A rápida urbanização pela qual
passamos nos fez desaprender sobre os ciclos da natureza e enxergá-la como algo
estranho ao nosso cotidiano.
Lya Porto, Gustavo Nagib, Giulia
Giacchè - Membros do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU) // www.cartamaior.com.br
Vivemos uma era de transformação,
onde podemos encontrar ações e visões completamente opostas em espaços comuns:
competição e cooperação, criação de hortas comunitárias e demandas por mais
concreto na cidade, meditações coletivas e aumento do consumo de
antidepressivos, explosão da culinária natural e dos fast foods. Nosso velho
sistema econômico está na UTI e levou junto com ele os recursos naturais de
nosso planeta Terra. Mas, afinal, quais são as resistências para transformar os
nossos modos de vida que não deram certo?
É interessante observar que as
dinâmicas da micropolítica têm muito a nos dizer sobre as lógicas dos níveis
meso e macro do nosso sistema econômico, político e social. Um exemplo são os
conflitos que ocorreram no espaço É Hora da Horta, no bairro da Casa Verde
(zona norte), na cidade de São Paulo – espaço de trabalho com o cultivo de
alimentos orgânicos em um terreno da Eletropaulo desde agosto de 2014.
A horta é cuidada diariamente por
três agricultores e há mais de 50 espécies comestíveis, entre frutas, legumes,
verduras, ervas medicinais e Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC).
Além do cuidado com o cultivo de alimentos, há uma fiscalização constante para
que não haja água parada com o objetivo de evitar a proliferação do mosquito
Aedes aegypti, transmissor da dengue, do zika e da chikungunya.
Frequentada por pessoas do bairro
e de outras regiões de São Paulo, há sete casas ao redor da horta e as
atividades de agricultura passaram a incomodar alguns vizinhos. No final do ano
passado, alguns deles fizeram uma denúncia contra a horta alegando que há falta
de limpeza e risco de proliferação do mosquito transmissor da dengue. A
Subprefeitura da Casa Verde, por sua vez, traduziu essa denúncia em uma multa
de R$ 15 mil e enviou um fiscal no local pedindo para que uma das agricultoras
retirasse todas as PANC.
Tendo em vista o ocorrido, nos
perguntamos: quais são os sentidos envolvidos na ideia de falta de limpeza e
risco de contaminação de dengue para os vizinhos e para os fiscais e técnicos
da subprefeitura? Espinafre silvestre, ora pro nobis, beldroega, batata doce,
trapoeraba, rúcula silvestre, feijão orelha de frade, vinagreira, amaranthus,
bertalha, salsinha silvestre. Todas essas espécies são plantas alimentícias que
se desenvolvem espontaneamente e se estabelecem no imaginário de algumas
pessoas como ideias relacionadas à sujeira e doença.
Curiosamente, o próprio município
assegura (e deveria promover) a Agricultura Urbana e Periurbana Agroecológica,
conforme estabelecido na Lei no 13.727/04, regulamentada por meio do Decreto
51.801/10. Com base nessas regulamentações é papel da prefeitura promover o
cultivo da diversidade das espécies, considerando que os fundamentos das
práticas agrícolas de base ecológica são, entre outras, a agrobiodiversidade.
Depois do ocorrido, ao acionar a
Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional do município, a coordenação
do programa entrou em contato com a subprefeitura para esclarecer que não havia
irregularidade nas atividades da horta. Ainda assim, esse fato demonstra que há
despreparo para lidar com o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (PROAURP)
no nível local.
O que há de errado nisso?
Por que chegamos ao ponto de
plantas alimentícias serem consideradas perigosas e daninhas? Qual seria o
sentido envolvido entre os vizinhos que se satisfazem em fazer denúncias e
buscar culpados? E fiscais do poder público que se sentem úteis em prescrever
multas e punir cidadãos? Por que não conseguimos sedimentar transformações no
nosso sistema político, social e econômico?
A rápida e excessiva urbanização
pela qual passamos no Brasil, especialmente em São Paulo, nos fez desaprender
sobre os ciclos da natureza e nos colocou em uma situação de estranhamento a
ela, como se não fizéssemos mais parte de um sistema integrado. Passamos a ter
certa aversão do contato direto com a terra e considerar este envolvimento
sinônimo de sujeira e promotor de possíveis doenças. Além de ser uma visão
equivocada, este comportamento pode impossibilitar o tratamento dos problemas
urbanos com iniciativas mais criativas e menos dependentes de produtos
industriais que comprometem em larga escala não só o meio ambiente, mas a saúde
humana.
O desafio de controlar o mosquito
Aedes aegypti está diretamente associado à nossa péssima relação com as águas
urbanas. O aterramento de rios e córregos da cidade de São Paulo transformou-se
em dutos subterrâneos coletores e transportadores de esgoto. Além da falta de
saneamento básico, que tornou os principais rios metropolitanos absurdamente
poluídos e contaminados – hoje, o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí são rios
“mortos” na cidade de São Paulo. Essas são as causas reais da insalubridade do
meio urbano e da propagação de doenças em escala tão alarmante.
Há um distanciamento e rechaço
das pessoas em relação à natureza e esse posicionamento é refletido e reforçado
pelas ações públicas.
Sucessivas gestões governamentais
de diversos níveis federativos continuam sendo permissivas para a não
preservação de áreas verdes e de mananciais, como é o caso da liberação de
construção no Parque dos Búfalos, localizado em área particular. Nesse caso,
tanto o governo federal, quanto o estadual e o municipal flexibilizam essas
construções através de ações conjuntas.
A Companhia Ambiental do Estado
de São Paulo (CETESB), órgão estadual, concede licenciamento para construção
nessa área de preservação e o município de São Paulo segue mantendo a lógica de
leis antigas sob nova roupagem, restringindo construção em áreas de preservação
apenas para propriedades públicas e não para propriedades particulares.
Assim, embora a atitude dos
vizinhos denunciarem uma horta alegando que o plantio de alimentos significa
falta de limpeza não pareça ter alguma relação com a diminuição dos espaços
verdes da nossa cidade, há uma forte relação entre as mesmas. É o
distanciamento cada vez maior das pessoas e da natureza que gera doença,
depressão, falta de sentido na vida, competição e consumo como fuga de um
grande vazio. O vazio do distanciamento da essência de cada um de nós que está
assassinando os recursos naturais do nosso planeta.
Nesse contexto, as hortas
comunitárias se apresentam como solução a nível micro para despertarem a
consciência ambiental e resgatarem o contato das pessoas com a natureza, que
pode ter efeitos progressivos. As hortas urbanas não apenas nos indicam outro
caminho para melhor gerir e cuidar das nossas cidades de maneira mais
participativa, democrática e ambientalmente sustentável, como nos ensinam a
controlar doenças na vida cotidiana.
O cultivo consciente de PANC
(verdadeiros “matos de comer”) e o manejo responsável da água, que vêm sendo
realizado nas hortas comunitárias de São Paulo, são exemplos desta ampliação de
consciência cidadã. Por meio de uma nova forma de se relacionar com as pessoas
e com a natureza, podemos transformar nossos hábitos, nossas cidades e nosso
planeta.
Créditos da foto: Rita Cavalieri
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