Patricia Faermann // http://jornalggn.com.br/
Jornal GGN - Secretário de Cooperação Jurídica Internacional e uma das peças-chave da troca de informações da Operação Lava Jato com outros países, em assessoria direta ao procurador-geral da República, Vladimir Barros Aras não poderia falar sobre a Lava Jato em entrevista cedida ao GGN. A recomendação da PGR se estendeu à jornalista, avisada que perguntas desse tema não seriam respondidas.
A sequência de questionamentos feitos ao procurador, com vasta e nominável bibliografia em Direito Internacional e Comparado, sobretudo nos tratados e convenções globais dos quais o Brasil é signatário, foi relativo a pontos polêmicos em voga no mundo jurídico, mas motivados pelas críticas à Operação que teve o centro na Vara Federal de Curitiba: o limite de atuação de um juiz e de uma equipe de investigação, o direito de ampla defesa, a autoincriminação e a independência entre investigadores e juízes.
Assim, os temas abordados fizeram pontes, sempre, com o que a jurisprudência internacional e o que de mais avançado o Direito Penal nos ensina. Mas a comparação das respostas com as medidas adotadas especificamente pela equipe de Sergio Moro, no Paraná, é livre pelo leitor.
Aras defende a reforma no sistema penal brasileiro, considera que estamos muito atrasados, em comparação a outros países no mundo, e que o principal problema são os resquícios deixados pelo sistema inquisitivo, do período medieval. Desde a falta de garantias a vítimas e acusados, até a forma como são conduzidos os processos, o procurador considera que há muito a ser superado.
"O processo penal garantista, na percepção de Luigi Ferrajoli, e dos organismos internacionais que trabalham a respeito - a União Europeia, o Conselho da Europa, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Costa Rica, a Corte Europeia de Trasburgo, e também da ONU, se olhar as Regras de Havana, de 1990 -, sempre vamos ter uma orientação no Direito Comparado Internacional de que um processo penal democrático legítimo é o que considera os interesses do acusado, como a presunção de inocência, o direito a defesa, o contraditório pleno, o direito do recurso, o direito de não se autoincriminar, como também os direitos das vítimas a uma justiça pronta, que observe aos seus interesses e da sociedade, que espera que os inocentes sejam inocentados e que os culpados sejam punidos, e não que se livrem pela prescrição, com o decurso do tempo ou por manobras inversionistas", resumiu.
Para o procurador, as várias tentativas de reformas somadas até o momento para o avanço do tema, como o Projeto de Lei 8045/2010, ainda tramitando na Câmara, mostram que "há uma preocupação tanto do Legislativo, quanto da Academia, de professores de processo penal", mas que, "ainda assim, as mudanças todas esperadas não foram feitas".
"Obviamente não há um consenso em tudo, mas não seria pretensioso dizer que existe um consenso de que nós precisamos de mudanças. Agora, os sentidos dessas mudanças elas podem variar de acordo com a visão de mundo de cada uma dessas autoridades e profissionais que atuam nesses campos do processo penal na fase da investigação, na fase do processo e na fase da execução penal, sejam como advogados, defensores, juízes, promotores e procuradores da República", disse, admitindo que há outras visões contrárias às mudanças do sistema.
Amplo direito de defesa
"O binômio que observe as garantias internacionalmente consideradas é um processo penal que não maltrata o acusado, não viola os direitos fundamentais do investigado, que respeita as vítimas e que compreende as aspirações da sociedade, as que são legítimas", defendeu o procurador.
Entre os direitos de vítimas e acusados, Aras acredita que o sistema penal brasileiros está atrasado. Além do amplo direito de defesa, as próprias condenações precisam ser reavaliadas, aponta.
"Aquele que cometeu o ilícito ser punido não significa ir preso, mas ser punido proporcionalmente, de acordo com a gravidade do crime. Há certos crimes que podem ser tranquilamente cumpridos com penas alternativas, não privativas de liberdade. Todavia, há outros que não dispensam regimes fechados ou semiaberto, porque são violentos e infelizmente ainda não há outra solução. As prisões, por outro lado, também devem corresponder às aspirações de um sistema prisional humanitário, que não trate os detentos como coisas. Não podemos mais ter masmorras", criticou.
Direito de não se autoincriminar
Uma das garantias de um investigado em um processo penal compreende a não autoincriminação. Em maior escala, o exemplo mais conhecido para forçar confissões é a tortura. Apontadas nas convenções internacionais, especialmente na das Nações Unidas, mas também na Convenção Americana dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o uso de atos cruéis, degradantes e desumanos como instrumento para conseguir informações para a condenação é repudiada.
Mas foi o sistema penal britânico que trouxe o conceito de direito de não se autoincriminar para as culturas ocidentais, explicou Aras, tornando-se depois uma garantia universal reconhecida na Declaração Universais dos Direitos e nos Tratados, chegando às Constituições de cada país e aos Códigos de Processo Penal.
Trata-se de um direito "para impedir que uma pessoa seja torturada para cooperar com o Estado". "Ninguém pode ser torturado para que o Estado, o Ministério Público, a Polícia ou o Juiz obtenha confissão', resumiu o procurador.
"Essa é uma garantia nítida, muito nítida no sistema acusatório. Há muitos anos, eu diria séculos, os sistemas acusatórios já têm essa garantia consagrada. Nos modelos inquisitivos ou inquisitoriais que se inspiraram muito fortemente num modelo da Santa Inquisição, dos modelos derivados do processo do Santo Ofício, não tinham essa garantia", continuou.
A Rainha das Provas
O objetivo desse tipo de violação de direitos do investigado é alcançar o que Vladimir Aras descreveu como "a rainha das provas", que é a confissão. Ainda que sem provas materiais da prática do crime, quando alguém admite a autoria, pela simples declaração, o processo é fechado.
"O processo penal de tom inquisitorial se conformava com a simples e mera confissão e nada mais", disse. "Isso é uma nota dos modelos inquisitoriais, que se influenciaram pelo processo do Santo Ofício, que era usado naquele momento em que Direito e Religião, Estado e Igreja estavam muito unidos e os direitos fundamentais do acusado não eram considerados", completou.
"Se não há confissão, outros elementos de prova"
A tortura era praticada como forma de obter a confissão do crime. Mas, "se não há confissão para declarar, assinar um depoimento para obter uma informação que facilite um trabalho da investigação, quando se trata de alcançar outros elementos probatórios", contou.
Quando a realidade do Judiciário é enganosa, viola-se a defesa
Ao relatar o direito de não se autoincriminar, Vladimir Aras mencionou que casos de crimes de tortura não são registrados, por omissão do Estado, o que não resulta em estatísticas. A falta de estatísticas, por sua vez, motiva a inércia de ações contra a prática, simplesmente por aparentar que a violação não ocorre.
"Nós temos notícias de que essa prática ainda é utilizada em algumas partes do Brasil, por maus delegados, por maus policiais, mas infelizmente os números não refletem a necessidade de termos, realmente, uma investigação que respeite os direitos fundamentais de todos, e um processo penal em que não haja privações aos direitos da defesa, do acusado, de se defender plenamente perante os tribunais", disse.
A conclusão tirada com este que é um dos exemplos de violações ao direito do investigado e de defesa é que a omissão do Judiciário sobre as suas práticas ruins provoca a incapacidade de se superar, mantendo a ampla defesa em patamar sempre aquém das ferramentas, por outro lado, cada vez mais avançadas da Justiça para se conseguir informações em processos penais.
Separação: Investigador e Juiz
Como um dos resquícios do modelo inquisitivo, Vladimir Aras ressaltou que órgãos de investigação não podem "ter poderes de juiz", da mesma forma que juízes não podem fazer parte da fase investigativa do processo.
"Cada um na sua atribuição, cada um na sua posição constitucional da etapa consecutiva, justamente porque a atividade do juiz deve ser uma atividade imparcial, equidistante de quem investiga para de quem acusa e de quem defende, para que ele possa julgar com isenção a tese apresentada pela acusação, que é o Ministério Público Federal, a antítese, contraposição, os contra-argumentos, levados à consideração dele pela defesa ou pela defensoria pública. A fim de que, nessa posição, ele tenha a isenção e distanciamento suficiente para decidir em um sentido ou em outro", explicitou Aras.
Abusos não interessam à sociedade
O procurador afirmou que o distanciamento do magistrado é necessário, ainda, para se garantir a condução legal e legítima do processo. "No momento em que você permite que o juiz faça papel de Ministério Público ou faça papel de acusador, investigador, você está desvirtuando essa máxima do sistema acusatório", disse.
"Quando se permite desvios, esses desvios podem levar, de algum modo, a abusos e abusos ferem os direitos da defesa, da vítima, e essas lesões não interessam à sociedade, à Constituição, estão em desarmonia com os modelos dos Tratados Internacionais às quais o Estado Brasileiro deve obediência.
Juiz de garantias
É neste cenário que surge a figura do juiz de garantias, que é o oposto do juiz de instrução, explicou. Trata-se de um magistrado que atua especificamente nos pedidos dos procuradores e delegados que investigam um caso. É esse juiz - e não o próprio julgador - que tem a responsabilidade para autorizar mandados de prisões cautelares, temporárias e preventivas, buscas e apreensões, interceptação telefônica ou telemática, quebra de sigilos bancário e fiscal.
O papel desse magistrado é de atuar na instrução criminal, aguardando solicitações dos órgãos de investigação para dar aval ou não a medidas que dependem de autorização judicial. Segundo o procurador, é uma novidade do modelo puro do sistema acusatório, com o objetivo de se garantir ao magistrado julgador a isenção necessária, por não ter "conduzido" ou "dirigido" a investigação.
O que temos hoje no Brasil é que o tal juiz de garantias é o mesmo juiz que analisará o caso. E o posicionamento sobre qual dos dois modelos é o mais avançado enfrenta divergências doutrinárias. "Alguns acham que não precisa ser um juiz diferente, outros acham que sim", disse Vladimir Aras.
"Mas, de todo modo, é importante a existência dessa figura, para garantir justamente a isenção dos órgãos de julgamento mais adiante, para que na etapa investigatória não haja violação dos direitos do investigado, seja por abuso do Ministério Público, seja por violações praticadas pela polícia", afirmou.
Versus Juiz de instrução
Por outro lado, outra figura de magistrado já é considerado em "extinção no planeta", descreveu Aras. É o juiz de instrução, aquele que "conduz e dirige a investigação", participando de toda a etapa de apuração de um suposto crime.
O procurador afirma que no Brasil não existe mais essa imagem, sendo a etapa persecutória comandada pelo Ministério Público e Polícia Federal. Ainda fazendo-se presente na França e na Inglaterra, mas com grande resistência e "oposição de organizações jurídicas", o magistrado de instrução está, aos poucos, deixando de existir.
Quando questionado o fato de no Brasil juízes comandarem as investigações de procuradores da República e de delegados da polícia federal, nas chamadas "força-tarefa", o procurador que acompanha os desdobramentos da Lava Jato dentro da Procuradoria-Geral da República defendeu que o que temos é o juiz de garantias realizando o mesmo papel daquele que irá decidir sobre o processo.
"Mas o juiz sempre estará envolvido na fase de investigação", afirmou, ressaltando: "não como investigador, é importante deixar isso claro". "O juiz não é investigador, não conduz a investigação, ele apenas autoriza as medidas de investigação pedidas pela polícia e pelo Ministério Público", concluiu.
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