quarta-feira, 14 de setembro de 2016

'Falam em pluralidade e atentam contra ela'

Após tentar evitar que Macri tire o canal TeleSur do sistema de televisão digital aberta, Patricia Villegas comenta as encruzilhadas da América do Sul

              Martín Granovsky // www.cartamaior.com.br
Pouco antes de tomar o avião de Buenos Aires a Caracas, a jornalista colombiana Patricia Villegas, presidenta do canal TeleSur, manteve um diálogo com o diário argentino Página/12, na sede portenha da emissora plurinacional.

– Parto com a satisfação ter vindo para levantar minha voz, e o fiz, em todos os cenários, em todos os espaços. Também falei sobre isso com o governo de Mauricio Macri, ao cual expressamos, com muita claridade e amabilidade, que eles estão censurando a voz da TeleSur neste país, e que recomendamos cordialmente que revise e reverta essa decisão – comentou Villegas.

– Qual foi o principal argumento apresentado nas conversações?

– Que não se pode falar em pluralidade censurando. Hoje, a TeleSur consolidou seu lugar no mundo, conta histórias que outros não contam, a partir de uma perspectiva que outros não utilizam. É um trabalho profissional, tecnicamente impecável e para um canal latino-americano, como pouco na oferta televisiva desta parte do mundo são capazes. Então, para os argentinos e as argentinas, tem que ser uma opção dispor dessa visão, e que eles decidam se a querem ver o não.

– A resposta é que se trata de um canal chavista?

– Não, não o dizem dessa maneira. Gostaria que dissessem assim, porque me falam de mais pluralidade e estão atentando contra ela. Falam de mais austeridade. Eu pedi que não falassem de dinheiro, porque nessas contas tampouco estão sendo justos. Eles se queixaram de que o Estado argentino não pude influir nos conteúdos. Isso é muito perigoso. Ou seja: um Estado reconhece que para um canal permanecer no ar é preciso haver capacidade de influir nos conteúdos do mesmo.

– E os demais países, influem nos conteúdos? O Estado venezuelano influi nos conteúdos?

– A TeleSur tem uma faz uma reunião anual na qual os países-membros do canal podem conversar sobre as linhas estratégicas do canal, mas não sobre o conteúdo. Nós dizemos quais são as grandes coberturas que temos e as previsões para o ano. Entre todos, fazemos uma análise político, cultural e econômica das regiões e de seus próprios países, geramos linhas estratégicas de ação nos conteúdos, incluindo o formato. Por exemplo, alguém propõe: “vamos a resgatar o gênero da crônica televisiva”, ou “vamos a trabalhar sobre a construção da memória na América Latina e no Caribe, ou no mundo em geral”. A gente não fala só do que aconteceu ontem, mas sim do que vem passando há dez anos, há vinte anos. O resto é mitologia, não? Já me perguntaram muitas vezes, anos atrás, quantas vezes o Chávez me ligava por dia, para por ou tirar determinado conteúdo. Isso não existe, não é verdade. Os presidentes dos países-membros da TeleSur não têm esse poder, e tampouco existem espaços para que venham nos dizer que “coloquem” ou “tirem isso do ar”. Isso faz parte da caricatura que tentam impor para desprestigiar o trabalho de TeleSur, e eu respondo mostrando que nesta tela, que é uma multiplataforma, que pode se orgulhar em mostrar seus acertos, seus erros e suas carências, que ela é fruto do trabalho intenso de muita gente comprometida, que entende que a TeleSur é mais que um trabalho, realizado por mais de mil pessoas no mundo todo.

– A TeleSur tratou a paz na Colômbia como grande tema quando os acordos de paz ainda estavam verdes. Por que?

– Porque essas são as histórias que a TeleSur tem priorizado, e que decide contar de maneira ampla. Além disso, é uma realidade invisibilizada e ocultada pelos grandes meios. Se você revisa a imprensa escrita, a rádio ou a televisão colombiana e internacional nos últimos 11 anos, fundamentalmente o que tínhamos sobre a Colômbia eram reportes de guerra: os militares mortos, os guerrilheiros mortos, o grupo narcoterrorista das FARC. Mas por trás dessas manchetes havia homens e mulheres do povo colombiano sendo vítimas da guerra, e nós tomamos a posição editorial de estar do lado das vítimas, de contar suas histórias, de visibilizá-las. Isso nos custou muitíssimo. Nós fomos perseguidos e ameaçados somente por mostrar que entre esses guerrilheiros e as comunidades havia uma relação. Todos os jornalistas da TeleSur, e particularmente os da Colômbia, têm muitíssima emoção acumulada em seus currículos, de tantos de anos cobrindo um conflito como este, e agora mais, podendo cobrir um momento de irmandade e de paz, porque é duro ver as pessoas morrendo ao enfrentar algo que poderia se resolver em outros espaços, com a palavra e com o debate. Isso é o que espero para a Colômbia. Para nós, é um desafio fazer a cobertura do pós-acordo.

– Há um desafio venezuelano também?

– A grande cobertura que eu gostaria de fazer é a da derrota da guerra econômica. Espero que a resistência demostrada pelo povo da Venezuela nos permita contar um bom final.

– Quanto há, neste conflito, de coisas que o governo da Venezuela não pode, não soube ou não quis fazer, como fomentar a industrialização ou uma maior eficácia econômica?

– Bastante. Não poderia dizer em que porcentagem, porque não tenho essa perspectiva do problema. Um problema que acontece agora, enquanto eu lhe respondo, e que está nos rostos das pessoas, não nas cifras. A sede da TeleSur está em Caracas. Deve pagar boa parte de sua operação fora da Venezuela e se encontra com barreiras, vão se bloqueando as vias, bancos de transferência ou bancos de destino, para poder pagar. Então, na Venezuela vigora um bloqueio econômico. Não é como o de Cuba, que é reconhecido, além de ser uma política de Estado dos Estados Unidos. Na Venezuela, esse bloqueio financeiro é invisível. Esses barbantes invisíveis que controlam a economia, são os que me fazem dizer, com total certeza, que vivemos uma guerra econômica, que tem, em parte, um componente daquilo que não se fez, do que não se terminou de fazer e do que se fez mal. Nós temos que seguir sendo uma emissora pública, sendo uma multiestatal, somando já não só Estados, mas sim os movimentos sociais, e que seja capaz de gerar recursos próprios. Esta deve ser a missão para que a TeleSur possa seguir com seu nível de desenvolvimento, crescimento e sua capacidade de produção sem depender da renda petroleira venezuelana. Se não aprendermos nada desta crise, significará que não conseguiremos gerar recursos próprios, porque ninguém vive em crise para sempre, são crises cíclicas. E este não é qualquer canal. O que você sentiria se estivesse vendo na TeleSur um documentário sobre o direito à terra, sobre o direito a não ter alimentos transgênicos, e aparecer publicidade da Monsanto?

– Paz na Colômbia, guerra econômica na Venezuela. Que outros temas a TeleSur trata?

– Não sei se outros jornalistas do mundo já cobriram tantos golpes de Estado como os jornalistas latino-americanos e caribenhos, nestos últimos dez anos. A TeleSur nasceu no dia 24 de julho de 2005. Houve reação à criação do canal, principalmente dos norte-americanos que definiram uma estratégia específica para combater o que era este incipiente canal. Mas o verdadeiro nascimento da TeleSur, em termos de grandes coberturas jornalísticas, foi durante o golpe de Estado de Honduras, em 2009. Essa cobertura teve várias jornalistas, entre as quais se destacaram Marayira Chirinos, Adriana Sívori e Madelein García. Algumas meninas em Honduras foram batizadas como Adriana, Marayira ou Madelein, devido à proximidade gerada entre o trabalho feito, e as equipes de trabalho, e as comunidades. Há um relacionamento muito forte entre nossas equipes e os movimentos sociais de todo o continente, que vêm na TeleSur a possibilidade real de não terem sua versão tergiversada, de não serem utilizados. Acontece nos casos de violência na Colômbia, com as comunidades indígenas, com familiares estudantes mexicanos desaparecidos em Ayotzinapa, que só aceitam falar com a TeleSur. Acontece no Brasil também, os movimentos se sentem a vontade em falar conosco.

– O vice-presidente boliviano Álvaro García Linera disse que a história não se move por ciclos, que sempre começam, se desenvolvem e terminam da mesma forma, mas sim por ondas. Como essas ondas são vistas pela TeleSur?

– A Argentina viverá em breve suas eleições legislativas. Poderemos ver como se comporta o eleitorado com relação à situação social e econômica do país, que influi de maneira determinante. A Colômbia terá a eleições sem um conflito armado como tema central pela primeira vez em 50 anos. O Brasil vive clima de eleições municipais. A Nicarágua realizará eleições também neste ano. O presidente Daniel Ortega tem 80% de intenção de voto favorável. Na Venezuela as eleições municipais estão pendentes na agenda. Ainda não deram as datas, mas sabemos que elas serão cruciais para atualizar o mapa político.

– Este ano já não haverá referendo revogatório, certo?

– Não. As autoridades do Conselho Eleitoral, que são as que determinam as regras do jogo na Venezuela e que são um poder público autônomo, como o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, disseram que não (pode ser este ano), porque os tempos não permitem, mas que poderia haver um referendo no ano que vem. Então, não adianta pensar numa história estática. Também temos eleições nos Estados Unidos. É o fim da gestão de Barack Obama, a quem boa parte da esquerda latino-americana deu um voto de confiança, por sua condição de homem negro. Creio que é um desafio encarar tudo o que está ocorrendo, e tudo o que virá. Aqueles que dizem que o ciclo progressista na região se acabou não estão fazendo bem os cálculos.

Tradução: Victor Farinelli



Créditos da foto: reprodução

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