O Globo no golpe (I):
1962 — a escalada das manchetes rumo à ditadura
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Para desagrado de O Globo e de Roberto Marinho, o ano de 1962 tinha João Belchior Marques Goulart como presidente. Mesmo com seus poderes cerceados por um parlamentarismo enjambrado e imposto pelos ministros militares, o estancieiro de São Borja personificava a detestada linhagem getulista. Jango era presidente por obra e graça do extravagante sistema eleitoral que permitia ao eleitor votar separadamente no candidato à Presidência e à Vice-Presidência. Que poderiam pertencer a partidos diferentes e até adversários. E se elegerem. E foi o que aconteceu em 1960.
Jânio Quadros, eleito pela União Democrática Nacional (UDN) e empossado em 1961, renunciou espetacularmente com sete meses de Planalto, dando corda a uma jogada bonapartista que resultou fracassada. Com o Waterloo janista, era a vez do vice assumir. E o vice, para horror da direitista UDN e da imprensa que a secundava, era o herdeiro político de Getúlio, seu antípoda político. Barrada a tentativa de travar a posse do sucessor legítimo pela via das armas – evento superlativo da vida do então governador Leonel Brizola com a Campanha da Legalidade – o conservadorismo nacional desatou a conspirar.
Quando o Brasil ingressou em 1962, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), fundado pelo coronel Golbery do Couto e Silva e futura eminência parda da ditadura – o “Satânico Dr. Go”, como era nomeado pelas costas — operava havia um mês. Recebia dinheiro de empresários brasileiros e dos EUA e da própria Casa Branca, via o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, que sempre manteve estreito contato com a conspiração. Dos 36 diretores da poderosa Federação das Indústrias/SP (FIESP), nada menos do que 26 frequentavam o bunker golpista do Ipes. Além de grampear milhares de telefones e agitar os quartéis com seus boletins, o Ipes cobria o país plantando 500 artigos/mês nos jornais. Seu objetivo era o golpe.
Toda a mídia empresarial, com exceção da Última Hora, seguiria, minúcias à parte, na mesma toada. O diário da família Marinho, por exemplo, funcionou como um aríete diário contra o trabalhismo, suas propostas de reformas de base, seus aliados entre estudantes e trabalhadores, sua política interna e exterior. Agita-se então o fantasma do comunismo para demonizar o governo supostamente devorado pela subversão e a corrupção. Folheado 54 anos mais tarde, O Globo de 1962 surge como um agitprop, um panfleto rudimentar de agitação e propaganda americanófila, anticomunista e antitrabalhista. Comparado ao jornal de hoje, é formalmente tosco. Mas, no seu conteúdo, permanece muito semelhante na visão de país e mundo. E de método.
Adjetivadas, extensas, solenes, até grotescas, suas manchetes de capa marcharam contra o reformismo de Jango. Até o 31 de março de 1964, quando, meia volta-volver, marchariam durante 21 anos a favor da ditadura. Cinquenta delas, todas de 1962, estão abaixo:
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1) “Comício de desagravo da UNE degenerou em insultos e pregação subversiva” (10/01/1962)
2)“O governador acusa a UNE de ser órgão subversivo e condena o terrorismo” (10/01/1962)
3) “Cem milhões de prejuízo por dia com a greve da Petrobrás” (10/01/1962)
4) “Libelo da Comissão Interamericana de Paz contra o regime cubano” (18/01/1962)
5) “O governador gaúcho incita à rebelião! (25/01/1962)
6) “O regime de Cuba é incompatível com o sistema americano” (25/01/1962)
7) “Senador gaúcho acusa Brizola de estimular a invasão de propriedades” (30/01/1962)
8) “Líderes ferroviários articulam movimento subversivo para fazer do Brasil uma nova Cuba”(30/01/1962)
9) “Preocupa nossa embaixada nos EUA a expropriação da Telefonica” (03/03/1962)
10) “Errou o Brasil ao defender condição especial para Cuba” (10/03/1962)
11) “Vai ser apurada a denúncia do cardeal sobre dominação comunista no meio marítimo” (07/05/1962)
12) “A familia é o primeiro baluarte que se opõe aos totalitarismos” (30/05/1962)
13) “Exército, Marinha e Aeronáutica revelarão o perigo que pesa sobre a nação” (01/06/1962)
14) “Inquieta os arcebispos a ação subversiva da UNE, revela o cardeal Dom Jaime” (02/06/1962)
15) “Os comunistas adotam um sistema definido para a tomada do poder: dividir e usurpar” (03/06/1962)
16) “O ministro da Aeronáutica revela: há sintomas da ação comunista no país” (04/06/1962)
17) “Dom Jaime é o líder espiritual no combate contra o comunismo” (07/06/1962)
18) “Considerado desastroso para o país um 13º mês de salário” (26/04/1962)
19) “Agora, o sr. San Tiago Dantas preconiza o reconhecimento do Partido Comunista” (08/06/1962)
20) “Repulsa geral ao pronunciamento do chanceler San Tiago Dantas” (09/06/1962)
21) “Infiltração comunista através da doação de livros às escolas” (15/06/1962)
22)“Cálculos de votos apontam a derrota de San Tiago Dantas (26/06/1962)
23) “Padre Vidigal: a salvação está rejeição do nome de San Tiago” (26/06/1962)
24) “As bancadas ratificam a rejeição a San Tiago” (27/06/1962)
25) “San Tiago rejeitado pela Câmara dos Deputado como primeiro-ministro” (28/06/1962)
26) “Todos os países comunistas, inclusive a Rússia, devem dinheiro ao Brasil” (12/07/1962)
27) “Ação desagregadora dos comunistas no congresso da UNE em Quitandinha” (23/07/1962)
28) “O comunismo é o grande mal que nos ameaça, advertem os cardeais do Rio e da Bahia”(28/07/1962)
29) “Estudantes paulistas disposto a apoiar o repúdio contra a UNE e a UEE” (01/08/1962)
30) “Alastra-se a reação dos estudantes contra a UNE” (02/08/1962)
31) “Os comunistas ameaçam deflagrar nova greve geral em todo o país” (03/08/1962)
32) “União Nacional dos Extremistas” (06/08/1962)
33) “Deputado diz que o governo deseja esmagar a autonomia universitária” (06/08/1962)
34) “Solidifica-se na Câmara a reação contra a antecipação do plebiscito” (07/08/1962)
35)”Prepara-se no Brasil a implantação da ditadura” (08/08/1962)
36) “Brizola vai pedir a extinção da embaixada americana no Brasil e da nossa nos EUA” (02/09/1962)
37) “Se Dante fosse a Cuba hoje escreveria um novo Inferno” (04/09/1962)
38) “Lacerda pede ajuda do povo para a obra da honra e da liberdade” (25/09/1962)
39) “Comunistas provocaram novas desordens na Central do Brasil” (27/09/1962)
40) “Chefes cristãos fazem apelo aos eleitores do Rio por Deus, pelo Brasil, pela democracia”(01/10/1962)
41) “Os democratas encerraram a campanha apontando Lacerda para presidente” (05/10/1962)
42) “A mulher brasileira denuncia: livros subversivos nos colégios (09/10/1962)
43) “O exército não será respeitado sempre que se deixar misturar com os agentes da agitação”(07/11/1962)
44) “Amaral Neto: Brizola fez campanha a custa de dinheiro roubado do IRGA” (12/12/1962)
45) “O arroz gaúcho se transformou em fonte de corrupção e arma política” (12/12/1962)
46) “A polícia descobre plano de rebelião em todo o país marcado para janeiro” (18/12/1962)
47) “Apoiando Portugal na ONU o Brasil estará defendendo os seus próprios interesses” (18/12/1962)
48) “Alarmados os EUA com os rumos da política exterior do Brasil” (20/12/1962)
49) “O Congresso cometeu crime de lesa-pátria ao aprovar a lei da remessa de lucros” (22/12/1962)
50) “Falcão denuncia plano subversivo coordenado por Brizola e Julião” (28/12/1962)
Obs.- No ítem 5,o governador gaúcho é, claro, Leonel Brizola. No 11, o cardeal é o retrógrado Dom Jaime Câmara, do Rio, fonte cotidiana de O Globo. No 18, trata-se de Francisco de San Tiago Dantas, egresso do integralismo, chanceler e um dos autores da Política Externa Independente (PEI) adotada pelo país ainda no periodo Jânio Quadros. Deputado pelo PSD, Padre Vidigal (item 23) pertencia à ala conservadora na Igreja Católica. Figurando no ítem 44, Amaral Neto, foi repórter e deputado da UDN. E, depois, autor de reportagens que enalteciam a ditadura. D`O Pasquim ganharia a alcunha de “Amoral Nato”. No 47, percebe-se a postura do diário dos Marinho a favor do colonialismo português na África, apesar da condenação do Brasil e de grande parte da comunidade internacional. No 49, a Lei sobre a Remessa de Lucros — aprovada pelo Congresso em 1962 mas somente sancionada por Jango dois meses antes de sua deposição — impunha às empresas estrangeiras reinvestir no Brasil o lucro que aqui obtinham. Foi combatida ferozmente pela oposição e a mídia a ela associada. No 50, Falcão é o deputado do PSD, Armando Falcão, mais tarde ministro da justiça sob o regime militar. Cita-se ainda Francisco Julião, advogado e mentor das Ligas Camponesas.
Quanto às manchetes elas são, quase sempre o primeiro ou o segundo destaque da primeira página. Por absoluta impossibilidade de manuseio, desprezou-se o farto material das páginas interiores, editoriais, colunas e artigos.
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Ayrton Centeno é jornalista.
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