quarta-feira, 13 de julho de 2016

A lei do Mercado: não pense, trabalhe!

No filme La Loi du Marché, o personagem de Thierry engrossa o caldo do drama da recessão econômica em países com índices de desemprego crescentes.

Léa Maria Aarão Reis - umacoisaeoutra.com.br //www.cartamaior.com.br
‘’Trabalhar é apenas um detalhe na vida do indivíduo,’’ diz o diretor de Recursos Humanos da empresa, durante a reunião com os funcionários do supermercado. Ele omite que o trabalho, no pós-capitalismo, na sociedade de massas selvagem e competitiva e no regime neoliberal, funciona como máquina de triturar seres humanos. Mói a carne e a mente dos indivíduos. O problema é que fora dela, cada vez mais, parece não haver sobrevivência - ou salvação – com a ameaça permanente de ser posto à margem do sistema.
A reunião dos funcionários com o chefe de RH que procura tranquilizá-los a respeito do suicídio recente de uma colega no local do trabalho está no excelente filme de Stephane Brizé, La Loi duMarché(2015), motivo de polêmicas na França onde estreou logo após o Festival de Cannes do ano passado e deu ao protagonista, Vincent Lindon - uma das estrelas atuais do cinema francês-, a Palma de Ouro de Melhor Ator.

Aqui, lançado mês passado meio em segredo, este quase documentário, rigoroso no seu realismo quase de microscópio, como querem alguns críticos, ganhou o título traduzido do inglês: O valor de um homem.

O personagem do protagonista Thierry é exemplar e engrossa o caldo do drama da recessão econômica em países com índices de desemprego crescentes – como ocorre no Brasil. Thierry tem 52 anos, ainda é moço para se aposentar e já é velho para reingressar no mercado e ser aceito de modo a poder prosseguir a carreira onde é competente e tem experiência. 

Ele acaba de ser demitido numa operação de ‘flexibilidade’ dos custos da empresa. É um operário qualificado, um técnico, e pertence à sólida classe média dos trabalhadores europeus especializados. Casado, é pai de um adolescente com necessidades especiais. Paga as parcelas da casa própria, tem um carro velho que volta e meia o deixa na mão, na rua, e um trailer numcamping, a sua casa de veraneio na beira do mar. Vive, com a família, com dignidade e modesto conforto.

Na primeira metade do filme, Thierry discute com colegas sindicalistas. É um diálogo inicial que segue a tendência de outras produções recentes, de crítica às distorções crescentes do neo-capitalismo, o chamado ‘cinema de crise’ – como As Neves do Kilimanjaro, de Robert Guédiguian, eDois Dias, Uma Noite, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. 
Em conversa com companheiros desempregados, ele resiste à ideia de acompanhá-los levando adiante uma batalha judicial coletiva contra os antigos patrões. As necessidades de sobrevivência da sua família são urgentes. Na conversa, se insinua a ruptura institucional e afetiva dos laços de classe.

Para Brizé, no seu filme humanista, (ele não é um economista), a resistência possível está centrada no indivíduo.

Thierry conversa com o banco onde é correntista para conhecer detalhes de um eventual empréstimo; é entrevistado em diversas empresas e procura novo emprego num mercado de trabalho estagnado como é o da França, atualmente acossado por uma nova lei trabalhista que promete ser mais restrita.

Na segunda parte, a lei do mercado se funde à lei moral. Thierry vende o trailer, é contratado, com salário menor que o anterior, como supervisor de segurança num supermercado. Por força da nova atividade é obrigado a participar de sessões humilhantes que pretendem desmascarar pequenos ladrões de ocasião da grande loja – um velho, um malandro de rua, uma funcionária caixa do mercado, que rouba cartões de descontos. 
Todos os clientes são monitorados por câmeras ocultas vigiadas dia e noite pela segurança do supermercado como se fossem jogadores num cassino. E, este é o aspecto repugnante: como ladrões potenciais.

O jornal de esquerda The Guardian pôs lenha na fogueira das polêmicas que se seguiram à exibição de La loi du marché observando que ele ‘’pretende considerar as transgressões como crimes sem vítima, sendo totalmente aceitável roubar no emprego; é condescendente para com os clientes e empregados que roubam.” Lembra outro cineasta, o inglês Ken Loach, veterano e mestre de filmes críticos ao capitalismo que também lançou seu mais recente trabalho sobre os reflexos desumanos da crise econômica na Inglaterra, ano passado, em Cannes: I, Daniel Blake. *


Na verdade, o que Brizé mostra é a força acachapante de um sistema que pune as mínimas transgressões com a humilhação indiscriminada infligida aos mais frágeis. 


Faz um retrato lancinante, porém sereno, de Thierry, um autêntico blue collar, legítimo e nobre representante da classe operária. Desempregado, a sua preocupação básica é colocar comida na mesa da família e continuar mantendo a educação especial do filho. Para tal, ele aceita e se submete a uma ocupação abaixo de suas possibilidades profissionais.


Sem apelar para o drama, são tocantes as sequências do seu lazer, com a mulher, aprendendo a dançar na academia, e, em casa, com ela e filho, os três dançando na pequena sala de jantar depois de enrolar o tapete. Alusão à sua resistência para não embrutecer.

O próximo filme de Brizé a ser lançado ainda este ano é Une Vie, adaptação de Guy de Maupassant. Assim como em A lei do mercado ele mostra como a vida pode ser brutal sob a égide do capitalismo das corporações. Neste O valor de um homem o diretor reflete e faz o espectador segui-lo indagando qual o preço que um indivíduo está disposto a pagar para manter intato o orgulho de ser ele mesmo. Quanto custa o seu amor próprio sob a lei do mercado e da moral.

O filme do francês nos obriga lembrar a exortação do presidente provisório e interino do Brasil, em uma das suas mais lamentáveis falas, cerca de dois meses atrás, logo após o assalto ao Palácio do Planalto: não pense; trabalhe, foi sua espantosa recomendação ao trabalhador brasileiro.
Nas ruas, os Thierry daqui respondem lutando contra o assalto e o golpe.

*Ainda não lançado no Brasil.


Créditos da foto: reprodução

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