Estamos encurralados diante de
uma nova investida do pensamento neoliberal da desconstrução das políticas e
instituições que garantem direitos.
Cândido Grzybowski - Sociólogo,
diretor do Ibase // www.cartamaior.com.br
Neste começo de 2016, me recuso a
especular e elaborar prognósticos sobre o que poderá acontecer como
desdobramento da enorme crise político-econômica que estamos vivendo,
particularmente aqui no Brasil. Prefiro pensar no que é necessário fazermos, a
partir da diversidade de sujeitos coletivos que conformamos como cidadania,
para serem criadas possibilidades políticas de revitalização da nossa
democracia. Estamos diante da necessidade de constituir uma nova hegemonia, de
um novo imaginário mobilizador, de uma nova onda democratizadora da política e
da economia, que seja capaz de transformar situações através da disputa
democrática pautada por valores e princípios éticos dos projetos e rumos para o
país. Esta é uma condição sine qua non para uma maior emancipação da cidadania
diante da ditadura dos mercados e da especulação financeira, que quer ditar
nosso futuro, nosso modo de viver em busca de bem-estar e sustentabilidade,
compartindo territórios e riquezas entre todas e todos. O fato é que precisamos
agir e ousar desde o aqui e o agora, porque o futuro e os caminhos a ele se
fazem no caminhar.
Por trás daquela fumaça toda e
confusão em Brasília, onde quase nada se vê, precisamos identificar as forças
obscuras que estão determinando o jogo político. Estamos encurralados diante de
uma nova investida do pensamento neoliberal da desconstrução e flexibilização
das políticas e instituições que garantem direitos. Mais privatização e menos
estatais, mais abertura comercial com exploração de insustentáveis “vantagens
comparativas” em agronegócio e produtos primários, mais facilidades de acesso a
recursos naturais e menos bens comuns como áreas de preservação, territórios
indígenas e de povos tradicionais, menos regulação democrática como propósito
último. Enfim, os interesses e as forças políticas do neoliberalismo entre nós
querem usar o Estado para dar mais poder ao próprio mercado. Aproveitando as
dificuldades do governo Dilma, que ganhou as eleições mas não construiu a
hegemonia necessária, e usando a alavanca da crise fiscal, trata-se reduzir a
própria capacidade do Estado de formular, financiar e executar políticas para o
bem de todos.
O problema está longe de ser o
impeachment ou não, pois a crise tem uma questão de hegemonia no seu cerne. O
futuro que o neoliberalismo aponta é o aprofundando do mesmo sistema do
capitalismo socialmente excludente e ambientalmente predador. Porém, o máximo
que poderemos alcançar é uma posição de nação subserviente. Há uma grande
verdade histórica que evitamos de ver: esse sistema supõe que só uns poucos
países possam ganhar. Para haver outros, países que ocupam posições no pequeno
clube de desenvolvidos e o imperialismo que os suporta tem que cair. Não há
lugar para todo mundo no desenvolvimento do capitalismo, como nos lembrava Celso
Furtado nas suas últimas obras. A opção democrática é exatamente o transitar,
sem guerra e nem barbárie, para modelos políticos e economias adequadas que
priorizam a justiça socioambiental e não a acumulação privada de riquezas.
O incrível, entre nós, são um
montão de “unanimidades burras”, como chamava Nelson Rodrigues. Estas
unanimidades, particularmente no seio das classes dominantes, são verdadeiras
viseiras que não nos permitem ver mais longe e o que realmente importa. Por
exemplo, nem está na agenda pública o debate do fato que um punhado de
detentores da dívida pública brasileira consome aproximadamente metade do
orçamento federal recebendo juros estratosféricos, situação criada em última
análise pela própria política monetária, que, assim, só alimenta mais e mais a
tal crise fiscal do Estado. E ainda querem atribuir às conquistas cidadãs em
educação, saúde e previdência social, legitimadas e instituídas na Constituição
de 1988, como as fontes da crise fiscal que atravessa o Estado brasileiro. O
que não dá é para continuar a apostar na possibilidade do Brasil ser um sócio
submisso e dócil de um desenvolvimento capitalista concentrador de riquezas e
destruidor do próprio planeta, comandado pelo cassino global de grandes
corporações e de especuladores, que criam riqueza financeira fictícia de mais
de 10 vezes o PIB mundial. Mas como sabem se remunerar estes donos do mundo sem
nada fazer!
Estamos diante de uma ameaça real
no aqui e agora. Os grandes interesses econômico-financeiros já mercantilizaram
e contaminaram a política entre nós. Um dos traços mais evidentes da crise
política atual são as lideranças investidas de poder e as bancadas no Congresso
a serviço de interesses privados. Aliás, o nosso sistema partidário e nosso
Congresso não expressam a cidadania real em sua diversidade. Eles estão
contaminados pela enorme privatização operada na política. Campanhas eleitorais
entre nós viraram marketing, de venda de imagens e discursos vazios, sem debate
de ideias e projetos para o país. Mais, a maioria dos investidos de mandatos de
representação não tem lealdade com eleitoras e eleitores que os elegeram, são
leais aos seus financiadores.
Será que as operações em curso,
deflagradas pela Promotoria Pública, Polícia Federal e Justiça Federal vão ao menos
por um freio neste assalto da política e do patrimônio público? De toda forma,
mudança real da política não virá daí. Somos nós mesmos que temos que resgatar
a política, o espaço comum de construção de sentidos e projetos, de exercer o
papel instituinte e constituinte da cidadania, de gestão da nossa diversidade
de sujeitos com princípios de liberdade e igualdade mutuamente reconhecidos.
Política na democracia só funciona como bem comum, como bem de todos e todas.
Política não pode ser um mercado de troca de favores, alimentador do
patrimonialismo que, como câncer, corrói o próprio espaço da política, os
partidos, a representação e o Estado, em última análise. Mas a política não
nasce comum, pelo contrário, torna-se comum pela ação democrática da cidadania
e de seus representantes eleitos, que recolocam os comuns no centro. A reforma
política que precisamos se faz na rua, na comunidade, nos espaços de encontro,
no trabalho, no sindicato, nos movimentos sociais e nas organizações de
cidadania ativa, na universidade. Cidadania em ação direta é condição
necessária da política como bem comum, enfim. Mas para tornar-se força
irresistível precisa criar poderosos movimentos políticos de cidadania que
emancipem a política da ditadura privatizante e mercantilizante imposta pelos
mercados e lhe deem sentido de bem comum. Aí entra a renovação do ativismo
cidadão e da militância através de redes, fóruns, conselhos e partidos, pelo
debate público, pela criação e disputa de imaginários mobilizadores, pelas
eleições. Não basta uma reforma na legislação, mesmo ela sendo necessária. A
condição indispensável para nova onda política democrática é a cidadania em
ação. Identifico aí o nosso primeiro grande desafio para criar possibilidades
de outro Brasil, desde aqui e agora.
O que fazer, então? É evidente
que de Brasília, do poder central, nada virá! Tão pouco virá da plêiade de
partidos existentes, em geral oportunismos de ocasião ou, quando tendo bases
sociais, verdadeiras máquinas burocráticas sem mais condições de disputar
hegemonia. Nos resta olhar à nossa volta, ao nosso cotidiano, ao território em
que vivemos como nosso lugar. Precisamos reconstruir espaços de encontro e
debate, de incansáveis debates que vão criando novas solidariedades, com
renovados valores e, sobretudo, com ideias que podem dar sentido e mobilizar a
cidadania em círculos crescentes. Não foi isto que nós, das gerações que viveu
os anos de chumbo da ditadura, fizemos e acabamos alimentando o irresistível
movimento da redemocratização? Os tempos e as gentes são outros. A história não
se repete. Mas o aprendizado do fazer política a partir de situações do
cotidiano pode ser resgatado como um bem comum da cidadania e voltar a ser útil
para novo tecido associativo, novos movimentos, novas organizações, na atualidade.
Por sinal, é no cotidiano à nossa volta que podemos encontrar resistências e
insurgências cidadãs que são verdadeiras sementes políticas de um amanhã mais
democrático e participativo na construção de uma sociedade mais justa e
sustentável. Eis aí um segundo desafio, mas que depende mais de nosso
engajamento cidadão do que de outra coisa.
Este olhar atento e solidário às
resistências e insurgências cidadãs nos territórios em que vivemos podem ser o
pilar de uma agenda mobilizadora que, de baixo para cima, alimente uma poderosa
onda democratizadora. Vejo as resistências e insurgências que pipocam pelo
Brasil nos últimos anos como tendo a defesa e a promoção dos bens comuns como
algo central. Podem ser resistências urbanas, como favela é cidade, barreiras
ao assalto de espaços na cidade pelo capital imobiliário, a luta por transporte
e a mobilidade urbana coletiva como direito de cidadania e como prioridade
sobre o transporte individual e as empresas privadas que o transformam em
negócio, a luta pela água e o saneamento como bens comuns, a valorização da
produção cultural popular e de rua, escolas e saúde pública “padrão Fifa”,
entre tantas outras lutas. Muitas delas e cada vez mais são resistências nos
territórios rurais como comuns humanizados e criados ao longo de gerações, seja
contra o agronegócio predador e concentrador, seja à grande mineração e os
grandes projetos de interesse dos grandes conglomerados empresariais, sem
respeito nenhum às populações locais e seus comuns. Temos, ainda, um debate
emergente que tenta por em questão as empresas públicas como bens comuns. O
fato de haver muito a mudar neste terreno, para que as estatais funcionem como
bem comum de toda a cidadania, não pode obscurecer que o ataque às estatais
visa a transferência generosa, como no passado recente, de patrimônio público a
grupos privados. Desmontar a capacidade indutora da economia nas mãos do Estado
é fácil, mas vai limitar enormemente a própria capacidade de regulação
democrática da economia. Todas estas agendas emergentes, de resistências e
insurgências, devem entrar no nosso campo de análise e do novo ativismo cidadão
que precisamos construir para outro futuro do nosso Brasil. Está aí a terceira
prioridade que aponto.
Tem mais! Penso que temos um
grande desafio para ampliar a esfera pública e o debate público com um novo
imaginário mobilizador. Trata-se da comunicação como espaço estratégico do
fazer a partir de hoje o futuro que queremos e apostamos como possível.
Brigamos muito pela democratização da comunicação, visando em particular o
verdadeiro monopólio privado, que tenta fazer nossas cabeças através dos
grandes meios. A comunicação é um bem comum estratégico em qualquer democracia
que tenha sentido e capacidade de transformação. Como pouco conseguimos nos 30
anos da onda democratizadora que se esgota, tal luta continua válida, mas
talvez venha perdendo importância. Devido às novas tecnologias de informação e
comunicação – as TICs – está em curso uma verdadeira revolução nas
comunicações. As “redes sociais” minam o monopólio privado de televisão, rádio
e jornais numa velocidade espantosa. Estamos diante de uma fecunda revolução
anárquica, quase sem controle, onde podemos nos informar e nos comunicar da
forma mais livre possível. O problema é seguir isto tudo e, sobretudo, garimpar
as sementes de bom senso presentes aí – como dizia Gramsci no seu tempo. Já
existem esforços de cidadania, alguns ancorados em instituições de reconhecido
compromisso ético e político com a democracia, que tentam ajudar na garimpagem,
organizando a informação e a circulação de análises que arrancam sentido do
cotidiano aparentemente anárquico. Precisamos apoiar tais esforços como
resistências e insurgências de cidadania portadores de outro futuro. Isto
podemos fazer sem depender de partidos ou mediadores. Basta nos reconhecermos
como cidadãs e cidadãos que compartilham a mesma busca de novo imaginário
mobilizador.
Enfim, sei que o que proponho
está longe de ser suficiente, mas pode ser um começo que nos tire da total
falta de perspectivas do debate dominante e que transforme nosso desconforto
com a atual situação em algo que nos permita mover-se como cidadania. Quão
longo será o processo de gestação de uma nova onda democratizadora é difícil
prever. Aliás, escapa ao controle. Só é possível afirmar que foi assim que se
gestaram verdadeiras revoluções cidadãs na história recente da humanidade. E
isto está ao alcance do nosso que fazer político.
Que no fim deste ano, 2016 possa
ser celebrado e lembrado no futuro como o ano de começo da virada! Boa sorte
para nós, pois ela também faz falta muita vezes. O mar está revolto, mas a
travessia necessária pode se tornar possível pelo nosso engajamento com ousadia
e determinação.
Créditos da foto: EBC
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