"Testemunha privilegiada das
tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter
dessas tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria
Forrest tendo crescido na América, na França, em Israel"
O esvaziamento do político
garante a perpetuidade das injustiças do Estado de Direito atual. Até que ponto
as críticas dirigidas ao sistema foram internalizadas? O que a cultura poderia
dizer sobre uma “onda conservadora” e suas estratégias?
por Fábio Salem Daie // http://www.diplomatique.org.br/
Em outubro de 1789, no início da
Revolução Francesa, deputados do antigo Clube Bretão se instalaram numa sede
própria, localizada em Paris. No local ocorriam quase todas as noites
acaloradas discussões, cujo objetivo era ampliar os temas tratados, horas
antes, na reunião dos Estados Gerais, recém-convocados para tentar solucionar a
crise política e financeira do governo de Luís XVI. Muitos dos deputados ali
presentes – inclusive um jovem advogado provinciano cujo nome os jornais
grafaram errado por meses, Maximilien Robespierre – viam na convocação uma
chance de ascender politicamente. A nova sede do Clube Bretão ficava no antigo
convento dos jacobinos. No entanto, a denominação especial que les jacobins se
outorgaram à época não foi essa. Naqueles dias tumultuados, os aprendizes da
política moderna preferiram denominar-se “Sociedade dos Amigos da
Constituição”. O nome nos soa curioso, visto que se tratava de uma época de
importantes transformações. Sua justificativa, porém, é simples: naquele momento,
a Constituição era a própria revolução, porque vinha substituir os códigos
feudais que sustentavam o ancien régime. Ser amigo da Constituição significava
ser amigo da revolução.
Visto que o período da Assembléia
Nacional Constituinte (1789-1791) fora dominado pela posição girondina –
moderada no que tangia à Igualdade e radical no que dizia respeito à proteção
da Propriedade –, os jacobinos se viram desde o início conduzidos a um dilema:
no contexto frágil da Primeira República, tendo a conquista da Constituição
como expressão máxima do acordo entre as forças nacionais, como aprofundar seu
caráter democrático sem colocar em risco a própria revolução? As contradições
se agravam e o rei Luís XVI é executado no início de 1793. O descontentamento
crescente da população mais pobre leva os jacobinos à supremacia da Convenção,
que deve apontar um rumo ao país. A França já se encontrava então em guerra com
potências monárquicas e a unidade nacional se transformara em ponto crítico.
Foi nessa fase de grandes tensões que os jacobinos, com a Constituição como
pedra-de-toque da unidade, assumiram posições tais como: “Os infelizes são a
força da terra; eles têm o direito de falar como donos aos governos que os
negligenciam” ; ou ainda: “Quando o governo viola os direitos do povo, a
insurreição é, para o povo, e para cada porção do povo, o mais sagrado dos
direitos e o mais indispensável dos deveres” .
Pese a complexidade do processo
revolucionário, chama a atenção o fato de que, no mesmo período em que
instituíam um código positivo de leis, aqueles deputados buscassem resguardar a
resistência e a sublevação como direitos fundamentais, caso a Constituição
viesse a ser desrespeitada pelas autoridades. O processo traumático, que
colocara em xeque o direito divino do rei e limitara suas ações, tinha
requerido de seus partidários o esforço de elaboração de uma nova legitimidade
(poder-se-ia dizer: de uma nova narrativa do mundo), apta a sustentar no âmbito
do Direito a lenta reestruturação social encabeçada pela burguesia. Se essa
narrativa se via em disputa, naquele momento, entre as frações mais
oligárquicas e mais populares da burguesia, os jacobinos (ligados a esta
última) buscavam garantir uma interpretação da democracia como um “ponto de
excesso” em relação ao Estado de Direito e o reconhecimento da legalidade da
“violação política” .
Desnecessário mencionar o que
isto significava, por exemplo, às colônias francesas, onde o trabalho escravo
se mantinha no mesmo momento em que, na metrópole, declarava-se que “os homens
nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos” . Embora considerada
legal, a escravidão dificilmente poderia ser mantida como instituição legítima
à luz dos novos acontecimentos. De fato, chegou a ser abolida, em fevereiro de
1794, pressionada pelo desenrolar da revolução dominicana liderada por
Toussaint L’Ouverture (1743-1803). No romance histórico El Siglo de Las Luces
(1962), o cubano Alejo Carpentier narra a trajetória de Víctor Hugues,
designado pela Convenção para levar às colônias caribenhas a nova ordem fundada
com a Primeira República. Ao se debruçar sobre os descaminhos do processo
revolucionário francês, Carpentier se debruça sobre a própria Revolução Cubana.
Seu clássico traça certa distinção essencial entre a legitimidade das causas do
processo social e a (quase previsível) ilegitimidade das razões de seus
múltiplos atores individuais.
Vale lembrar que as duas coisas –
a democracia como “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e a
distinção entre processo social e seus protagonistas – são largamente ignoradas
em nossos dias. Este “ponto de excesso” e aqueles que ali se posicionam são
alvo de crescente deslegitimação e criminalização .
A revolução antiimperialista
também foi tema do psiquiatra martiniquês Frantz Fanon (1925-1961), autor de
Les Damnés de la Terre (1961). Após participar dos conflitos na Argélia, Fanon
defendeu que a mera descolonização dos territórios ocupados pelos europeus não
constituía retratação suficiente. Seria preciso, segundo ele, que a Europa
assumisse responsabilidade moral e econômica pela destruição das bases
produtivas das populações subjugadas e, consequentemente, pela desagregação das
formas de vida social. Porém, Argel não era Paris. Qual a garantia de Fanon
para exigências não previstas em contrato? Bastaria que olhássemos, hoje, à
tragédia de milhões de imigrantes que tentam adentrar a União Europeia. A
resposta é: a história.
Narre, Forrest, narre!
O acesso à história é uma das
condições para a mobilização de uma narrativa que aborda (e às vezes funda) o
que é legítimo, e não apenas o que é legal do ponto de vista do Estado de
Direito. Esvaziar o âmbito político da vida pelo bloqueio de racionalizações
históricas é uma das estratégias permanentes do conservadorismo. Certa corrente
da literatura escrita ao final do século 19 e início do 20 possui uma lição
sobre este tema. Na leitura do filósofo György Lukács, ela vincula-se aos
acontecimentos da Primavera dos Povos, que em 1848 se espalharam pela Europa
como “fogo na palha”. Quando aquela burguesia revolucionária, que da França
havia abalado, em 1789, todo o sistema monárquico, assume poucas décadas depois
o papel de reprimir as classes pobres em revolta, tal significaria que seu
papel progressista como classe na longa trajetória de emancipação da humanidade
chegara ao fim . Em Paris, onde muitos escritores foram testemunhas de batalhas
violentas livradas pelas ruas, era como se o caminho aberto pela Revolução
Francesa ao protagonismo do cidadão comum houvesse se fechado.
Diante de tais fatos, a
literatura moderna, até então em sua fase “heróica” (à qual pertenceria
Balzac), entra em crise. A expressão mais alta dessa crise, segundo Lukács,
seria uma bifurcação. De um lado, a corrente do realismo crítico, que vê na
resistência à progressiva brutalização do indivíduo pelo capitalismo uma
expressão justa do tempo histórico: o realismo salvaguardaria, por assim dizer,
as conquistas realizadas até ali pelas sociedades ocidentais modernas (um
exemplo seria a obra de Flaubert). De outro lado está a corrente não-realista,
que encara tal brutalização como processo inelutável, em que o indivíduo se vê
condenado paulatinamente a espectador (e não mais protagonista) de um mundo que
se fecha à própria compreensão (aqui, Lukács insiste no naturalismo de Zola).
Para Lukács, existe uma ligação
íntima entre o naturalismo do século 19 e o modernismo vanguardista do século
20. No romance naturalista, o alheamento das personagens dos principais
acontecimentos favorece o nivelamento das experiências: niveladas, não mais
hierarquizadas, tais experiências falham em fornecer sentido à vida. No século
20, este nivelamento assume uma forma singular. Em algumas das principais
obras, surge na forma de périplos que se esgotam em si mesmos. É uma ação
vazia, porque seu resultado não significa modificação alguma, seja no mundo ou
no foro íntimo da personagem. Ulysses (1922), de James Joyce, é possivelmente a
maior expressão dessa corrente. O teatro de Samuel Beckett seria sua expressão
paroxística, porque fundada numa inação exasperante. Sob essa perspectiva – de
uma ação rebaixada, que nada transforma – chegamos a um tempo também rebaixado,
que nada traz (nem pode trazer) de novo. É um tempo de perpetuidades, contrário
em tudo ao tempo de transformações. Ação vazia e tempo vazio são, portanto,
complementares.
Um caso mais recente dessa
modalidade de ação é aquele do filme Forrest Gump (1994), lançado no auge da
era neoliberal. Ali, a recapitulação de parte do século 20 norte-americano
assume a forma de uma série cronológica de eventos, todos precariamente articulados,
alguns sequer no nível de uma causalidade rudimentar. Da ascensão do rock and
roll aos impactos sobre a moral conservadora dos golden years, em 1950;
passando pela Guerra do Vietnã, no contexto da Guerra Fria, e pelos movimentos
por Direitos Civis contra a discriminação racial e sexual, em 1960; até o
escândalo Watergate e a escalada do poder corporativo na política no início do
decênio seguinte... Percorremos em sequência impactos, conflitos, lutas,
corrupção.
Quarenta anos separam o pequeno
Forrest daquele, adulto, que narra sua história aos transeuntes num ponto de
ônibus. História notável, diga-se de passagem, porque unida por melindrosos
fios aos acontecimentos centrais de seu país. E, não obstante, a partir do
filme pouco ou nada podemos dizer em que os Estados Unidos da infância do
narrador mudaram em relação aos Estados Unidos de sua madurez. Sequer
poderíamos apostar qual desses fatos (decisivos na vida do Estado-nação) foi
mais decisivo em sua própria vida. A reflexão de Simone de Beauvoir de que foi
a Segunda Guerra Mundial que a despertou para o vínculo indissociável de sua
existência com a trajetória do mundo e da França é aqui (em Forrest Gump)
completamente estranha.
Testemunha privilegiada das
tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter
dessas tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria
Forrest tendo crescido na América, na França, em Israel. Não há nada em seu
modo de ver que prove que ele é um yankee (isso explica em grande medida,
segundo creio, o sucesso mundial de um filme que trata, supostamente, do
percurso íntimo dos EUA). Para existir, bastaria que seu relato seguisse
permeado de périplos incríveis, real interesse da trama. Os conflitos não
marcam rupturas (pessoais ou coletivas), mas servem como pano de fundo à
narração de alguém que é quase aquilo mesmo que narra.
Suspeitamos assim, contra todas
as evidências, que o tempo não passa em Forrest Gump. À sua maneira, o filme
partilha da perspectiva (da qual tratamos anteriormente) de uma ação esvaziada,
à qual corresponde um tempo homogêneo. Se olharmos em Beckett (tomemos o
exemplo mais paradigmático), veremos que a ausência de ação e o tempo homogêneo
estão vinculados necessariamente a outro fator: a falência do sujeito. Na obra
do irlandês, a ruína da subjetividade e da razão se deve a um dado colossal: a
sociedade, que conforma o indivíduo, entrou em colapso. Em Forrest
(personagem), também há um sujeito falido. Nesse caso, entretanto, justificado
por fatores mais adequados a uma sociedade que nega a própria desagregação:
Forrest tem um problema biológico.
Por carecer de integridade
mental, o relato de Forrest equipara-se ao relato de uma criança. Tudo é
imediato, nada é mediato. Sua qualidade principal é o tom naïf. E, no que
concerne à ingenuidade, nada é mais estranho a ela do que isto: a vida
política. Como uma criança, Forrest não possui uma perspectiva política da
realidade. É este, afinal, o núcleo ausente de toda a narrativa, e que poderia
fornecer substância aos acontecimentos, dar-lhes sentido (à história dos
Estados Unidos e à sua própria). Enfim, podemos dizer: o tempo não passa em
Forrest Gump porque, no que concerne às representações que o homem faz de si
mesmo, não existe tempo verdadeiro no exterior de uma perspectiva política
sobre a existência.
Negamos acima que Forrest Gump
narraria o percurso íntimo dos Estados Unidos. Agora, constatamos que é na
chave da falsa historicidade que o filme fala algo concreto e atual sobre a
realidade norte-americana (e, quem sabe, de nossa própria). Homérico, Forrest
encarna a figura do narrador por excelência, de cuja narrativa,
anti-homericamente, nenhuma lição se depreende. Esvaziada de sentido histórico
profundo, este tipo de narrativa obstrui a enunciação de qualquer julgamento
sobre a legitimidade dos processos sociais e sobre o valor de nossas ações até
o presente, além de impedir que o sujeito encare a si mesmo como tal,
responsável pelas mudanças do mundo.
Esta estratégia – de esvaziamento
contumaz e velado do âmbito político – é justamente um dos traços que se
fortalecem em nossos dias. Ela se estende do discurso sobre a corrupção (como
dado “policialesco” e avulso na modernização do Estado brasileiro) às manobras
redutoras variadas que consideram “democráticas” as manifestações populares em
defesa de condições básicas de existência, ameaçadas por interesses
antidemocráticos; ou que, em período de eleição, desejam fazer crer que a luta
de classes é um discurso de ódio, oportunista e retrógrado, que profana o “altar
natural” da fraterna unidade nacional. Em última instância, este esvaziamento
do político visa garantir que se perpetuem os vetustos privilégios sociais que
assombram a trajetória do país desde a colônia. Neste exato momento de crise
profunda da Nova República, o combate a este tipo de narrativa (nas ruas,
inclusive) ganha centralidade.
É pau, é pedra
Alguns dos intelectuais mais
sensíveis ao problema da ideologia perceberam que certa corrente da arte
contemporânea, bem como certa estratégia de discurso mobilizada no estágio
atual do capitalismo realizam um movimento de reflexão sobre si mesmas,
implicando no discurso a própria condição, quando não fazendo desta o centro de
seu enunciado. Para ir direto ao ponto, mencione-se a campanha, lançada aqui em
2012 e intitulada “Gestão de Patrimônio”, do banco britânico HSBC . O filme da
terceira fase foi veiculado ao longo de 2015 e se apresenta em duas partes: na
primeira, crianças divagam sobre o que desejam ser no futuro; na segunda,
homens e mulheres da chamada “terceira idade” realizam um balanço de suas
vidas, mencionando quais sonhos foram abandonados em prol da construção de um
patrimônio . Após uma sequencia de devaneios infantis intercalados com
arrependimentos pungentes dos mais velhos, vai à tela esta questão: “Em que
momento o dinheiro passa a ser o mais importante?”. Em seguida, surge o anúncio
da Gestão de Patrimônio do HSBC e uma voz, em off: “O importante não é ter mais
dinheiro. É saber o que ele pode fazer por você”. Alguém poderia perguntar:
quem precisa de uma crítica à sociedade de consumo e à cultura do acúmulo com
bancos assim? Mais prevenidamente, consideraria que se trata de uma postura
cínica, visto que o banco instrumentaliza sua crítica ao acúmulo em prol do...
Acúmulo. Vejamos, portanto, um caso para além do cinismo.
A peça publicitária possui 30
segundos, mas contém um dado revelador. A empresa é a marca de tênis Olympikus
e a estrutura do comercial também possui duas partes intercaladas : na
primeira, cenas da opressão da vida cotidiana na metrópole; na segunda, pessoas
correndo em grandes espaços abertos, próximos à natureza . Não há dúvida de que
o efeito sedutor do filme se dá pela sucessão frenética das imagens, permeadas
o tempo todo por um narrador em off. Pese a multiplicidade dos elementos
envolvidos, o que chama a atenção é isto: contraposta às cenas de corrida, a
assunção deliberada da violência causada pela rotina do trabalho, pela
repetição sem finalidade e sem fim de tarefas conduzidas pelo autômato, pela
negação de qualquer vida mental, pelos códigos de conduta impostos.
Interessante é a imagem do escritório: contra o clichê do ambiente espaçoso,
iluminado e clean, é posta em cena uma ambientação monocromática, apagada e
sufocante. Tem-se a impressão de que, longe de ser a consolidação de uma ética
do trabalho – que admite o cumprimento das obrigações, por exemplo –, dá-se uma
aceitação das "leis laborais” sem mais justificativas, restando somente o
imperativo do hard work. Aliás, a propaganda não desautoriza de forma alguma
esta interpretação: o esforço físico intenso realizado fora das horas de
trabalho é uma espécie de catarse, onde se dá a compensação das longas horas
também intensas e mortificantes.
É a passagem do Work hard, fly
right – bordão dos anos 1990 da empresa aérea Continental Airlines – ao Work hard, play hard, como reformulado
pelo rapper norte-americano Wiz Khalifa, em 2012. Este "play hard" –
com o qual dialoga sem dúvida o “espírito de desporto” do comercial da
Olympikus – expressa muito das faltas e estragos causados por aquele "work
hard" de uma década atrás. Khalifa
explica: [I got] so much paper right in front of me it's hard to think / Bought
so many bottles, it's gonna be hard to drink (...) Go hard, make sure you do it
whatever is that you gotta do / That's your job / And niggas gonna hate, but
that's no prob .
Arranjemos lado a lado ambos os
discursos – de HSBC e Olympikus – e o que se insinua é que o establishment
realizou certa internalização da crítica que, até há pouco tempo, o marxismo fazia
ao trabalho alienado como “desefetivação” da vida, não apenas durante o
expediente, mas durante o “tempo ocioso”. Franz Kafka já a sentiu no início do
século 20, quando constatou que a escrita e o trabalho burocrático do
escritório “não podem se tolerar mutuamente e não admitem uma felicidade comum
a ambos” . Esta mesma incompatibilidade é problematizada por Ricardo Antunes em
Os Sentidos do Trabalho (1999), acrescida do tema da intensificação do tempo de
trabalho na era neoliberal. De ideologia de segundo grau – como Roberto Schwarz
definiu as ideias liberais no Brasil escravista do século 19 –, tais exemplos
da propaganda sugerem uma conjuntura na qual, frente à manutenção estrutural da
ordem neoliberal (inclusive ou sobretudo por governos ligados à esquerda) e a
neutralização recorrente de contra-narrativas que legitimem oposições ao status
quo, mesmo a ideologia liberal de primeiro grau teria se tornado supérflua. As
representações sobre o trabalho, assim, já não simulariam realizar destino
pessoal algum, acolhendo aquele como uma dimensão morta da vida do sujeito.
Tudo é o que é. Poder-se-ia dizer, parafraseando Drummond do período entre
guerras, "chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem
mistificação". Teríamos chegado ao grau zero da ideologia liberal? Seria
este um passo anterior ao seu esvaziamento completo porque esta ideologia ainda
precisa sustentar, por negativo, não tanto a noção de aprimoramento quanto a de
impossível superação?
O sentido conformista que
imediatamente emerge daí pode ser corroborado no espaço da cultura. Nas artes
plásticas, parte desse sentido está latente no chamado hiperrealismo, que lotou
a Pinacoteca de São Paulo no ano passado com a exposição das obras do
australiano Ron Mueck , artista cuja ligação seminal com o mercado da
publicidade e do cinema certamente não é por acaso. Na contramão da arte
conceitual, o hiperrealismo de Mueck trabalha no estreitamento radical das
possibilidades de construção intelectual do observador. Isto porque, se é
verdade que não esgota as elaborações pessoais (mas alguma arte esgota?), por
outro lado direciona a todo instante essas elaborações para a mundanidade da
existência já sobejamente conhecida. Confirmando a vida burguesa com imagens
que são o paroxismo dessa mesma vida (inclusive na sua solidão), o
hiperrealismo de Mueck cria um jogo inesperado de expectativas e resultados. O
real, dirimido em suas partes infinitesimais, assume o aspecto de coisa
estranha, e estranhamente flerta com o irreal, porque nenhuma realidade tem a
qualidade de expor-se nos mesmos termos: tão francos, transparentes e duros. É
assim que o hiperrealismo retira de si todo espaço de sombra para relançá-lo
sobre o mundo lá fora, de carne e osso. Em outras palavras, seu excesso de luz
torna opaca e incerta a vida ao redor, resultado que o conserva do discurso
publicitário, embora ambos operem sobre o mesmo núcleo de problemas.
Na indústria do cinema, talvez
fosse possível vincular ao grau zero da ideologia um mote cada vez mais comum,
visível em produções que vão de Tropa de Elite a 007 Contra Spectre (última
continuação da franquia James Bond) – e que poderia ser resumido na seguinte
frase: o inferno não são os outros, o inimigo não mora ao lado. Atormentados
pelos desdobramentos tentaculares do próprio ofício (lembre-se que Bond, em
Skyfall, de 2012, pensa inclusive em renunciar aos afagos das bondgirls e se
aposentar), tais heróis descobrem continuamente e sem assombro que a maior
ameaça de fato não está “do outro lado”, mas reside no interior do “mundo
livre”, e sugerem que as instituições democráticas do Estado de Direito possuem
algo de mera fachada “para francês ver”. A isso refere o esloveno Slavoj Žižek
quando, à propósito de The Truman Show (1998), recorda que “a última fantasia
paranóica americana é a do indivíduo vivendo numa idílica cidadezinha
californiana, um paraíso consumista, e que subitamente começa a suspeitar de
que o mundo onde vive é falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que
vive no mundo real, enquanto ao redor só existem atores e extras num gigantesco
show” . A experiência deste espetáculo hiperrealista ao redor é, segundo Žižek,
“irreal à sua maneira”, “sem substância”, no que conversa com as imagens de
Mueck. À diferença de The Truman Show, entretanto, os filmes recentes colocam
suas personagens como viventes numa “encenação da vida real”, constrangidos a
seguir adiante sob o véu rasgado das velhas ilusões.
Ao que estarão ligados todos
esses reconhecimentos sobre a substância cinzenta da vida contemporânea? À
queda de todas as expectativas suscitadas pelo socialismo – do legado
estalinista no século 20 aos esforços recentes do partido grego Syriza, podados
brutalmente pela Troika (Eurogrupo, Banco Europeu e FMI), passando pelo
esgotamento dos governos de centro-esquerda na América Latina – segue-se a
derrocada das promessas feitas também pelo liberalismo e pela direita.
Assunções vergonhosas, impensáveis na década de 1990 (como a do Banco Mundial
que admite ter agravado ainda mais as vidas dos miseráveis a quem deveria
proteger ; ou do FMI acerca dos equívocos do receituário neoliberal aplicado à
reestruturação grega logo após 2008 ), tais assunções surtiram um efeito
inesperado no que diz respeito às expectativas de construção de uma nova
sociedade: vieram realizar o mea culpa sobre as “distorções do sistema” e de
suas frustradas promessas de redenção pelo free market sem, no entanto,
arremessá-las ao mármore do inferno das ideologias (como ocorreu com o
socialismo). Exemplo disso são as pressões exercidas hoje sobre a Grécia pelos
mesmos que, há três anos, foram responsabilizados pelo agravamento de sua
crise.
Alguém dirá que ainda é muito
cedo para afirmar que o receituário neoliberal se safou satisfatoriamente das
encrencas que ele mesmo criou. Ou é isso, ou a moral da história é outra, mais
engenhosa, e se vincula à emergência de um novo paradigma nos processos de
legitimação e deslegitimação das políticas postas em prática por governos e
instituições estatais e privadas. Como parte constituinte deste novo paradigma
(se a hipótese é verdadeira) poderíamos citar a capacidade patente das grandes
corporações de se posicionarem, não como obstáculos às transformações
planetárias urgentes mas, ao contrário, justamente como a via principal através
da qual essas transformações podem e devem se dar. Alguns dos ecologistas mais
céticos (para não dizer "realistas") apostam, por exemplo, que a
única saída à crise climática mundial seria a criação de mecanismos legais que
regulamentassem a exploração e a depredação da natureza, inserindo fauna e
flora na lógica do mercado. Em escala reduzida, este raciocínio se encontra em
declarações de biólogos e funcionários governamentais que, à sombra da morte do
leão Cecil por um pacato dentista de Minnesota (EUA), Walter Palmer, no ano
passado, insistem que a única proteção possível aos grandes felinos não seria a
proibição completa da caça, mas a cobrança de 1 milhão de dólares pela “licença
para matar”. O próprio Banco Mundial já teria investido 700 mil dólares em
Moçambique, em 2014, “a fim de promover a caça esportiva como parte de um fundo
de conservação de 40 milhões de dólares” .
Se é certo que o capitalismo
contemporâneo internalizou parcela importante das críticas a ele dirigidas e
que novas formas de neutralização das oposições estão em jogo, resta insistir
na lição jacobina da prerrogativa do político sobre a ordem jurídica. Vale
lembrar que, na América Latina, a rica tradição dos “fora da lei” – com Zapata,
Sandino ou mesmo Zumbi – não versa sobre outra coisa: o resgate constante de
sua memória ainda significa garantia, para muita gente, de que a história não
cessou e uma ideia popular de democracia será cumprida.
Fábio Salem Daie
Fábio Salem Daie é jornalista e
pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo e um dos
autores de "Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos", ed Venetta.
[1] Relatório de Saint-Just sobre a mendicância –
26 de fevereiro a 03 de março de 1794.
[2] Artigo 35 da Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão – junho de 1793.
[3] Safatle, Vladimir. A esquerda
que não teme dizer seu nome. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2012. Jacques
Rancière também trata do “excesso da política” em O Ódio à Democracia
(Boitempo, 2014).
[4] Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, artigo 1º – agosto de 1789.
[5] “Por uma lei antiterrorismo
de Estado. Ou não sobrará ninguém”. Le Monde Diplomatique, 12.2015
[6] Lukács, György. O Romance Histórico.
São Paulo: Editora Boitempo, 2011.
[7] HSBC lança nova campanha de
Gestão de Patrimônio com criação da Grey Brasil – Aberje, 1º.11.2013
[8] Gestão de Patrimônio HSBC:
www.youtube.com/watch?v=l2cZYrd-ZyM
[9] Olympikus lança novo
posicionamento. Meio&Mensagem, 03.04.2014.
[10] Olympikus – Escute seu
corpo: www.youtube.com/watch?v=vyeJztPJW-c
[11] New Continental campaign: 'Work hard. Fly
right' – Advertising Age, 26.03.1998.
[12] “Tenho tanto papel na minha
frente que é difícil pensar / Comprei tantas garrafas que será difícil beber /
Vá firme, garanta que você fará seja lá o que você tiver que fazer / É o seu
trabalho / Os pretos vão odiar, mas isso não é problema.”
[13] Konder, Leandro. Kafka –
Vida e Obra. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974, p. 58.
[14] Exposição de Ron Mueck bate
recorde da Pinacoteca de SP – Folha de São Paulo, 23.02.2015
[15] Slavoj Žižek: Reflections on WTC - third
version, 10.07.01.
[16] World Bank Admits It Ignored Its Own Rules
Designed To Protect The Poor. The Huffington Post – 03.05.2015
[17] Grèce : le FMI reconnaît des erreurs – Le
Monde, 08.06.2013
[18] The Economic Argument For Killing Cecil
The Lion Doesn't Hold Up. The Huffington Post – 31.07.2015
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