sábado, 19 de dezembro de 2015

A solução é alugar o Brasil?

Em artigo, o psicanalista Christian Dunker critica a nomeação de Valencius Wurch para o cargo de coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde. O médico dirigiu durante dez anos o maior manicômio privado da América Latina, fechado após denúncias de maus-tratos, e se tornou alvo de militantes da área, que exigem seu afastamento

Por Christian Dunker* // http://www.revistaforum.com.br/

Raul Seixas ficou conhecido pela sua mistura de ritmos, combinação de estilos e por sua maneira irreverente de pensar a política de sua época. Maluco Beleza, de 1977, e Metamorfose Ambulante, de 1973, exploravam a potência crítica da loucura em um momento no qual se trancafiavam os doentes em colônias de extermínio. Daniela Arbex mostrou como nos hospícios da cidade mineira de Barbacena, fundado em 1903, 60 mil pessoas morreram em função de maus tratos, abandono e tortura.


No final da tarde, a hora do eletrochoque, a cidade acostumou-se às quedas de luz. A ducha escocesa, uma antiga técnica “calmante”, lançava água com uma pressão capaz de quebrar ossos humanos, lavando dejetos, mutilando pessoas e submetendo os eventuais amotinados. Miséria e pobreza, abandono e sofrimento, misturavam-se com filhos indesejados, perseguidos políticos e até mesmo crianças conviviam em pátios abertos, nus, dormindo ao relento. Este era o quadro menos nobre da loucura brasileira até a reforma psiquiátrica dos anos 1990. Uma época na qual o diagnóstico era feito pelo número de dentes que restavam a um paciente, e que o verdadeiro trem dos loucos aportava trazendo errantes sem destino para estes depósitos de quase-gente.

Neste tempo, a única força capaz de sinalizar a tragédia em curso era a denúncia ocasional, feita por meios de comunicação, apoiada por especialistas estrangeiros em eventual visita ao Brasil, como Basaglia, Foucault ou Laing. Ocorre que a indústria da saúde mental era uma extensão e um sintoma dos coronéis e grandes latifundiários que enviavam seus filhos para estudar Psiquiatria na cidade grande e depois lucravam com o suprimento garantido de pacientes, subsidiados pelo Estado, vida afora, em suas fazendas de apresamento de loucos. Elas representavam um lucrativo negócio de família no qual a piora da qualidade jamais seria questionada por ninguém. Os favorecimentos do Estado enriqueciam os proprietários de hospitais, funcionavam como força de regulação da política local e consagravam a corrupção e o desvio de recursos como regra instituída.

Franco da Rocha, Juliano Moreira e Pinel não são apenas nomes de hospitais, são antecedentes embrionários do que hoje se chama Petrobras, Odebrecht ou BTG Pactual. A pretexto de que as doenças mentais são doenças crônicas, cronificavam-se os pacientes com enclausuramento indefinido. Mesmo depois da reforma psiquiátrica, os ganhos com venda de medicações “crônicas” e contratos suspeitos de fornecimento “vitalício” mantiveram a saúde mental como um bom negócio para a psiquiatria farmacêutica e uma extorsão premeditada dos que praticavam a clínica e os cuidados pela palavra, que tem seus horários de atendimento cada vez mais reduzidos.

O Lava a Jato, escocês ou suíço, aparecia neste outro tema de Raul Seixas: a solução é alugar o Brasil. A ironia continua presente em nosso cenário atual. Em tempos de crise retorna a ideia de alugar a saúde, alugar a educação ou alugar os “negócios potenciais” que ainda restam. Sob o refrão do “não vamos pagar nada”, da redução de custos e da “governabilidade” negociam-se os aluguéis. Quando a última reforma ministerial colocou o nome de Marcelo Castro à frente da Saúde, muitos se preocuparam com sua inexperiência. Contudo, quando ele designou Valencius Wurch Duarte Filho como secretário coordenador nacional de Saúde Mental, fica claro que em meio ao faroeste ganham os vendedores de armas e caixões. E a saúde mental está aberta a uma nova rodada de locatários.

Mas como chegamos até aqui?

Em 1989, fecha-se a Casa Anchieta, uma destas prisões psiquiátricas, sediada em Santos. Mas levaria quase quinze anos para a Casa Doutor Eiras, localizada em Paracambi, a 75 quilômetros do Rio de Janeiro, tivesse o mesmo destino. Usada como reduto de tortura, ela representava a atualização das velhas fazendas psiquiátricas, agora com subsede em Botafogo, chegando a contar com 2.500 internos. O “negócio” da pobreza e da loucura contava agora com protetores profissionais. E por dez anos Valencius Wurch dirigiu a Casa Doutor Eiras.

Mesmo assim, a reforma psiquiátrica foi em frente, junto com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e formulação de inúmeros marcos jurídicos que delinearam o que se pode chamar uma política pública bem sucedida. Em 2002, o Brasil possuía 424 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), nosso principal dispositivo para tratamento de transtornos mentais. Em 2010, já eram 1620. Há Caps de vários tipos, alguns destinados a usuários de álcool e drogas, outros atendem crianças. Há os que funcionam em regime de 24 horas, outros que oferecem acolhimento para momentos de crise.

Apesar deste grande avanço, a cobertura em saúde mental passou de 21% para apenas 66%, com destaque para as regiões Sul e Nordeste . Isso significa que o nível de desassistência é ainda elevado, mas que ao mesmo tempo índice de uma constância rara de se obter na aplicação de fundos públicos. No mesmo período, cerca de 18 mil leitos psiquiátricos de baixa qualidade assistencial foram fechados como efeito de uma reversão na política de investimentos. O gasto com serviços extra-hospitalares cresceu 269%, enquanto o investimento hospitalar decresceu 40%.

O programa De Volta para Casa incentiva pacientes crônicos, errantes ou deslocados socialmente a retornar para o convívio com suas famílias. Contudo, em 2010 apenas 1/3 do número estimado de pessoas internadas com longa permanência hospitalar no Brasil era alcançado por este programa. Neste sentido, o Brasil segue uma recomendação e uma tendência global que fizeram o número de hospitais psiquiátricos decrescer 5% e o número de leitos cair 30% no mundo . Esta política decorre da lei Paulo Delgado que dá impulso à reforma psiquiátrica no Brasil desde 1989. E Valencius Wurch declarou-se contrário à lei Paulo Delgado.

Ou seja, temos na saúde mental uma herança formada pela reforma psiquiátrica brasileira dos anos 1990, que corresponde a boas práticas que conseguiram alcançar um nível de continuidade cronicamente ausente na maior parte das iniciativas públicas. O mote principal destas práticas é substituir o modelo asilar, baseado em grandes hospitais, com internações de longo prazo e predomínio da estratégica psiquiátrica de tratamento, por um modelo que enfatiza dispositivos de atenção sustentados por equipes interdiscipinares, diversidade de estratégias clínicas com grande ênfase na reinserção social. Os CAPS são um símbolo deste novo momento da saúde mental brasileira.

Neste ponto, Valencius Wursch é apoiado irresponsavelmente (ou interesseiramente) pela Associação Brasileira de Psiquiatria com argumentos que são os piores possíveis: crítica da redução de leitos, desqualificação de profissionais não médicos, acusação de que tal modelo não consegue conter a epidemia de crack e dependência química (como se mais leitos e mais médicos bastassem para enfrentar tal problema), insinuação de que abordagens não médicas não são científicas.

A defesa é vexatória e faz pensar na degradação da lógica das “escolhas políticas” para cargos públicos. Repentinamente o termo “político” tornou-se sinônimo de arbitrário, injustificado e coercitivo. Escolhas políticas requerem, ainda assim, critérios políticos, ou seja, critérios que habilitem e façam reconhecer alguém em relação aos fins para os quais este é chamado, a autoridade que lhe compete, seja ela adquirida por experiência ou competência. Aqui temos um caso de vergonha alheia diante do curriculum lattes de nosso candidato a coordenador.

Valencius Wursch não fez mestrado ou doutorado, não publicou livros ou artigos científicos, não é reconhecido como pesquisador, nem mesmo por sua área de origem, não tem experiência docente de excelência, não teve participação alguma nas decisões que criaram nossa política de saúde mental, nem participou de seus marcos históricos. Defender que sua escolha é “técnica” ou “científica” só fica ainda pior porque seu antecessor dispunha de amplo reconhecimento entre seus pares e atendia aos critérios elementares para que alguém exerça um cargo público.

Contudo, a comparação torna-se ridícula quando se observa que no mesmo ano que um iniciava a reforma pela melhoria da saúde mental, na Casa Achieta, o outro dirigia a Clínica do Doutor Eiras, signo de nosso passado mórbido nesta matéria. Entre a barganha e a chantagem, indicações deste tipo identificam a prerrogativa da lei com o exercício da violência simbólica. E depois se irá estranhar que revoltosos respondam com violência às leis erraticamente exercidas.

O caso faz série com o projeto de reorganização das escolas em São Paulo, mas ele revela uma lógica ainda mais antiga que a dos condomínios. Pois mesmo que levemos em conta a retórica neoliberal da redução de custos, sabe-se que o investimento em leitos é pior do que em uma abordagem integral de atenção psíquica e social. Uma pesquisa inglesa mostrou que o investimento em serviços substitutivos (hospitais dia), atendimento individual (psiquiátrico e psicológico) e serviços de suporte comunitário (assistência social, terapia ocupacional) representa para o Estado uma economia média de R$ 32.767, por paciente, em apenas 18 meses .

Apesar do alto custo da saúde mental , em todo o mundo, sabe-se que investimento em prevenção e melhoria de atendimento cobrem amplamente o prejuízo representado pelos encargos sociais decorrentes da desatenção aos transtornos mentais (absenteísmo e desemprego, criminalidade e prejuízo educacional).

Então, o que temos é o retorno do senhor de engenho psiquiátrico aproveitando-se da confusão geral para esgueirar-se para dentro do “Aluga-se Geral” que tomou conta do país. Este gesto ostensivo de corrupção dentro da lei, rapidamente reúne contra si 26 mil assinaturas e 656 associações que repudiam tal nomeação . Dilma Roussef e Jacques Wagner, lembrem-se do velho Raul, vocês tem dois pés para cruzar a ponte, ainda está na hora de tirar este cara daí, antes que ele providencie a internação compulsória de todos nós.

* Christian Dunker é psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e colaborador da Fórum Semanal


Foto de capa: Reprodução/YouTube

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