Em entrevista, Maria Rita Kehl fala sobre sua pesquisa em relação à construção da Rede Globo e o papel que a mídia tem no cenário político atual.
Eduardo Sá - fazendomedia.org // www.cartamaior.com.br
Autora de diversos livros, a psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl é também conhecida por suas análises críticas aos meios de comunicação no Brasil. Atuou durante a ditadura militar em mídias alternativas, como o jornal Movimento, e já passou por alguns veículos tradicionais. Venceu o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria “Educação, Psicologia e Psicanálise” em 2010. Neste mesmo ano escreveu um artigo em sua coluna no jornal Estado de São Paulo, que lhe rendeu uma demissão por divergência política à linha editorial da empresa.
Conversamos com Maria Rita durante o I Festival Internacional da Utopia, que ocorreu no final de junho em Maricá, no Rio de Janeiro. O evento reuniu movimentos sociais, jovens, intelectuais, artistas, dentre outros setores da sociedade civil, para analisar a atual crise política no país e no mundo e debater alternativas ao modelo hegemônico de desenvolvimento.
Na entrevista ao Fazendo Media, ela fala sobre sua pesquisa em relação à construção da Rede Globo de Televisão e o papel que a mídia tem no cenário político atual. Segundo ela, a Globo é coerente ao seguir desde a ditadura militar uma linha parcial que não visibiliza movimentos sociais mais radicais.
O que te motivou a fazer uma pesquisa sobre a construção da Rede Globo de televisão e quais foram suas constatações?
A minha motivação foi uma coisa muito pessoal da minha trajetória. Nos anos 70 eu morava em comunidade e não tinha televisão, e foi o período que depois vi a expansão da Rede Globo. Nessa época a televisão era uma coisa pontual muito interessante, a família via, tinha desenhos animados, poucos programas brasileiros, e durante uns 6 anos eu via muito pouco só quando ia a casa dos meus pais. E quando comecei a ver a Globo, que foi o período em que ela cresceu, quando chegava na casa da minha mãe e tinha uma novela passando durante o jantar falava: nossa, a televisão está ganhando um carisma, um poder de atração. Virou um assunto que até então não tinha sido, como foi o rádio talvez nos anos 40.
Passei a escrever num pequeno jornal de bairro uma coluna semanal com comentários de televisão. Mas de uma forma crítica, porque até então tinha uma comentarista que era quase uma coluna social da televisão. Quando comecei a ver então as novelas da Globo, a das 20h que eu tinha tempo de ver, vi que aquilo tinha uma força de atração e um impacto cultural gigantesco. Fiquei mais impressionada ainda quando fui morar noutra comunidade que tinha uma televisão na casa, e estava passando a novela Dancing Days, em 1978. Tinha alguns amigos argentinos, que tinham vindo refugiados porque eram de esquerda da luta armada, e na hora dessa novela parava a casa e todo mundo ia ver.
Passei a me interessar pela Globo especificamente, porque tinha uma programação muito inteligente no sentido que podemos dizer maquiavélico: o que fazer em cada horário para cada público, etc. Nessa época o Adauto Novaes, filósofo que foi por muito tempo diretor do Núcleo de Pesquisas da Funarte, pegou uma verba para fazer grupos de estudos do Brasil. Teve o primeiro chamado Nacional e Popular, que eu não participei, e depois veio outro sobre a cultura brasileira na década de 70. Então tinham críticos falando sobre cinema, teatro, literatura, poesia, música popular, e eu fui chamada para um grupo sobre televisão. Fiquei com a Globo, então entrevistei o Daniel Filho, o Mauro Salles, então diretor de publicidade, e um monte de gente. Fui vendo essa conexão da televisão com a publicidade, e fazendo a programação para os horários em que se pode vender. E depois lendo alguns depoimentos que a Funarte já tinha de executivos da Globo, eles indo discutir seu projeto na Escola Superior de Guerra explicando porque era importante que a televisão transmitisse sua programação em Rede. Atingir o Brasil inteiro, e nesse momento se fez a Rede Embratel que unificou. Minha pesquisa chamou “Um só povo, um só país, uma só nação e uma só TV”, então a Globo teve esse papel durante a ditadura de criar uma imagem interna para o Brasil. De um país moderno, uma boa dramaturgia, desenvolvido, etc. Ela usou até elementos do cinema novo, para ter uma ideia de como eles eram brilhantes nessa coisa de trazer para si o melhor e transformar em outra coisa.
Além do impacto cultural, como se deu essa questão política?
Era formar uma imagem positiva do país em plena ditadura, se tornar um assunto mais importante que a própria política. Não tinha propaganda política, eles passavam aquelas coisas do “Brasil, ame-o ou deixe-o” e outras coisas, mas não era isso. Era algo muito mais sutil e inteligente.
Teve a TV Tupi, a Excelsior, a própria Rede Record, dentre outras. Por que a Globo conquistou esse protagonismo, e como ela cresceu tanto em tão pouco tempo?
Acho que é porque ela tinha um projeto mais inteligente, do ponto de vista mais moderno mesmo. E porque foi a primeira a ocupar a Rede Embratel, então não tinha para ninguém. Hoje todas ocupam, e ela foi a primeira porque se mostrou muito afinada com o projeto cultural dos governos militares.
E como o jornalismo da Globo se encaixa nessa grade e narrativa?
Eu estava pesquisando as telenovelas, especificamente. Não sou mais crítica de televisão, e acompanho hoje como telespectadora. O que vale lembrar de importante é que o jornalismo da Globo fez com que o presidente Médici, o mais violento da ditadura, tenha dito uma vez: quando eu volto da minha jornada de trabalho e ligo o Jornal Nacional em casa, vejo que esse país é uma ilha de paz e tranquilidade. Isso em pleno 1973, o ano mais violento da repressão.
E como é o papel da Rede Globo hoje no cenário político?
Ela tem o mesmo papel, ela é coerente. Acomoda as contradições, não omite totalmente o outro lado porque ela justamente tem credibilidade se de alguma forma der espaço ao outro lado. Mas essa alguma forma, evidentemente ela escolhe o que pegar, então a inteligência no sentido midiático é criar uma espécie de confiabilidade porque se ela não mostrar nada… Agora, o que é pequeno ela não mostra. Muitas coisas como o MST que, por exemplo, só aparece na Globo quando invade fazendas de gente importante. O MST não existe, o que é um outro jeito também de você ser político. Movimentos realmente radicais não existem.
No mesmo dia que teve manifestação pró e contra Dilma, já não digo como pesquisadora e sim uma impressão, quando eram as manifestações contra ela fechava mais então você não sabia qual era a borda. Não dava para saber que a manifestação vermelha era muito maior que a azul, ela fechava na área mais concentrada da azul e focava na mais rarefeita da vermelha. E dava as estimativas da Polícia Militar, que nós sabemos como são, então é isso: totalmente parcial. A mídia certamente foi a favor desse golpe, e na hora que começar a ficar ruim ela vai sair fora. Se o governo Temer começar a ficar muito impopular, ela começa a criticar. Agora o Eduardo Cunha sai nos noticiários, por exemplo. Não é porque eles eram a favor do Cunha, mas não queriam comprar essa briga. Agora veem que dá Ibope e põem no noticiário.
Créditos da foto: Boitempo
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