Toda defesa escancarada de temas como tortura, estupro, homofobia, privatização do ensino e da saúde públicas já são em si derrotas infligidas à esquerda.
Martonio Mont'Alverne Barreto Lima; Vinícius Madureira Maia // www.cartamaior.com.br
“– Ousarei
Perturbar o universo?”
(T. S. Elliot)
Há que se dar contexto ao polêmico editorial de O Globo, do último dia 24/07/16, em que se proclama o fim do ensino público gratuito no Brasil, tido por “injusto” já desde o seu título.
“(...) Para combater uma crise nunca vista, necessita-se de ideias nunca aplicadas. Neste sentido, por que não aproveitar para acabar com o ensino superior gratuito, também um mecanismo de injustiça social? Pagará quem puder, receberá bolsa quem não tiver condições para tal. Funciona assim, e bem, no ensino privado. E em países avançados, com muito mais centros de excelência universitária que o Brasil. (...)”
Como tal notícia estaria ainda relacionada com o projeto de lei n° 193/2016, a definir a “Escola sem partido”? Trocando em miúdos, este PL objetiva proibir ao docente a realização de propaganda político-partidária em sala de aula e a incitação de seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas (art. 5°, inc. III)?
Em meados de 2010, quando o governo inglês promoveu um corte maciço no orçamento da educação superior, o então Ministro das Universidades e Ciências, David Willetts (político e teórico do tal “conservadorismo cívico”), foi a público defender, além da suspensão de bolsas concedidas a professores, a triplicação dos custos das anuidades para os estudantes britânicos –– sistema de taxação supostamente “mais justo” ––, insinuando ainda que todos os cursos de graduação seriam pagos muito em breve, à exceção das grades curriculares eminentemente STEM (science, technology, engineering and mathematics). Pouco meses depois, o mesmo Willetts presidiu a publicação do Lord Brownie’s Report, a qual, entre outras medidas, sinalizou cortes de até 80% no orçamento da educação do Reino Unido.
Ano passado, o próprio Ministro da Educação do Japão recomendou às 86 universidades nacionais a adoção urgente de medidas no sentido de abolir os currículos acadêmicos de ciências sociais e humanas em prol de áreas do conhecimento que contemplem o que seriam as reais necessidades da sociedade.
Para Martin McQuillan, a ideia subjacente é de que o Estado passará a não mais investir nessas áreas do conhecimento, e os indivíduos que queiram se dar o luxo de estudá-las deverão se contentar e pagar por elas (“The Privatisation of the Humanities”); é a própria privatização do “uso público da razão” kantiano, em grau abstrato.
Tais episódios se circunscrevem nas difusas consequências desencadeadas, no início do milênio, pela reforma do ensino superior da União Europeia a partir do Processo de Bolonha, cujo mote reside na pragmatização da especificidade do ensino, voltado à produção cada vez mais ampla de um conhecimento socialmente útil a uma rica gama de seekers (empresas, setor público, organizações sem fins lucrativos etc.), em detrimento da formação clássica dos cidadãos de outrora, hoje solversdotados de empregabilidade e internacionalmente competitivos, melhor apropriados na (e pela) dinâmica do capitalismo econômico global.
Não é com dificuldade que se encontram hoje os preceitos e objetivos bolonheses também aninhados entre as finalidades estatutárias das universidades brasileiras, UFC (art. 4°, alínea “d”) e UECE (art. 29, inc. V) inclusas, para citar aqui apenas as instituições de ensino superior de maior relevo para o público cearense.
Com quase um século de antecipação e a experiência e a autoridade precoce de quem também fora, aos 24 anos de idade, professor universitário catedrático, um reconhecido filósofo europeu denunciou o escândalo dessa “nova” perspectiva tectogógica:
“O inteiro sistema de educação superior da Alemanha perdeu o mais importante: o fim, assim como os meios para o fim. Esqueceu-se que educação, formação é o fim. (...) –– O que as “escolas superiores” da Alemanha realmente alcançam é um brutal adestramento, a fim de, com a menor perda possível de tempo, tornar útil, utilizável para o Estado um grande número de homens jovens. (...) –– A ninguém mais é dado, na Alemanha de hoje, proporcionar aos filhos uma educação nobre: nossas escolas “superiores” são todas direcionadas para a mais ambígua mediocridade, com seus professores, planos de ensino, metas de ensino. E em toda parte vigora uma pressa indecente, como se algo fosse perdido se o jovem de 23 anos ainda não estivesse “pronto”, ainda não tivesse resposta para a “pergunta-mor”: qual profissão?”
E mais adiante, noutra seção do mesmo livro, Nietzsche fez a seguinte observação: “Qual a tarefa de todo ensino superior? –– Fazer do homem uma máquina.”
A essa altura, parece impossível ignorar a mensagem sub-reptícia que os tecnocráticos estatais e os burocratas à frente do poder mal disfarçam quando dessas tomadas de decisão: “essas reformas não seriam a prova manifesta de que quem está no poder conhece muito bem o potencial subversivo dos raciocínios teóricos aparentemente “inúteis”?”. A indagação é de Slavoj %u07Di%u07Eek.
Não é emblemático, pois, que o programa “Escola sem partido” tenha eleito como seu antípoda o autor do clássico “Pedagogia do oprimido” (1974), justamente quem mais advogou a educação enquanto ato político indissociável do processo de ensino, insurreto contra o assim chamado modelo bancário de aprendizagem?
Esses dias, ao lado de “Conde Gramsci”, o educador Paulo Freire foi curiosamente apelidado de Nosferatu pelo coordenador desse mesmo movimento, o advogado Miguel Nagib: ambos os intelectuais sugariam com os dentes a independência do espírito estudantil. A invocação dos mortos-vivos não se dá aqui de modo vulgar ou por acaso, lembra %u07Di%u07Eek: no discurso corrente, recorre-se a juízos indefinidos justamente quando se enfeixa esforços de compreensão de fenômenos aptos a solapar diferenças habitualmente estabelecidas (de classe, gênero, raça etc.), tais como aquelas entre os mortos e os vivos.
O inusitado dessa proposta não é exatamente a sua propalada “neutralidade ideológica”, um engodo cuja posição nem de longe evoca o postulado weberiano da liberdade em relação a juízos de valor [Werturteilfreiheit] (ou “neutralidade axiológica”) do conhecimento histórico-social. Até os menos esclarecidos em questões sóciofilosóficas –– os quais recentemente tomaram Engels por Hegel num equívoco icônico de nascença –– também o reconhecem.
Sua problemática consiste paradoxalmente na abertura mesma da arena de disputa ideológica, na qual os agentes sociais envolvidos desde sempre se digladiam pela conferência da narrativa que há de se impor entre as muitas interpretações ideológicas e determinar, por fim, a percepção geral de um determinado momento ou conflito histórico –– por exemplo, no Brasil de 1964, os militares venceram a luta pela explicação da crise político-econômica do governo Jango e, tanto mais, a forma de “superá-la”: sua trama era a trama do perigo iminente da conspiração comunista internacional.
O que está em jogo novamente é a predominância das razões da crise em que o governo Dilma Rousseff enredou-se e as alternativas para dela sair, ora reivindicadas pela mídia conservadora e sobretudo pelo ascendente populismo nacionalista da direita brasileira –– fenômeno político, como se vê, não restrito à Europa Ocidental contemporânea apenas. Neutralidade ideológica deve ser entendida aqui sem rodeios como anulação da oposição, como instrumentalização obscena de atos políticos genuínos com vistas à sua ulterior deslegitimização.
Por isso, não apenas toda defesa escancarada de temas como tortura, estupro, homofobia, anti-imigração, privatização do ensino e da saúde públicas etc. –– todos muito em voga hoje em dia mundo afora ––, mas também a sua mera invocação pseudoinocente, “tolerante”, “não pedante”, como tópicos legítimos de debate, já são em si derrotas infligidas à esquerda e, em última instância, amostras do esvaziamento paulatino dos grandes axiomas da modernidade advindos do ideário iluminista e revolucionário francês mais ou menos integrados ao domínio imediato da substancialidade ética [Sittlichkeit] da sociedade mundial.
É desse embate que nos chega, afinal, a conclamação sóbria e destemida do filósofo esloveno: “Não podemos permitir que a direita defina os termos da luta”. Toda luta pontual é parte de uma única luta ubíqua. Se fraquejarmos aqui, se lhe fizermos qualquer concessão, estaremos fadados a um fragoroso fracasso universal. A “Escola sem partido”, antes de um atentado à liberdade de cátedra, será uma clara vitória do obscurantismo, a impedir que se conheça todas a aventura humana na Terra: com suas vitórias e suas tragédias. E aqui uma infelicidade a constatar: não se pode dizer que é anti-humana, já que partiu de uma mente humana. Mas comprova que, após o holocausto, o homem provou ser capaz de qualquer coisa.
Créditos da foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
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