sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A sanha punitivista existente na sociedade brasileira é refletida em decisões judiciais

           Por:  // http://justificando.com/
A sanha punitivista existente na sociedade brasileira é refletida em decisões judiciais
Talvez essa assertiva constitua um lugar comum, mas nem por isso se pode “naturalizar” essa questão: hodiernamente se vive um quadro de extrema dificuldade para o exercício da plena defesa criminal. Na verdade, esse cenário é caudatário de uma complexa fórmula, que repercute no mais completo desprezo ao catálogo de direitos e garantias fundamentais. O primeiro ingrediente é a invasão do utilitarismo no processo penal. Há, ainda, o fato de a contínua advertência realizada por Lênio Streck ter sido solenemente desprezada e, por isso, a moral é uma indevida influência nas decisões judiciais. E, por fim, há o papel da mídia, que faz com quem o papel contramajoritário do Poder Judiciário seja deixado de lado em nome de uma suposta pacificação social.

No que se refere especificamente a esse enquadramento do Poder Judiciário pelas mais diversas agências midiáticas, é oportuno colacionar trechos de notícia publicada em 19 de agosto do presente ano e que versava sobre a fala de um Ministro do Superior Tribunal de Justiça:
Em evento do Conselho da Justiça Federal, realizado hoje (19), o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) João Otávio de Noronha criticou a pressão que a imprensa faz no Judiciário para que condene pessoas sem as garantias previstas no texto constitucional. Para o ministro, ‘pobre do país que tem sua magistratura refém da mídia’, disse. As informações são do Conjur.
Noronha, que assumiu a presidência da 3ª Turma do STJ no início do ano, citou como exemplo a repercussão da Ação Penal 470, o ‘mensalão’, e o acompanhamento extenso à todas as fases da Operação Lava Jato. A mídia, para Noronha condena os envolvidos antes mesmo da Justiça, o que faz com que a própria opinião dos julgadores seja influenciada e pressionada pelos jornais. E, quando isso não acontece, ‘o magistrado que ousa pensar diferente gera suspeitas e é ameaçado de investigação’.”[i]
O objetivo deste texto é, então, tratar das contínuas violações ao princípio da isonomia processual, o que, de acordo com o entendimento adotado pelo autor, desnuda a tradição autoritária existente no processo penal brasileiro.
Duas considerações iniciais necessitam ser trazidas, até mesmo porque marcam o referencial teórico empregado nesta reflexão.
Ao se falar em tradição autoritária no processo penal brasileiro, há um aporte da história cultural, que permite recorrer a definição de Johan Huizinga sobre essa modalidade de história e que foi assim mencionada por Peter Burke:
Em outro ensaio publicado em 1929, Huizinga declarava que o principal objetivo do historiador cultural era retratar padrões de cultura, em outras palavras, descrever os pensamentos e sentimentos característicos de uma época e suas expressões ou incorporações nas obras de literatura e arte. O historiador sugeria ele, descobre esses padrões de cultura estudando ‘temas’, ‘símbolos’, ‘sentimentos’ e ‘formas’ As formas ou regras culturais eram importantes para Huizinga tanto na vida como no trabalho (…)”[ii]
É claro que se pode questionar a visão de Huizinga – a própria história da história cultural demonstra a existência de divergências posteriores – , mas não se pode olvidar que é assim que se pode ir além de uma mera análise de diplomas normativos. Até mesmo porque uma reflexão pautada meramente nos diplomas normativos vigentes e válidos, isto é, no Texto Constitucional, Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos e o mutilado Código de Processo Penal, indicaria um cenário idílico em que aqueles que respondem processos penais teriam a sua dignidade respeitada e que toda formalidade seria compreendida como um limite intransponível para o exercício do poder punitivo. Todavia, basta presenciar, mesmo que brevemente, uma audiência criminal para constatar como é bem diversa a situação experimentada no cotidiano forense. A sanha punitivista existente na sociedade brasileira é refletida em decisões judiciais e, como consequência, todo aquele quadro normativo permeado por garantias é transformado em ilusão. Thiago Minagé, ao narrar a sua primeira audiência como advogado criminalista, consegui retratar essa desconstrução do dever-ser no mundo do ser:
Chego para audiência, o Juiz e o Promotor conversando estavam, assim continuaram, sem ao menos me cumprimentar, mesmo assim interrompo, dou boa tarde, digo que preciso falar com o acusado e ouço do juiz: rápido Dr. Não tenho o dia inteiro. Isso porque a audiência começou com 2h de atraso, ou seja, na pauta afixada no corredor constavam 06 (seis) audiências, todas marcadas para as 13h. Que loucura! Mas o juiz atrasou porque estava resolvendo algo que não interessava a ninguém. Afinal ele é o juiz!!!!
Converso rapidamente com o acusado e ao retornar o promotor fala: detesto ladrão! O juiz arremata: eu detesto mais ainda, por mim ficariam todos presos o resto da vida. Clima pesado e constrangedor na sala de audiência. Até que a secretaria do juiz fala para os dois: me recuso advogar para bandido, prefiro passar o resto da vida estudando pra concurso. Permaneço ouvindo tudo calado. O Juiz conclui o diálogo que não me incluía: isso mesmo, se for advogar prefiro que fique aqui e continue estudando.
Começa a audiência e informo que uma das testemunhas da defesa não compareceu e o juiz diz: Não vou suspender a AIJ, nem pensar. O promotor interrompe e diz: vai atrasar o processo desnecessariamente, Dr. Sinceramente se fosse importante não teria faltado. O juiz sem dar tempo para qualquer tipo de argumentação manda entrar o acusado e a primeira testemunha da acusação, o oficial de justiça diz: Exa. O policial não compareceu. O Juiz olha para mim e diz: é Dr. O Sr. está com sorte, vou suspender a AIJ senão o MP não terá provas a produzir. Levantei, assinei a ata e me retirei, sem mencionar nenhuma outra palavra.
Saio dali estarrecido, pois era minha primeira audiência criminal, recém-aprovado no exame da ordem, cheio de sonhos e ideais. Assim foi minha primeira vez.”
A segunda questão propedêutica consiste na ideia de doping processual, isto é, o desenvolvimento do jogo processual fora do quadrante da boa-fé. Alexandre Morais da Rosa trata especificamente dessa temática nos seguintes termos:
Para o que nos interessa, a violação da boa-fé objetiva é o ponto a ser destacado. O Estado não pode praticar ilegalidade, omitir informações desfavoráveis, valer-se de métodos não autorizados em lei, potencializar inescrupulosamente elementos probatórios, mesmo que os agentes pensem que seja por bons motivos, aumentando a capacidade de se obter vitórias processuais. A defesa, por sua vez, também não pode se valer de táticas inescrupulosas. A melhoria artificial da performance pela manipulação probatória é uma questão séria a ser enfrentada. Por isso a utilização da metáfora [doping processual] pode dar a dimensão da importância da noção de nulidades processuais, de atuação ética e também no desenrolar dos subjogos, dentre eles o probatório. (…)
No campo do processo penal entendido como jogo, pode-se invocar, quem sabe, a noção de doping processual para compreender a necessidade de o jogo acontecer com boa-fé e, depois, superarmos diversas noções sinuosas como, por exemplo, a teoria das nulidades.”[iii]
Feitas essas considerações iniciais, não constitui qualquer ato de ousadia ou mesmo exagero afirmar que as Varas Criminais se tornaram verdadeiras máquinas de destruir vidas. Vidas essas que já são ignoradas pelo Poder Público e que não conseguem acreditar que o catálogo de direitos previsto no Texto Constitucional também lhes pertencem. E para o correto funcionamento desse perverso engenho, que é fruto da tradição autoritária, a ampla defesa não pode ir além do âmbito retórico.
A persecução penal se desenvolve de maneira arcaica, tanto que se confere um valor excessivo para a prova testemunhal, mesmo quando já se tem conhecimento do fenômeno das falsas memórias – momento desabafo: recentemente em uma sessão de julgamento no Tribunal do Júri me vali como tese defensiva a existência de falsas memórias para poder embasar a negativa de autoria, obtive, em réplica, como resposta que o Conselho de Sentença em vez de se pautar pela psicologia comportamental deveria recorrer para a psicologia da vida (?!).
Os mais diversos avanços tecnológicos, e que assombram o mundo, ainda não fizeram presentes no processo penal. Salvo aquilo que se verifica nos casos midiáticos, a prova pericial é uma nobre esquecida nos acervos probatórios e, nesse cenário, os testemunhos se mostram suficientes para a prolação de um édito condenatório.
Destarte, o processo penal deixa de ser um instrumento ético de controle do poder punitivo para se tornar algo similar a um jogo de memória, ou seja, basta que a testemunha memorize e depois regurgite o contido no Registro de Ocorrência para que o estado de inocência venha a ser afastado. E o pior: a depender do juiz, o esquecimento ou divergência sobre fato afirmado na fase policial, poderá ser superado, tal como em um passe mágico, com o mero reconhecimento da assinatura no termo de declarações prestado diante do Delegado de Polícia. Eis uma atuação própria do doping processual.
Todavia, essa supervalorização da prova testemunhal se mostra seletiva. Quando se trata das testemunhas de acusação, há um notória tolerância com lapsos de memória. Aliás, no âmbito da justiça estadual fluminense, há, inclusive, verbete sumulado que aponta para a possibilidade de condenação baseada em depoimento exclusivo de policiais [iv], o que acaba por constituir um conforto decisório para suprir lacunas existentes no acervo probatório, pois mesmo quando existirem testemunhas presenciais e que não foram ouvidas em juízo, a versão prestada pelos milicianos é suficiente para uma condenação. Emprega-se, assim, uma lógica própria do Direito Administrativo, a presunção de veracidade do ato administrativo, o que não pode ter amparo no âmbito penal, já que nele se admite uma única presunção: a de inocência. Por outro lado, ao se deparar com as testemunhas de defesa, há atores jurídicos que, a priori, demonstram uma enorme desconfiança e sem qualquer lastro para essa postura. Parte-se da ideia de que toda testemunha de defesa vem a juízo para mentir como forma de favorecer o acusado.
O despudorado uso da prisão preventiva tolhe a atuação da ampla defesa, uma vez que toda e qualquer diligência defensiva se torna um salvo-conduto, a legitimação, para o transcurso de um processo penal que não respeita a cláusula constitucional da razoável duração do processo. Parafraseando o saudoso Herbert José de Souza, o Betinho, quem está preso provisoriamente tem pressa. E muitas vezes a defesa necessita enfrentar um enorme dilema: o tempo para a efetivação da diligência requerida versus permanência da situação prisional. O fato de o Estado-acusação requerer já na fase inquisitorial as suas diligências lhe confere uma posição que não é assegurada a defesa, ainda mais porque os requerimentos defensivos ficam sujeitos ao poder discricionário da autoridade policial.
O recente “pacote de medidas contra a corrupção” é mais uma prova de que a ampla defesa, mesmo com a maioridade do Texto Constitucional vigente, ainda não devidamente compreendida como um pilar do regime democrático. A título ilustrativo, examina-se a proposta nº 04, que, a título de buscar uma eficiência no processo penal, visa a limitar o habeas corpus [v]. Ora, nos chamados “Anos de Chumbo” havia uma notória intolerância com o pensamento divergente, sendo certo que o AI-5 [vi] limitou o manejo da ação constitucional em questão. Todavia, em um cenário que proclama a necessidade de respeitar o pluralismo, não deveria se mostrar possível essa medida. A verdadeira maldade institucional do Ministério Público Federal atenta, aliás, contra a sua própria missão constitucional, que é de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme preceitua o artigo 127, caput, Constituição da República.
Algumas outras situações poderiam ser trazidas para este debate. O próprio relato transcrito do professor Thiago Minagé sobre a sua primeira audiência criminal é rico na demonstração de como a ampla defesa se tornou uma garantia desprezada no cotidiano forense. Seria, ainda, possível destacar o recente “fast food” decisório proferido pela dita “República de Curitiba” [vii], mas é necessário caminhar para alguma conclusão.
Os exemplos destacados e tantos outros que poderiam ilustrar este texto demonstram a tradição autoritária existente no universo jurídico brasileiro. A maior vítima dessa tradição é o exercício da ampla defesa. Após o transcurso de mais de 30 anos do fim da ditadura civil-militar, não resta dúvida de que avanços ocorreram; porém, mostra-se urgente compreender o processo penal como um instrumento racional e ético de limitação do poder punitivo. Quem sabe, alguma instituição – e torço para que seja a Defensoria Pública – invista também em uma campanha midiática, isto é, em um pacote de medidas para a efetivação real da ampla defesa, pois enquanto essa garantia se limitar ao círculo retórico, a ampla defesa e a persecução penal continuarão a bailar solitariamente nos Palácios da Justiça.
Eduardo Januário Newton, é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Foi Defensor Púbico do estado de São Paulo (2007-2010)

[i] http://justificando.com/2016/08/19/noronha-pobre-do-pais-que-tem-sua-magistratura-refem-da-midia/ Acesso em 23 de setembro de 2016.
[ii] BURKE, Peter. O que é a história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 18-19.
[iii] ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed. Florianópolis, 2016. p. 192-193.
[iv] Súmula nº 70 do TJRJ: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”
[v] A limitação do habeas corpus se verifica na proposta de modificação legislativa no CPP, o que é apresentado nos seguintes termos:
Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal que prejudique diretamente sua liberdade atual de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
  • 1º A ordem de habeas corpus não será concedida:
 I – de ofício, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente;
II – em caráter liminar, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente e ainda houver sido trasladado o inteiro teor dos autos ou este houver subido por empréstimo;
III – com supressão de instância;
IV – sem prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem da ação penal, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente;
V – para discutir nulidade, trancar investigação ou processo criminal em curso, salvo se o paciente estiver preso ou na iminência de o ser e o reconhecimento da nulidade ou da ilegalidade da decisão que deu causa à instauração de investigação ou de processo criminal tenha efeito direto e imediato no direito de ir e vir.
  • 2º O habeas corpus não poderá ser utilizado como sucedâneo de recurso, previsto ou não na lei processual penal.”
[vi] “Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.”
[vii] Recorro nesse instante às palavras de Lênio Streck em sua página oficial em famosa rede social: “Sentença proferida por Sérgio Moro no caso Bumlay: Alegações finais da defesa entraram dia 14. Conclusão ao juiz às 7h52min do dia 15. Sentença de 160 páginas dois minutos depois, às 7h54min. Bingo! Será necessário dizer algo? Há anos aviso que o solipsismo judicial acabaria com o direito. E a dogmática jurídica tradicional foi conivente. Quem esteve no Ibcrim do ano passado e assistiu minha palestra sabe o que estou falando! O Estado Democrático de Direito está em risco. Exceção em cima de exceção. Tudo em nome de argumentos finalísticos. A moral predou o direito. E com apoio de grande parte da comunidade jurídica. Os juristas estão canibalizando o direito! Isso não vai terminar bem!

SOBRE O AUTOR

Eduardo Newton
Eduardo Newton
//Coluna Defensorar Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).

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