Em artigo, o psicanalista
Christian Dunker critica a nomeação de Valencius Wurch para o cargo de
coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde. O médico dirigiu durante
dez anos o maior manicômio privado da América Latina, fechado após denúncias de
maus-tratos, e se tornou alvo de militantes da área, que exigem seu afastamento
Por Christian Dunker* // http://www.revistaforum.com.br/
Raul Seixas ficou conhecido pela
sua mistura de ritmos, combinação de estilos e por sua maneira irreverente de
pensar a política de sua época. Maluco Beleza, de 1977, e Metamorfose
Ambulante, de 1973, exploravam a potência crítica da loucura em um momento no
qual se trancafiavam os doentes em colônias de extermínio. Daniela Arbex
mostrou como nos hospícios da cidade mineira de Barbacena, fundado em 1903, 60
mil pessoas morreram em função de maus tratos, abandono e tortura.
No final da tarde, a hora do
eletrochoque, a cidade acostumou-se às quedas de luz. A ducha escocesa, uma
antiga técnica “calmante”, lançava água com uma pressão capaz de quebrar ossos
humanos, lavando dejetos, mutilando pessoas e submetendo os eventuais
amotinados. Miséria e pobreza, abandono e sofrimento, misturavam-se com filhos
indesejados, perseguidos políticos e até mesmo crianças conviviam em pátios
abertos, nus, dormindo ao relento. Este era o quadro menos nobre da loucura
brasileira até a reforma psiquiátrica dos anos 1990. Uma época na qual o
diagnóstico era feito pelo número de dentes que restavam a um paciente, e que o
verdadeiro trem dos loucos aportava trazendo errantes sem destino para estes
depósitos de quase-gente.
Neste tempo, a única força capaz
de sinalizar a tragédia em curso era a denúncia ocasional, feita por meios de
comunicação, apoiada por especialistas estrangeiros em eventual visita ao
Brasil, como Basaglia, Foucault ou Laing. Ocorre que a indústria da saúde
mental era uma extensão e um sintoma dos coronéis e grandes latifundiários que
enviavam seus filhos para estudar Psiquiatria na cidade grande e depois
lucravam com o suprimento garantido de pacientes, subsidiados pelo Estado, vida
afora, em suas fazendas de apresamento de loucos. Elas representavam um
lucrativo negócio de família no qual a piora da qualidade jamais seria
questionada por ninguém. Os favorecimentos do Estado enriqueciam os
proprietários de hospitais, funcionavam como força de regulação da política
local e consagravam a corrupção e o desvio de recursos como regra instituída.
Franco da Rocha, Juliano Moreira
e Pinel não são apenas nomes de hospitais, são antecedentes embrionários do que
hoje se chama Petrobras, Odebrecht ou BTG Pactual. A pretexto de que as doenças
mentais são doenças crônicas, cronificavam-se os pacientes com enclausuramento
indefinido. Mesmo depois da reforma psiquiátrica, os ganhos com venda de
medicações “crônicas” e contratos suspeitos de fornecimento “vitalício” mantiveram
a saúde mental como um bom negócio para a psiquiatria farmacêutica e uma
extorsão premeditada dos que praticavam a clínica e os cuidados pela palavra,
que tem seus horários de atendimento cada vez mais reduzidos.
O Lava a Jato, escocês ou suíço,
aparecia neste outro tema de Raul Seixas: a solução é alugar o Brasil. A ironia
continua presente em nosso cenário atual. Em tempos de crise retorna a ideia de
alugar a saúde, alugar a educação ou alugar os “negócios potenciais” que ainda
restam. Sob o refrão do “não vamos pagar nada”, da redução de custos e da
“governabilidade” negociam-se os aluguéis. Quando a última reforma ministerial
colocou o nome de Marcelo Castro à frente da Saúde, muitos se preocuparam com
sua inexperiência. Contudo, quando ele designou Valencius Wurch Duarte Filho
como secretário coordenador nacional de Saúde Mental, fica claro que em meio ao
faroeste ganham os vendedores de armas e caixões. E a saúde mental está aberta
a uma nova rodada de locatários.
Mas como chegamos até aqui?
Em 1989, fecha-se a Casa
Anchieta, uma destas prisões psiquiátricas, sediada em Santos. Mas levaria
quase quinze anos para a Casa Doutor Eiras, localizada em Paracambi, a 75
quilômetros do Rio de Janeiro, tivesse o mesmo destino. Usada como reduto de
tortura, ela representava a atualização das velhas fazendas psiquiátricas,
agora com subsede em Botafogo, chegando a contar com 2.500 internos. O
“negócio” da pobreza e da loucura contava agora com protetores profissionais. E
por dez anos Valencius Wurch dirigiu a Casa Doutor Eiras.
Mesmo assim, a reforma
psiquiátrica foi em frente, junto com a implantação do Sistema Único de Saúde
(SUS) e formulação de inúmeros marcos jurídicos que delinearam o que se pode
chamar uma política pública bem sucedida. Em 2002, o Brasil possuía 424 Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS), nosso principal dispositivo para tratamento de
transtornos mentais. Em 2010, já eram 1620. Há Caps de vários tipos, alguns
destinados a usuários de álcool e drogas, outros atendem crianças. Há os que funcionam
em regime de 24 horas, outros que oferecem acolhimento para momentos de crise.
Apesar deste grande avanço, a
cobertura em saúde mental passou de 21% para apenas 66%, com destaque para as
regiões Sul e Nordeste . Isso significa que o nível de desassistência é ainda
elevado, mas que ao mesmo tempo índice de uma constância rara de se obter na
aplicação de fundos públicos. No mesmo período, cerca de 18 mil leitos
psiquiátricos de baixa qualidade assistencial foram fechados como efeito de uma
reversão na política de investimentos. O gasto com serviços extra-hospitalares
cresceu 269%, enquanto o investimento hospitalar decresceu 40%.
O programa De Volta para Casa
incentiva pacientes crônicos, errantes ou deslocados socialmente a retornar
para o convívio com suas famílias. Contudo, em 2010 apenas 1/3 do número
estimado de pessoas internadas com longa permanência hospitalar no Brasil era
alcançado por este programa. Neste sentido, o Brasil segue uma recomendação e
uma tendência global que fizeram o número de hospitais psiquiátricos decrescer
5% e o número de leitos cair 30% no mundo . Esta política decorre da lei Paulo
Delgado que dá impulso à reforma psiquiátrica no Brasil desde 1989. E Valencius
Wurch declarou-se contrário à lei Paulo Delgado.
Ou seja, temos na saúde mental
uma herança formada pela reforma psiquiátrica brasileira dos anos 1990, que
corresponde a boas práticas que conseguiram alcançar um nível de continuidade
cronicamente ausente na maior parte das iniciativas públicas. O mote principal
destas práticas é substituir o modelo asilar, baseado em grandes hospitais, com
internações de longo prazo e predomínio da estratégica psiquiátrica de
tratamento, por um modelo que enfatiza dispositivos de atenção sustentados por
equipes interdiscipinares, diversidade de estratégias clínicas com grande
ênfase na reinserção social. Os CAPS são um símbolo deste novo momento da saúde
mental brasileira.
Neste ponto, Valencius Wursch é
apoiado irresponsavelmente (ou interesseiramente) pela Associação Brasileira de
Psiquiatria com argumentos que são os piores possíveis: crítica da redução de
leitos, desqualificação de profissionais não médicos, acusação de que tal
modelo não consegue conter a epidemia de crack e dependência química (como se
mais leitos e mais médicos bastassem para enfrentar tal problema), insinuação
de que abordagens não médicas não são científicas.
A defesa é vexatória e faz pensar
na degradação da lógica das “escolhas políticas” para cargos públicos.
Repentinamente o termo “político” tornou-se sinônimo de arbitrário,
injustificado e coercitivo. Escolhas políticas requerem, ainda assim, critérios
políticos, ou seja, critérios que habilitem e façam reconhecer alguém em
relação aos fins para os quais este é chamado, a autoridade que lhe compete, seja
ela adquirida por experiência ou competência. Aqui temos um caso de vergonha
alheia diante do curriculum lattes de nosso candidato a coordenador.
Valencius Wursch não fez mestrado
ou doutorado, não publicou livros ou artigos científicos, não é reconhecido
como pesquisador, nem mesmo por sua área de origem, não tem experiência docente
de excelência, não teve participação alguma nas decisões que criaram nossa
política de saúde mental, nem participou de seus marcos históricos. Defender
que sua escolha é “técnica” ou “científica” só fica ainda pior porque seu
antecessor dispunha de amplo reconhecimento entre seus pares e atendia aos
critérios elementares para que alguém exerça um cargo público.
Contudo, a comparação torna-se
ridícula quando se observa que no mesmo ano que um iniciava a reforma pela
melhoria da saúde mental, na Casa Achieta, o outro dirigia a Clínica do Doutor
Eiras, signo de nosso passado mórbido nesta matéria. Entre a barganha e a
chantagem, indicações deste tipo identificam a prerrogativa da lei com o
exercício da violência simbólica. E depois se irá estranhar que revoltosos
respondam com violência às leis erraticamente exercidas.
O caso faz série com o projeto de
reorganização das escolas em São Paulo, mas ele revela uma lógica ainda mais antiga
que a dos condomínios. Pois mesmo que levemos em conta a retórica neoliberal da
redução de custos, sabe-se que o investimento em leitos é pior do que em uma
abordagem integral de atenção psíquica e social. Uma pesquisa inglesa mostrou
que o investimento em serviços substitutivos (hospitais dia), atendimento
individual (psiquiátrico e psicológico) e serviços de suporte comunitário
(assistência social, terapia ocupacional) representa para o Estado uma economia
média de R$ 32.767, por paciente, em apenas 18 meses .
Apesar do alto custo da saúde
mental , em todo o mundo, sabe-se que investimento em prevenção e melhoria de
atendimento cobrem amplamente o prejuízo representado pelos encargos sociais
decorrentes da desatenção aos transtornos mentais (absenteísmo e desemprego,
criminalidade e prejuízo educacional).
Então, o que temos é o retorno do
senhor de engenho psiquiátrico aproveitando-se da confusão geral para
esgueirar-se para dentro do “Aluga-se Geral” que tomou conta do país. Este
gesto ostensivo de corrupção dentro da lei, rapidamente reúne contra si 26 mil
assinaturas e 656 associações que repudiam tal nomeação . Dilma Roussef e
Jacques Wagner, lembrem-se do velho Raul, vocês tem dois pés para cruzar a
ponte, ainda está na hora de tirar este cara daí, antes que ele providencie a
internação compulsória de todos nós.
* Christian Dunker é
psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP) e colaborador da Fórum Semanal
Foto de capa: Reprodução/YouTube
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