quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A cada Copa ou Olimpíada a seleção feminina de futebol é lembrada — para ser esquecida de novo

por : Kiko Nogueira // http://www.diariodocentrodomundo.com.br/

Publicado na DW.

A discrepância não poderia ser maior. Vaias, críticas pelo pífio desempenho nos últimos anos e jogadores de contratos milionários. Enquanto o futebol masculino segue colecionando resultados vexatórios, a torcida brasileira redescobriu a seleção feminina – uma equipe com algumas jogadoras que não participam de competições de clubes, que enfrentam preconceito de federações e da própria torcida, mas que está dando show com goleadas nos Jogos Olímpicos do Rio.
A estreia vitoriosa por 3 a 0 contra a seleção chinesa contou com a presença de mais de 27 mil torcedores. Na segunda partida, 43.384 pessoas empurraram Marta a cia. para a goleada por 5 a 1 contra a Suécia – público que seria o quarto maior do Campeonato Brasileiro de 2016. E no empate em 0 a 0 com a África do Sul, em Manaus, foram mais de 38 mil presentes.

É bem verdade que a seleção masculina atraiu mais torcedores na Rio 2016, mas com os dois empates sem gols com África do Sul e Iraque o descrédito é tamanho que nas arquibancadas ecoaram gritos pedindo por Marta. E uma foto de um garoto que riscou o nome de Neymar e escreveu o da craque brasileira viralizou na internet.

E, de repente, a seleção feminina se tornou a principal esperança de finalmente dar uma medalha de ouro ao futebol brasileiro. Mas este moral não corresponde à realidade do futebol feminino no Brasil, que sofre com falta de profissionalismo, com estádios vazios e com um anonimato quebrado somente com boas participações em Copas do Mundo e Jogos Olímpicos.

É possível dizer que mesmo o torcedor mais fanático teria problemas para reconhecer muitas jogadoras do elenco feminino – além, é claro, de Marta (cinco vezes Bola de Ouro da Fifa), Cristiane (maior artilheira da história dos Jogos) e a eterna Formiga (atleta brasileira que mais disputou Olimpíadas – seis).

Das 18 atletas convocadas pelo técnico Vadão, 13 atuam no exterior: quatro no futebol chinês; três nos EUA; duas na França e uma em Coreia do Sul, Dinamarca, Espanha e Suécia. E o restante? Fazem parte da seleção brasileira permanente, criada em 2015 pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) visando uma medalha olímpica.


No projeto, atletas são contratadas pela entidade para poderem se dedicar, exclusivamente, à equipe nacional. As jogadoras escolhidas têm toda a estrutura do centro de treinamento da Granja Comary à disposição, mas acabam sendo excluídas de quaisquer competições de clubes – medida que divide opiniões no Brasil.

Na época da criação, Vadão afirmou que o projeto fortalece a seleção e não prejudica os clubes. Mas Emily Lima, treinadora do São José, equipe campeã da Copa Libertadores e do Mundial em 2015, criticou a medida.

“Caso não venham os títulos, fracassou tanto o projeto com a seleção permanente quanto o desenvolvimento do futebol feminino nesses dois anos que os clubes ficaram sem atletas de seleção”, disse Lima, que perdeu cinco jogadoras para a seleção permanente.

Brasileirão de 4 meses e pouco público

A falta de visibilidade e do interesse do público brasileiro, o descaso de cartolas e a escassez de apoio da maioria dos grandes clubes de futebol parecem estar enraizados na cultura do futebol do Brasil – país que gosta de se autodenominar o “país do futebol”.

Mas já foi pior: desde 2013, as mulheres têm um Campeonato Brasileiro – que dura apenas quatro meses. A competição conta com 20 equipes, majoritariamente da região Sudeste. As oito equipes classificadas para a segunda fase participam de uma espécie de draft no estilo da NBA para distribuir as jogadoras da seleção permanente. Os campeões das quatro edições são Centro Olímpico, Ferroviária, Rio Preto e Flamengo.

Além do campeonato nacional, existe desde 1983 um torneio mata-mata atualmente denominado Copa do Brasil. Último campeão? Sociedade Esportiva Kindermann, de Santa Catarina. Os públicos destas competições raramente passam de mil torcedores.

Mas por que não tinha futebol feminino antes? Até 1979 estava em vigor um Decreto-Lei no Brasil, homologado em 1941 durante a presidência de Getúlio Vargas, que proibia a “prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina”. Futebol chegou a ser um deles.

A seleção brasileira feminina foi criada somente em 1986. Desde então, participou de todas as Copas do Mundo e torneio olímpicos. E logo, surgiram também os primeiros talentos, como a atacante Roseli, a meia Pretinha e Sissi, a primeira grande craque brasileira, antecessora de Marta.




Sissi e Marta, duas camisas dez que têm muitas semelhanças. Enquanto Sissi conduziu o Brasil para o primeiro pódio numa Copa do Mundo, a terceira colocação no Mundial de 1999 nos EUA, Marta levou a seleção às medalhas de prata em 2004 e 2008, além do vice-campeonato mundial de 2007. Ambas são canhotas e, assim como Marta durante o empate sem gols contra o Iraque de Neymar e cia., Sissi também teve sua escalação pedida para uma equipe masculina.

A quarta colocação nas Olimpíadas de 1996 chamou a atenção, e a Federação Paulista de Futebol (FPF) resolveu criar um Campeonato Paulista de Futebol Feminino. Sisleide do Amor Lima, a Sissi, foi para o São Paulo, numa época em que o time masculino vivia nas sombras dos rivais Corinthians e Palmeiras. No tempo em que Sissi esteve no São Paulo, o clube conquistou todos os títulos possíveis nos campeonatos femininos. Vendo o grande talento da jogadora, a torcida são-paulina criou o seguinte canto: “Muricy [Ramalho, treinador], coloca a Sissi”.

Assim como fez Sissi, Marta tem honrado a camisa dez. E isto há 12 anos. Em sua carreira, ela foi eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo (premiação que não existia nos tempos de Sissi), superou Pelé em gols marcados pela seleção brasileira e é reverenciada mundo afora.

Neste ínterim, muito pouco foi feito pelo futebol feminino no Brasil, seja pela cartolagem, pelo setor privado e pelo próprio torcedor brasileiro – que sonha com a volta dos áureos tempos gloriosos da seleção masculina e parece se lembrar apenas a cada quatro anos que futebol não é apenas coisa de homem.

Sobre o AutorDiretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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