O governo interino foi obrigado a reconhecer o óbvio: que não tem como resolver um quadro tão complicado somente com os ímpetos voluntaristas.
Paulo Kliass* // www.cartamaior.com.br
Como o imaginário coletivo da memória política tupiniquim costuma ser muito frágil, vale a pena recuperarmos aqui alguns momentos recentes de lapsos imperdoáveis. Trata-se dos primeiros rascunhos dos elementos centrais da narrativa construída para justificar as ações visando o golpeachment atualmente em marcha.
Vou me permitir nem entrar por ora no departamento das denúncias de corrupção. Tudo se passava como se os falsos moralizadores de plantão viessem a promover um súbito e definitivo saneamento nas relações promíscuas entre o setor privado e os quadros dirigentes da administração pública federal. Longe de mim a postura de compactuar com qualquer prática que rompa os critérios da ética ou da legalidade no trato da coisa pública. No entanto, a listagem dos denunciados e indiciados parece ter sido nitidamente ampliada a partir da posse do governo interino.
Mas o que interessa aqui é acentuar a natureza hipócrita e oportunista da crítica à política econômica implementada pelo governo da Presidenta Dilma, uma das bases de fundamentação do movimento putschista. Todos devemos nos recordar da forma pela qual os órgãos de comunicação tratavam as medidas tomadas por sua equipe, não chegando nem mesmo a poupar a figura de um dos queridinhos do financismo, Joaquim Levy.
Metralhadora giratória do financismo.
Estávamos frente a uma verdadeira metralhadora giratória inesgotável em sua munição, buscando destruir toda e qualquer iniciativa no campo da economia. Pouco importava que a equipe estivesse rezando pela cartilha da ortodoxia e do conservadorismo, em sua tentativa mal sucedida de tentar ser mais realista do que o rei. Ainda que possa soar como contraditório, o fato é que a estratégia permanente de desgaste e desconstrução da imagem das autoridades pesava mais do que os resultados da política posta em ação.
Afinal, os lucros dos bancos nunca deixaram de ser bilionários ao longo do período e a meta de superávit primário foi disciplinadamente sendo aplicada ao longo de todos esses anos. A opção pelo tripé da política macroeconômica foi mantida e reforçada, com a consequente política monetária de juros oficiais estratosféricos. O patamar da SELIC nos assegurou a posição de campeão mundial da taxa de juros por anos em sequência. A privatização de importantes segmentos da infraestrutura foi colocada em movimento, bem como o crescimento do setor privado em setores estratégicos da política social, como saúde e educação.
Mas as manchetes dos jornais, revistas e noticiários de rádio/tv/internet apenas se interessavam por ressaltar os números negativos associados a inflação, déficit público, aumentos salariais ditos demagógicos, aumento da dívida pública e por aí vai. A natureza ideológica da crítica se confundia com os aspectos políticos da necessidade de corroer as bases de sustentação do governo. Assim, os adeptos do mundo das finanças criaram um novo conceito, que passou a ser chamado de “nova matriz econômica”. A multiplicação instantânea e insistente desse rótulo vazio de conteúdo pelo universo das comunicações fez com que algumas das mudanças em marcha no próprio establishment do chamado mundo desenvolvido fossem tratadas como “pérolas do bolivarianismo” quando aplicadas aqui em nossas terras.
Governo interino: mudança de tom.
Assim, a crítica aos aspectos de incompetência e equívocos das equipes de Dilma se confundia com as críticas às opções por um modelo que insistia na trilha do desenvolvimento e ainda buscava manter as marcas de redução das desigualdades e de promoção do bem estar. O discurso nas páginas de economia despontava uníssono. O governo era estatista e intervencionista. E ponto final. O governo se recusava a cumprir as lições de casa para manter o equilíbrio macroeconômico. E ponto final.
Depois de tanta insistência e promoção de desgaste, a cereja do bolo veio com o aprofundamento da crise política e o aumento da impopularidade da Presidenta. Foi quando os articuladores da manobra golpista perceberam oportunidade tanto buscada. Garimparam bastante até encontrar o espaço para espalhar a farsa das pedaladas fiscais como argumento fatal para o impeachment.
O contraponto na política estava no Palácio do Jaburu e era apresentado como a verdadeira redenção prometida pelo governo interino. A chegada de Temer foi saudada de forma quase unânime pelos meios de comunicação como a panaceia para todos os males do Brasil. Afinal, seria a oportunidade de ouro para a turma do financismo. Chegariam ao poder sem ter obtido um único voto nas urnas e colocariam em marcha um programa de governo que o povo havia derrotado sucessivamente em 2002, 2006, 2010 e 2014.
Ocorre que a realidade é bem mais complexa do que simplesmente promover o afastamento da mandatária de forma ilegítima e colocar a fina flor do financismo oferecido pelo tucanato em postos chaves do governo. Mas a torcida uniformizada de quem deveria informar de maneira isenta revela-se ainda mais declarada. E a partir de então, as mesmas notícias da economia continuam a se repetir ou mesmo se aprofundar. A diferença reside justamente na hipocrisia com que a maior parte dos comentaristas trata dos assuntos. O que antes era desqualificado com toda a sorte de xingamentos, agora passa merecer um tratamento cerimonioso de “estão tentando”, “é difícil”, “a equipe é competente, mas o Congresso não colabora” e por aí vai.
A situação se agrava e a crítica desaparece.
A inflação? Continua bem acima do teto da meta e a crítica sumiu. A taxa SELIC? Não se alterou e as manchetes nem cobram. Os spreads dos bancos? Continuam a bater recordes atrás de recordes e a imprensa segue condescendente. O desemprego? Continua crescendo e os órgãos de comunicação preferem falar dos Jogos Olímpicos. A recessão em 2016 vai continuar na mesma toada? Pois as matérias oficialistas saúdam o fato de que as previsões passam de uma queda 4% do PIB para “apenas” 3,6% anuais.
E o mais surpreendente refere-se ao tratamento conferido à questão da tão propalada “responsabilidade fiscal”. O governo interino finalmente foi obrigado a reconhecer o óbvio: que não tem como resolver um quadro tão complicado das contas públicas tão somente com os ímpetos voluntaristas, como bradavam seus porta-vozes até a antevéspera do golpe. E assim, tudo aquilo que era antes taxado como “irresponsabilidade bolivariana” transforma-se agora carinhosamente em “dificuldades associadas à gravidade do quadro fiscal”.
Dilma corre o sério risco de ser afastada de forma definitiva por ter recorrido a práticas usuais de adiantamentos orçamentários, nada que houvesse infringido um milímetro sequer a legalidade da matéria. O argumento central permanece sendo o da irresponsabilidade no equacionamento dos desequilíbrios nas contas públicas. No entanto, essa mesma grande imprensa demonstra toda a sua compreensão e generosidade para com Michel Temer, quando ele anuncia um déficit fiscal de R$ 170 bilhões para esse ano. Imagino qual não teria sido a bomba estraçalhadora, caso fosse Dilma a anunciar tal “meta”.
Não contente em empurrar com a barriga o mesmo quadro deficitário, que antes era considerado catastrófico, a equipe de Meirelles e Goldfajn propõe que a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2017 contenha também uma previsão de R$ 143 bi de déficit nas contas públicas. Claramente confrontados a um escandaloso “estelionato impeachmental”, os órgãos de comunicação ainda realizam complicadas operações de contorcionismo retórico e buscam preservar a equipe composta por quadros do Bank of Boston e do Banco Itaú.
Período de trégua e preparação das maldades.
Na verdade, tanto o governo quanto a imprensa pegam carona na contradição que causa desconforto e aproveitam para alardear a inevitabilidade de reforma da previdência para reduzir direitos e de mudanças na Constituição para estabelecer metas de despesas com a área social. Tudo isso muito bem acompanhado pela redução dos reajustes no salário mínimo. Não obstante, segue o mesmo silêncio sepulcral quanto à conta mais gastadora do orçamento da União: juros e despesas financeiras.
Para fechar o ciclo do oportunismo declarado, os jornais tentam poupar de críticas o governo pelos aumentos nos gastos públicos derivados das negociações com os Estados da federação e com os reajustes salariais concedidos aos funcionários públicos. Afinal, tudo isso não passaria de um sofrimento necessário, em razão dos desajustes das políticas da época de Dilma.
Enfim, percebe-se que a gritaria toda do período anterior era mera cortina de fumaça para estimular e justificar a mudança de governo. Agora, trata-se de esperar pela confirmação do afastamento em agosto, pelas eleições de outubro e aí, sim, iniciar os verdadeiros processos de desmonte do Estado e de privatização pelos quais o financismo tanto aguarda, de forma tão ansiosa quanto gananciosa. Temer já as chamou de “medidas impopulares”.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Créditos da foto: Lula Marques
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