do trabalho, o lugar
da mulher tem sido durante muito tempo invisibilizado e desvalorizado. Ainda é
comum o entendimento de que ela “ajuda” o marido ao trabalhar na confecção dos
petrechos, na limpeza do pescado e até mesmo na atividade de captura.
É
com muita luta que as pescadoras têm conseguido afirmar sua importância e avançar
na conquista de seus direitos, para o que a Articulação Nacional das Pescadoras
(ANP) tem tido um fundamental protagonismo. Esse processo não é apenas de
afirmação de direitos, mas também de reforço de sua identidade de pescadora.
Assim,
as mulheres pescadoras, maioria entre aqueles que agora passaram a ser
considerados “trabalhadores de atividades de apoio”, são as mais atingidas pela
mudança simultânea na categorização dos trabalhadores e nas novas formas de
acesso ao seguro-defeso, apontando para um retrocesso de caráter machista e
subalternizador das mulheres, como denuncia a Carta das Pescadoras à Presidenta
Dilma,2 emitida pela ANP.
O
decreto, ao definir as pescadoras como trabalhadoras de apoio à pesca,
hierarquiza e atribui diferentes valores ao trabalho de homens e mulheres na
atividade pesqueira, ferindo o princípio de que ambos são iguais perante a lei.
Contribui para aumentar ainda mais a vulnerabilidade das mulheres pescadoras,
ameaçando sua autonomia em um contexto em que as situações de violência são
cotidianas, dentro e fora de casa.
A
extinção do Ministério da Pesca
No
dia 2 de outubro, depois de mais de um mês de articulações para acomodar as
tensões com o PMDB e as internas a seu próprio partido, a presidenta Dilma
anunciou a reforma ministerial, que extinguiu oito ministérios, entre eles o
MPA. Embora desde a transformação da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca
(Seap) em MPA, em 2009, este tenha ficado à mercê das negociações políticas,
utilizado como moeda de troca e passado por administrações que só fizeram
retroceder a gestão pesqueira, o impacto de sua extinção tem se mostrado
potencialmente negativo para a pesca artesanal.
Isso
porque as funções do MPA foram absorvidas pelo Ministério da Agricultura
(Mapa), da ministra Katia Abreu, representante dos interesses do agronegócio,
deixando poucas perspectivas de que venha a contemplar pescadores artesanais.
Mais ainda, a mentalidade produtivista ligada ao grande negócio, a ser aplicada
na pesca industrial e na aquicultura, tende a atingir a pesca artesanal, quando
se tem em conta a disputa por espaços e recursos territoriais. É pouco provável
que um ministério com esse perfil tenha possibilidade de atender adequadamente
às demandas da pesca artesanal.
A
primeira ação do Mapa em relação à pesca (provavelmente já arquitetada no
âmbito do MPA) foi a suspensão, por 120 dias, de diversos defesos, por meio da
Portaria Interministerial Mapa/MMA n. 192, de 5 de outubro de 2015. Foram
atingidos os defesos de diversas bacias hidrográficas, como os da Bacia
Amazônica, do Rio Parnaíba, da piracema das bacias do Maranhão e do Ceará, além
de ostras em São Paulo e Paraná, robalo no Espírito Santo e Bahia, entre
outros.
Essas
medidas atingem especialmente milhares de pescadores das águas continentais, e
trata-se sobretudo de uma estratégia para evitar o pagamento do seguro diante
das medidas de corte de despesas feitas pelo governo. Na portaria, afirma-se
que os pescadores serão recadastrados durante a suspensão e que os períodos de
defeso serão revistos. Percebe-se, contudo, que é um claro movimento para
deslegitimar o direito ao autorreconhecimento de sua identidade de pescadores
artesanais perante o Estado, reduzindo o número de pescadores registrados e,
assim, os gastos.
Articulação
para tentar frear o retrocesso
Nesse
cenário, o MPP e a ANP têm buscado pressionar o governo para tentar impedir
tais retrocessos, incidindo tanto de forma direta, pressionando os ministérios
envolvidos, quanto indireta, via Ministério Público Federal, por meio da 6ª Câmara
de Coordenação e Revisão (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais).
Esta tem apontado a importância da aplicação da Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho, que trata dos direitos dos povos tradicionais, da
qual o Brasil é signatário, e do reconhecimento das comunidades tradicionais
pesqueiras como sujeitos de direito no âmbito dessa convenção.
Mais
uma vez, os pescadores e pescadoras artesanais se manifestaram por meio de uma
Carta de Repúdio à Ida da Pesca Artesanal para o Mapa,3 reivindicando que ela
seja alocada no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e apontando que a
pasta pode lhes dar um tratamento diferenciado, por sua atribuição em relação
aos agricultores familiares e sua trajetória política. O MDA já possui uma série
de competências que abrangem a pesca artesanal, como a operação do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do Programa de
Aquisição de Alimentos, de assistência extensão rural, e seria o espaço
institucional adequado para o atendimento da categoria.
O
Estado brasileiro tem falhado em assegurar o direito das comunidades
pesqueiras, invisibilizando não apenas sua contribuição cultural para a
formação da sociedade, mas também sua importância para a segurança e soberania
alimentar pela produção de pescado de qualidade que abastece a mesa dos
brasileiros.
Natália Tavares de Azevedo
Natália Tavares de Azevedo é
pesquisadora, mestre em Sociologia e doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento
pela UFPR. Realiza estágio pós-doutoral no Centro de Estudos do Mar da UFPR,
com bolsa da Fundação Araucária/Capes. E-mail: natytav@yahoo.com.br.
Ilustração: Reuters/Bruno Kelly
1 Ver:
http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com.br/2015/06/governo-brasileiro-rasga-direito-de.html
2 Disponível em
http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com.br/2015/06/carta-das-pescadoras-para-presidenta.html
3 Ver em:
http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com.br/2015/10/carta-de-repudio-ida-da-pesca-artesnala.html
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