Autor de pedido de impedimento contra Gilmar Mendes, o jurista Fábio Konder Comparato considera inaceitável o “partidarismo" do magistrado
por Rodrigo Martins // http://www.cartacapital.com.br/
"Na verdade, Gilmar Mendes não apenas está do lado do PSDB ou da oposição, está claramente do lado do grupo oligárquico que comanda o País", diz o jurista Fábio Konder Comparato
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, tornou-se alvo de dois pedidos de impeachment protocolados no Senado, na terça-feira 13.
Ambas as peças acusam o magistrado de adotar uma conduta partidária e parcial nos julgamentos das cortes. Em uma frente, um grupo de operadores do Direito, entre eles o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, sustenta que as atitudes Mendes configuram crime de responsabilidade.
Em outra peça, preparada por outro grupo de juristas, o ministro é acusado de ser “extremamente leniente com relação a casos de interesse do PSDB e de seus filiados, tanto quanto extremamente rigoroso no julgamento de casos de interesse do Partido dos Trabalhadores e de seus filiados, não escondendo sua simpatia por aqueles e sua ojeriza por estes".
Signatário desse pedido, o jurista Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, afirma que Mendes desrespeitou diversas vezes o Código de Ética da Magistratura, mas seus atos não estão sujeitos ao controle do Conselho Nacional de Justiça. “O impeachment é a única forma de cobrar a responsabilidade de um ministro do STF”. Confira a entrevista:
CartaCapital: Quais fatos demonstram o partidarismo de Mendes?
Fábio Konder Comparato: Em relação ao PSDB, destaco dois fatos. O primeiro ocorreu na véspera da eleição presidencial de 2010. O candidato José Serra, do PSDB, estava em uma reunião com sindicalistas e alguém lembrou de uma lei que foi promulgada pelo governo do ex-presidente Lula, a exigir dois documentos para que o eleitor pudesse votar. Ou seja, não só o seu titulo de eleitor, mas também outro documento com foto. Isto significa que uma multidão de eventuais eleitores de Lula não poderiam votar e o PT, apesar da contradição, uma vez que o Lula sancionou a lei, entrou com uma ação no STF.
Mendes: Sempre em busca dos holofotes (Tânia Rêgo/ABr)
Justamente naquele dia, em que José Serra estava em reunião com sindicalistas, alguém lembrou este fato e sugeriu que ele telefonasse para Mendes. O ministro respondeu aquele chamado e um assessor de Serra trouxe a ele o celular. Tudo isso foi relatado com minucias pelo jornal Folha de S. Paulo.
Ao atender, Serra disse: “bom dia, meu presidente” [à época, Mendes presidia o STF]. E logo depois pediu ao ministro que pedisse vista dos autos naquele dia, pois dessa forma não haveria possibilidade de julgar a ação do PT antes da eleição. E foi o que ele fez.
O segundo é o envolvimento de Aécio Neves na Lava Jato. Vinte e quatro horas após a abertura do inquérito, Mendes determinou o retorno da peça à Procuradoria Geral da Republica, ou seja, ele deu por encerrada a sua atuação nesse caso.
CC: E o que demonstra a ojeriza de Mendes ao PT?
FKC: Tenho também dois exemplos da antipatia, para dizer o mínimo, do ministro Gilmar Mendes em relação ao PT. No caso do “mensalão”, antes mesmo de proferir o seu julgamento, Gilmar declarou perante os meios de comunicação de massa que os integrantes do partido que eram denunciados naquele caso eram bandidos. O Código de Ética da Magistratura proíbe que o juiz se manifeste em meios de comunicação sobre um processo ainda não julgado, sobretudo de maneira tão contundente a uma das partes. Ou seja, demonstrou a sua parcialidade.
O segundo caso ocorreu na nomeação de Lula como ministro da Casa-Civil do governo de Dilma Rousseff. Após partidos da oposição entraram com uma ação, Gilmar Mendes, em um julgamento antecipado, anulou essa nomeação e remeteu os autos para Curitiba, onde imperava, e continua a imperar, o juiz Sergio Moro. Ocorre que Sua Excelência, o ministro Gilmar Mendes, não tem muita coerência nos seus julgamentos.
No fim de 2002, quando terminava o mandato de Fernando Henrique Cardoso, o presidente conseguiu aprovar no Congresso uma lei dando imunidade aos ex-presidentes da República. Evidentemente, ele não pensava em si próprio, mas em outros ex-presidentes (risos). Pois bem, entraram com uma ação de inconstitucionalidade contra essa lei. E no STF houve dois votos favoráveis a ela. Um deles era de Gilmar Mendes.
CC: O senhor falou em antecipação de juízo. Isso não ocorreu, também, no julgamento daquela ação direta de inconstitucionalidade sobre o financiamento empresarial de campanha?
FKC: Sim. Não citei isso antes porque não se trata de uma ação favorável ao PT. Contudo, enquanto segurava os autos com pedido de vista durante um ano e meio, Mendes declarou que o PT era o partido que mais se havia beneficiado desses financiamentos empresariais de campanha.
Devo dizer que Sua Excelência, o ministro do STF, não cumpre nem mesmo o regimento interno do tribunal, porque, nos casos de pedido de vista, o ministro deve devolver os autos para julgamento até a segunda sessão ordinária seguinte. Obviamente, o ministro esqueceu-se de que tinha esses autos consigo e permaneceu com eles durante um ano e meio.
CC: Por conta dessa predileção pelo PSDB e antipatia pelo PT, o ministro Gilmar Mendes não deveria se declarar impedido para julgar casos como a posse de Lula na Casa-Civil ou o inquérito de Aécio Neves na Lava-Jato.
FKC: Na verdade, Gilmar Mendes não apenas está o lado do PSDB ou de outros partidos da oposição, ele está claramente do lado do grupo oligárquico que comanda toda vida política e econômica brasileira desde o descobrimento. E nós temos uma oligarquia especial. Não é apenas, como dizem os marxistas, "os potentados econômicos-privados que mandam neste País". Também não é apenas, como dizem os weberianos, a exemplo do saudoso amigo Raimundo Faoro, os agentes estatais.
São ambos!
Desde o século XVI, os proprietários de terras, os senhores de engenho se uniram aos grandes administradores nomeados pela metrópole. Essa união permaneceu até hoje. Teoricamente, o senhor ministro deveria se considerar suspeito. Na prática, isso não vai acontecer. Quem iria se opor a ele? Seriam os demais membros do STF, o que evidentemente não vai acontecer. Os ministros do STF são propriamente irresponsáveis, não respondem pelos seus atos, declarações e votos perante ninguém.
CC: O STF não está submetido a nenhum tipo de controle?
FKC: Absolutamente. Para dizer a verdade, eu próprio experimentei isso. Como advogado, ingressei em 2008 com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), no qual pedia para o STF reconhecer, perante a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos, que a lei brasileira não poderia anistiar aqueles que cometeram crime de terrorismo de Estado, como ocorreu na ditadura.
Em abril de 2010, o STF julgou improcedente essa ação, contra apenas dois votos. Desse acórdão publicado, o Conselho Federal da OAB entrou com embargos de declaração, recurso utilizado para esclarecer omissões do julgamento.
A principal e escandalosa omissão foi a seguinte: a Lei de Anistia declara que estavam anistiados todos os crimes políticos cometidos até 15 de setembro de 1979. Ocorre que, no direito penal, os crimes de sequestro e de ocultação de cadáver, são considerados crimes continuados, em andamento até se descobrir onde está o cadáver. A Comissão Nacional da Verdade apurou que havia mais de 200 casos assim.
Pedimos ao STF que explicasse essa omissão. O regimento interno do STF diz que, após a apresentação desse embargo de declaração, o ministro relator deve levá-lo a julgamento na primeira sessão ordinária seguinte. Não se sabe por que razão a primeira sessão ordinária seguinte até hoje não ocorreu, passados mais de cinco anos.
CC: E o Conselho Nacional de Justiça nada fez?
FKC: Não. Entrei com uma reclamação no CNJ e, em junho passado, a corregedora nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi, mandou arquivar a reclamação. Em 2005, o STF julgou que nenhum ministro da Corte estaria sujeito a jurisdição do CNJ. Agora só resta a denuncia dessa grave violação à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
CC: Recentemente, ao tomar conhecimento de uma suposta menção ao ministro Dias Toffoli nas investigações da Lava Jato, Gilmar Mendes demonstrou indignação com o vazamento de informações sigilosas da operação. Disse ser preciso “colocar freios” na atuação dos procuradores e que “o cemitério estava cheio desses heróis”. O curioso é que o ministro guardou profundo silencio em relação a todos os outros vazamentos da Lava Jato, sobretudo aqueles que atingiram a cúpula do PT.
FKC: A minha impressão é que ele ficou indignado porque acusaram seu amigo íntimo do STF, o ministro Toffoli.
CC: Esse é o único motivo?
FC: Estou apenas formulando uma hipótese, digamos assim, benévola, porque eu não quero entrar a fundo neste assunto.
CC: Qual é a conduta que se espera dos magistrados da Suprema Corte? Que mecanismos de controle sobre a atuação deles seriam apropriados?
FC: Um ministro de Corte Suprema deve ter comportamento exemplar, sobretudo no que diz respeito ao Código de Ética da magistratura, pois ele traz princípios que devem ser estritamente observados, como a independência, a imparcialidade, a transparência. Infelizmente, a aplicação destes princípios aos ministros do Supremo é impossível, uma vez que eles não se consideram sujeitos a controle algum.
Em 2013, apresentei à deputada Luiza Erundina uma minuta de Proposta de Emenda Constitucional, que ela apresentou à Câmara dos Deputados. Propus a transformação do STF em um tribunal constitucional, que tivesse por competência exclusivamente o exame das questões em respeito à Constituição.
Todo o resto ficaria aos cuidados do Superior Tribunal de Justiça, inclusive habeas corpus e mandados de segurança, coisa que nenhuma coisa Suprema Corte no mundo inteiro decide. Também propus o aumento do numero de ministros de 11 em 15, e que a indicação deles deixasse de ficar concentrada exclusivamente no presidente da República.
O número de lobbys organizados para conseguir uma nomeação dessas é impressionante. Dizem que, na ultima nomeação para o STF, havia 200 lobbys atuando junto a Presidência da República. Por isso, propus que a indicação dos possíveis ministros fosse feita pelas três organizações representativas das grandes atividades do Judiciário. Ou seja, os juízes, os membros do Ministério Público e os advogados. A corte constitucional passaria a ter esta composição tríplice. Ou seja, um terço magistrados, um terço membro dos ministérios públicos e um terço advogados.
E quem seria o órgão que nomearia os ministros? O Congresso Nacional. Dirão que o Parlamento está longe de ser isento, sobretudo depois do episódio grotesco de impeachment. Acontece o seguinte: o Congresso é composto de centenas de membros.
Obviamente, é muito difícil organizar um lobby que possa influenciar centenas de pessoas. Então, dos males o menor. Essa PEC desagradou os ministros do Supremo e não tem a menor chance de avançar porque a Presidência da República, é claro, é contra. E o Congresso está muito contente de fazer a sua ligação intima com a Presidência. É o tal presidencialismo de coalizão, como se diz.
CC: O senhor acredita que o Senado, essa mesma Casa Legislativa que julgou Dilma, vai levar a diante este pedido de impeachment?
FC: O impeachment é a única forma de cobrar a responsabilidade de um ministro do STF. Bem sei que o instituto está cada vez mais desacreditado. Na Inglaterra, não se usa mais. Nos Estados Unidos, desde a aprovação da Constituição, não foi bem recebido por inúmeras personalidades. A começar por Thomas Jefferson, para quem o impeachment, em relação aos ministros da Suprema Corte, não é nem um espantalho.
Por que, então, entramos com este pedido de impeachment? É para por também em questão a responsabilidade pública do Congresso, especificamente do Senado Federal, na defesa dos interesses nacionais. Compete aos órgãos de comunicação de massa, se eles tiverem um pingo de responsabilidade, mostrar como nós não estamos naquele Estado de Direito de que falam os juristas e os teóricos da Ciência Política.
O impeachment é a única forma de cobrar a responsabilidade de um ministro do STF
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