segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O STF em matéria trabalhista e o curioso caso de Benjamin Button

Depois de ser considerado velho desde o nascimento, o Direito do Trabalho está mais novo do que nunca!

              Jorge Luiz Souto Maior // www.cartamaior.com.br
Costumo brincar com meus alunos, quando estes expressam preocupação com sua carreira na área jurídica se, em respeito ao projeto constitucional, vierem a defender a aplicação do Direito como instrumento de justiça social, dizendo-lhes que a minha carreira, por exemplo, se assemelha ao “curioso caso de Benjamin Button”, vez que, em 1998, apenas cinco anos depois de meu ingresso na magistratura, já participava da Sessão Especial do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, que, à época, era o órgão integrado pelos Desembargadores mais antigos do Tribunal e que tinha competência para julgamento, em primeiro grau, dos dissídios coletivos, e, em fase recursal, dos mandados de segurança, ações rescisórias etc. No entanto, depois que minhas posições jurídicas passaram a ser mais conhecidas, fui sendo “rebaixado”. Primeiro passei a compor, como substituto, uma das Turmas do Tribunal; mais tarde os períodos de substituição foram reduzindo, até deixarem de existir, concretamente; e, hoje, após 23 anos de magistratura, estou exatamente onde comecei, atuando na Vara do Trabalho, fazendo audiências, despachos e sentenças...
Durante esse mesmo tempo vi vários colegas juízes e advogados, formados na mesma época, e até mais novos, tornarem-se desembargadores ou Ministros do TST, sem falar dos que chegaram ao STF, ou de ex-alunos, que já me passaram há muito tempo em termos da projeção na carreira jurídica ou na atuação política.

Eis que de repente vem a decisão monocrática do Ministro do STF, Teori Zavascki, proferida no Recurso Extraordinário 895.759, em 8 de setembro de 2016, e perverte tudo...

Para que se entenda bem a situação, cumpre informar que a decisão foi proferida no contexto de uma reclamação trabalhista movida em 2007 (Processo nº 205900-57.2007.5.09.0325).

O juiz da Vara do Trabalho julgou procedente o pedido do reclamante em receber horas extras pelo percurso até o local de trabalho de difícil acesso ou não servido por transporte público, nos termos do art. 58, § 2º, da CLT (introduzido pela Lei n. 10.243, de 19/6/01), suplantando o limite de uma hora diária fixado em norma coletiva. A reclamada recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho, que manteve a sentença. Não se conformando, a reclamada recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, primeiro por Recurso de Revista e depois por meio de agravo de instrumento, o qual foi recebido. O TST, no entanto, manteve a condenação. A reclamada, então, interpôs recurso extraordinário junto ao STF.

O recurso extraordinário foi distribuído ao Ministro Teori Zavascki, em 07/06/16, e este, na decisão monocrática referida, deu provimento ao recurso, excluindo a condenação que havia sido imposta à reclamada.

Ou seja, depois de 9 anos de tramitação perante a Justiça do Trabalho, passando por todas as instâncias, o Ministro Teori, exatos três meses após receber os autos, em decisão monocrática, desconstruiu toda a compreensão jurídica que havia sido formada na esfera trabalhista. A compreensão individual do Ministro, em decisão de cinco parágrafos, desconsiderou a própria razão história da existência de uma instituição, criada em 1939, com a atribuição precisa de dizer o direito trabalhista sem os vícios teóricos liberais da Justiça comum, valendo lembrar que a classe trabalhadora espera há quase 20 vinte anos pelo julgamento da ADI 1625, em que se discute a inconstitucionalidade da denúncia feita pelo governo FHC à Convenção 158 da OIT, que proíbe a dispensa arbitrária, sendo que cinco Ministros já se posicionaram neste sentido.

Mas o mais grave é que o Ministro Teori Zavascki fundamentou sua decisão no teor do julgamento proferido no RE 590.415, afirmando que naquele processo havia sido fixado o entendimento da prevalência do negociado sobre o legislado, só que não foi bem assim. A “quitação” prevista em cláusula coletiva somente foi declarada válida naqueles autos porque se reconheceu estarem preenchidas certas condições, a saber:

a) “a reclamante não abriu mão de parcelas indisponíveis, que constituíssem ‘patamar civilizatório mínimo’ do trabalhador”;

b) “não se sujeitou a condições aviltantes de trabalho (ao contrário, encerrou a relação de trabalho)”;

c) “não atentou contra a saúde ou a segurança no trabalho”;

d) “não abriu mão de ter a sua CNTP assinada” (SIC);

e) “apenas transacionou eventuais direitos de caráter patrimonial ainda pendentes, que justamente por serem “eventuais” eram incertos, configurando res dubia, e optou por receber, em seu lugar, de forma certa e imediata, a importância correspondente a 78 (setenta e oito) vezes o valor da maior remuneração que percebeu no Banco”.

f) “Teve garantida, ainda, a manutenção do plano de saúde pelo prazo de 1 (um) ano, a contar do seu desligamento”.

Na decisão do RE 895.759, o Ministro Teori não avaliou essas condições, com a mesma intensidade, ferindo, inclusive, a regra processual do precedente.

Sua decisão, de todo modo, reflete o posicionamento assumido pelo STF, desde 2009, com tendência de ser mais intenso em 2016, de alterar a jurisprudência do TST, para realizar a “reforma trabalhista” tão reclamada por parte do setor econômico e alguns veículos de comunicação em massa, que não querem outra senão o fim do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.

A retração de direitos trabalhistas imposta pelo STF pode ser constatada nas seguintes decisões: ADI 3934 (05/09); ADC 16 (11/10); RE 586.453 (02/13); RE 583.050 (02/13); RE 589.998 (03/13); ARE 709.212 (13/11/14); RE 658.312 (27/11/14) (decisão que foi anulada por suposto vício processual e voltou a julgamento, já reiniciado em 14/09/16); RE AI 664.335 (9/12/14); ADI 5209 (23/12/14); ADI 1923 (15/04/15); RE 590.415 (30/04/15); RE 895.759 (8/09/16); e ADI 4842 (14/0916).

Além disso, nas últimas sessões do Supremo restaram alguns indícios do que pode vir pela frente:

a) ADI 1625: há a possibilidade de se fixar uma modulação, de modo a conferir validade à denúncia feita pelo governo FHC, em 1996, à Convenção 158, mesmo declarando que a denúncia foi inconstitucional. Ou seja, pode-se chegar ao resultado de firmar um entendimento quanto à ilegitimidade da Presidência da República efetuar a denúncia de tratados internacionais já integrados à ordem jurídica interna, mas esse entendimento só valerá da data do julgamento para frente. Assim, a inconstitucionalidade da qual resultou a retirada da Convenção 158 da OIT do ordenamento jurídico interno e com isso frustrou a regulamentação do inciso I, do art. 7º da CF, que protege a relação de emprego contra a dispensa arbitrária, será, simplesmente, perdoada, fazendo crer que a Constituição de 1988, na parte dos direitos sociais, não passou de um “estelionato histórico”;

b) RE 658.312: alterando o resultado fixado em 2014, pode ser que se chegue à conclusão em torno da declaração da inconstitucionalidade do artigo 384 da CLT, que garante um intervalo de 15 minutos para as mulheres antes da realização de trabalho extraordinário, não se colocando em questão, como seria obrigatório, a legalidade da prática do trabalho habitual em horas extras; e

c) RE 693.456: revertendo um posicionamento consolidado desde 2007 (Mandado de Injunção 712, relator Ministro Eros Roberto Grau), reproduzido em várias decisões do próprio Supremo, ficou a indicação, na sessão do dia 02/09/15, de que se poderá autorizar o desconto dos salários referentes aos dias não trabalhados em função do exercício do direito de greve, mesmo sem avaliação da influência da conduta culposa do empregador na deflagração da greve e também sem analisar eventual abuso de direito cometido pelo empregador, partindo do pressuposto de que a greve, por si, deve gerar prejuízo e sofrimento aos trabalhadores, vista, “por definição”, como “uma opção de risco”, conforme expresso no voto apresentado pelo Ministro Dias Tofoli, que, inclusive, já foi acompanhado por outros dois Ministros.

Aliás, na paradigmática sessão do dia 14/09/16, o Ministro Luís Roberto Barroso, chamando o Ministro Marco Aurélio de Melo ao diálogo, disse: “toda tendência do Direito do Trabalho contemporâneo é no sentido da flexibilização das relações e da coletivização das discussões”. E o Ministro Marco Aurélio completou: “Fato. Mais dia menos dia nós vamos ter que partir para essa reforma”.

Por isso é imperioso que se esteja atento aos processos pendentes de julgamento no Supremo em que outras questões trabalhistas essenciais serão pautadas: dispensas coletivas (ARE 647.561); direito de greve (AI 853.275/RJ); ampliação da terceirização (ARE 713.211).

O curioso é que ao adotar essa preocupação de reformar decisões da Justiça do Trabalho, o STF deixa de lado seu posto de ser o guardião da Constituição, composto pelos juristas de maior renome do país, aos quais se deveriam direcionar apenas as “grandes questões de direito” com repercussão no interesse nacional, para se tornar mera instância recursal trabalhista, afinal o Direito do Trabalho está fixado, quase todo ele, como cláusula pétrea, na Constituição Federal. Vale lembrar que a decisão do Min. Teori, que gera precedente, o pressuposto da repercussão geral foi enfrentado apenas burocraticamente, sendo o recurso extraordinário examinado como mero recurso.

Então, os Ministros do Supremo, que ao longo de suas histórias de vida, seguindo a tradição que impera no ensino jurídico nacional, de desprezo ao Direito do Trabalho, para se consagrarem como grandes juristas, tiveram que dizer publicamente, com certo orgulho, que nada conheciam de Direito do Trabalho (exceção feita ao Ministro Marco Aurélio e à Ministra Rosa Weber, originários da Justiça do Trabalho) – sendo que alguns, inclusive, agiram desse mesmo modo em julgamentos recentes, quando não demonstraram qualquer constrangimento em reconhecer que não sabiam que a multa do FGTS, que o empregado recebe após cessação imotivada da relação de emprego, é de 40% e não de 10%, como imaginavam –, terão, agora, que se tornar especialistas em Direito e Processo do Trabalho.

Em suma, voltarão ao início da carreira, fazendo tudo que se recusaram a fazer durante todos esses anos e a julgar por alguns dos “doutrinadores” que têm tomado como paradigmas em seus julgamentos, que nem mesmo os TCCs de graduação utilizam, ainda terão um grande caminho pela frente...

O curioso é que agora poderei dizer aos meus alunos que, de fato, o que mais se assemelha ao caso de Benjamin Button é a experiência de vida dos Ministros do STF, levando consigo a dos Ministros e Desembargadores trabalhistas, cujas decisões, doravante, valerão tanto quanto as decisões de qualquer “juizinho” de primeira instância, como o da 3ª Vara de Jundiaí.

O mais grave é que ao assumir uma postura judicial direcionada à finalidade política específica de interferir na atuação do TST e promover uma “reforma trabalhista” nos moldes requeridos pelo setor econômico, o Supremo abala sua independência, que constitui o fundamento mais relevante de um Estado Democrático de Direito construído sobre os pilares dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais, abrindo espaço ao advento de uma situação, imprópria para qualquer juiz, de se submeter à pressão, à pauta e aos conteúdos expressos na grande mídia, refletindo os interesses do poder econômico e do próprio Poder Executivo.

Em dezembro de 2015, a grande mídia já comemorava o direcionamento assumido pelo STFi, reforçando, a cada instante, as críticas à atuação do TST sobretudo no aspecto das limitações às demissões em massaii, como se redução de emprego fosse a salvação da economia e como se não fosse uma agressão explícita aos preceitos constitucionais da vinculação da economia aos ditames da justiça social (art. 170) e da essencialidade da proteção da dignidade humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, incisos III e IV). Não se pode deixar de registrar que esse direcionamento tem ganhado apoio também no âmbito do TST, por intermédio, inclusive, de seu atual Presidente, cuja fala, por isso mesmo, é reiteradamente reproduzida nos veículos de comunicação em massa iii.

Em concreto, a sessão do STF do dia 14/09/16, em razão dos resultados dos julgamentos, foi extremamente comemorada na grande mídia. Um jornal de intensa circulação nos meios empresariais, inclusive, elaborou seu editorial com o título esclarecedor: “A Justiça e a reforma trabalhista”iv.

E o governo, claro, também está atento ao que se passa no Supremo. Considerando as decisões do STF, tomadas nos dias 08 e 14 de setembro, Temer, em 15 de setembro de 2016, anunciou: “não sou idiota de eliminar direitos trabalhistas”v.

Como explicitado pelo jornalista Kennedy Alencar vi, as decisões do STF levaram Temer a considerar que não precisava mais assumir para si o custo político da reforma trabalhista. Entretanto, por intermédio do Ministro do Trabalho vii, deixou o recado ao mercado, à mídia e ao próprio Supremo de que se a reforma não vier pela via judicial vai conduzi-la de todo modo, em 2017.

Desde então, a grande mídia e representantes do governo, que a partir da confirmação do “impeachment” não permaneciam um dia sequer sem falar mal da CLTviii, subitamente pararam de tocar no assunto. A estratégia passou a ser a de ficar bem quieto para que o Supremo possa cumprir o seu papel com o menor alarde possível. 

Em paralelo vislumbrou-se a necessidade de começar a “preparar” os novos juristas para o novo Direito do Trabalho e a nova Justiça do Trabalho.

Insere-se neste contexto o “Seminário comemorativo dos 75 anos da Justiça do Trabalho e 70 anos do TST”, organizado pelo TST, com o apoio da FECOMÉRCIO-RJ, da Caixa Econômica Federal e do Governo Federal, que foi, evidentemente, comemorado pela FGVix

Na mesma direção, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Estadão organizaram, no dia 16/09, um evento “jurídico” para “discutir” a “modernização das relações de trabalho”x, que, claro, ganhou grande repercussão no meio industrialxi. O evento, no qual compareceu o Presidente do TST e quando também se ressuscitaram alguns neoliberais trabalhistas, contou com a melancólica presença do Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ligado à CUT.

O destaque a esse último dado é importante para que se percebam as limitações de um sindicalismo voltado apenas a resultados econômicos imediatos, vez que tende a perder, inclusive, a força até mesmo para a defesa de direitos já conquistados, facilitando o caminho para o neoliberalismo. Lembre-se, a propósito, que no julgamento da ADI 4842 o voto do Ministro Fachin foi fundamentado principalmente nas manifestações de três sindicatos de trabalhadores, que atuaram nos autos como amicus curae e que se pronunciaram favoravelmente ao regime de 12x36.

Deve-se reconhecer que no contexto de uma recessão econômica, com aumento do desemprego, as limitações da ação sindical são um problema que transcende a vontade dos dirigentes e é exatamente por isso que constitui uma autêntica violência jogar sobre os ombros das diretorias dos sindicatos a responsabilidade de manter os empregos por meio da redução de direitos.

Assim, o valor da “autonomia privada coletiva”, preconizada pelo STF, que não tem respaldo na mais abalizada doutrina trabalhista, ainda mais fora de um ambiente jurídico em que sequer se garante a proteção da relação de emprego contra a dispensa arbitrária, presta-se, unicamente, para corroborar uma realidade na qual o poder do capital, no ato da formalização de negócios jurídicos, não encontra um autêntico antagonismo. A dita autonomia, portanto, está unicamente a serviço do poder econômico, da retração de direitos e da contenção e divisão da classe trabalhadora, sendo que a situação se agrava enormemente caso seja a ela integrada a ampliação ilimitada da terceirização.

Há, de todo modo, uma grande ilusão na crença de que é possível, dentro de um sistema de produção capitalista, simplesmente eliminar todos os direitos sociais e mesmo o poder político da classe trabalhadora, pois para se constituir capital são necessários trabalho e uma classe trabalhadora disposta a consumir os bens produzidos e para que isso exista é necessário um projeto mínimo de sociedade no qual se integrem os trabalhadores, e não apenas a explicitação do império da lei do mais forte.

O curioso é que sob a ameaça de retrocessos, os direitos aplicáveis às relações de trabalho tendem a se reconstruir e com força ainda maior, vez que nas depressões as reações políticas da classe trabalhadora são mais consistentes e se direcionam a mudanças mais radicais no modo de produção existente, pondo-se em questão, inclusive, as apostas feitas – que viraram derrotas – na luta por melhorias dentro do mesmo modelo de sociedade.

Do ponto de vista estritamente jurídico-formal, pode-se dizer que sem se efetivar uma completa suspensão do Estado Democrático de Direito sempre haverá espaço para uma reconstrução das formas protetivas da condição humana frente aos interesses estritamente econômicos de alguns poucos.

Lembre-se, por exemplo, o que se passou ao final da década de 90, quando se caminhava abertamente para o fim do Direito do Trabalho e a extinção da Justiça do Trabalho. Naquela ocasião, para fugir das armadilhas econômicas e dos preconceitos já amplamente difundidos sobre a “antiguidade” das normas celetistas, foram atraídos para a proteção jurídica dos trabalhadores os direitos de personalidade, com o reforço do princípio da dignidade humana.

Esse movimento se deu, aliás, como efeito de uma necessidade, já que sem os freios de um Direito do Trabalho assumidamente protetivo do trabalhador as empresas, sobretudo as grandes corporações, se viram livres para levar ao extremo a exploração do trabalho humano, ou seja, sem respeitar limites.

Assim, a questão da supressão plena da condição humana impôs – e vai continuar a impor – uma reação dos Tribunais e com isso um novo Direito do Trabalho passou a ser construído na doutrina e na jurisprudência, superando, inclusive, as amarras de uma legislação que apenas considerava o fator econômico da força de trabalho.

Advieram desse movimento, por exemplo, as temáticas, que hoje habitam o cotidiano das Varas do Trabalho, pertinentes ao dano moral, ao assédio moralxii e ao dano socialxiii, cujos fundamentos, aliás, não se encontram no âmbito da CLT.

Ou seja, diante da tentativa de afastar a legislação das relações de trabalho, para favorecer aos interesses do capital, a jurisprudência e a doutrina passaram a falar da “necessidade de se garantir a ética nas relações laborais”xiv, de garantir a “dignidade do trabalhador”xv e de conferir uma “tutela da personalidade do trabalhador”xvi.

É curioso perceber que, embora tantas pessoas ligadas a interesses de parte do segmento econômico, com apoio da grande mídia, se dedicam a falar mal da legislação trabalhista, apontada como entrave ao desenvolvimento econômico, usando o falso argumento, difundido desde a década de 50, de que a CLT é velha e formalista, supondo que o Direito do Trabalho esteja todo ele circunscrito à vetusta Consolidação, as indenizações trabalhistas, que tanto afligem a essas pessoas, não têm fundamento jurídico na CLT e sim no Código Civil de 2002xvii, nas Declarações Internacionais de Direitos Humanos e na Constituição (nos Títulos pertinentes aos Princípios Fundamentais, aos Direitos e Garantias Fundamentais e à Ordem Econômica e Financeira).

É nesse contexto histórico de reconstrução do Direito do Trabalho com base em outros fundamentos que surgiram, na primeira década dos anos 2000, obras jurídicas como “Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho”, coordenada por Alessandro da Silva, Jorge Luiz Souto Maior, Kenarik Boujikian Felipe e Marcelo Semer, publicada pela Editora LTr, em 2007, vindas na esteira, por exemplo, da linha de pesquisa do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, desde meados de 2002, “Direitos Sociais no Contexto dos Direitos Humanos”.

Vale recordar, inclusive, que, em 2012, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou umpaper com o título, “101 Propostas para Modernização Trabalhista”, tendo por objetivo explícito defender a redução dos “altos custos” do emprego formal, vistos como um dos mais graves entraves ao aumento da competitividade das empresas brasileiras, mas esse documento refletiu o avanço doutrinário e jurisprudencial vivenciado pelo Direito do Trabalho desde 2002, pois que a par de continuar fazendo críticas à “vetusta CLT”, pôs-se no ataque às posições assumidas pelo Tribunal Superior do Trabalho nos últimos anos, acusando-as de “irracionais”.

O fato é que eliminar leis trabalhistas e criar leis e interpretações voltadas aos interesses exclusivos do capital não são iniciativas suficientes para acabar de vez com a proteção jurídica dos trabalhadores. O Direito, sobretudo quando está sob a ameaça de retrocessos dos patamares historicamente já alcançados, se recria por caminhos diversos. E se na década de 90, período no qual o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho estavam de fato socialmente diminuídos, vez que sequer guardavam identidade com a classe trabalhadora, não foi possível atingir o objetivo de eliminar por completo os direitos trabalhistas, muito menos se conseguirá fazê-lo agora quando a questão ganhou visibilidade nacional, favorecida pelos meios de comunicação “alternativos”, estando, pois, sob os olhares atentos dos trabalhadores, dispostos a defender os seus direitos, e de uma enorme quantidade de profissionais ligados à questão do trabalho, atuando nos campos jurídico, social, político, econômico e filosófico.

Supondo que de fato o Supremo Tribunal Federal tenha assumindo o papel de reescrever o Direito do Trabalho, isto é, o de destruir as proteções jurídicas trabalhistas para atender reclamos imediatos dos interesses do capital, sua tarefa não só será inglória como também conduzirá os debates em torno do Direito do Trabalho a outro patamar, trazendo consigo, inclusive, o benefício de destruir, de uma vez por todas, o argumento retórico de que o Direito do Trabalho no Brasil é retrógrado porque está regulado pela “CLT de Vargas”.

Aliás, se na lógica obtusa daqueles que querem apenas explorar os trabalhadores sem qualquer limite, todos que, de algum modo, impõem alguma restrição a tal pretensão, são tidos como “retrógrados”, “comunistas” ou “varguistas”, logo a pecha será dedicada ao Supremo Tribunal Federal, como, ademais, já pode ser impingida a Temer, na medida em que disse, com todas as letras, não ser idiota de retirar direitos trabalhistas. “Temer varguista”, eis uma boa matéria para o sensacionalista!

Veja-se que mesmo atuando para eliminar direitos trabalhistas, o STF, como visto nos julgamentos recentes acima referidos, acabou expondo inúmeras contradições que servem à reconstrução e até mesmo à ampliação do Direito do Trabalho.

Com efeito, tentando justificar o “negociado sobre o legislado”, o Supremo Tribunal Federal partiu de uma suposta separação principiológica entre o Direito Coletivo do Trabalho, onde imperaria a “autonomia privada coletiva”, e o Direito Individual do Trabalho, no qual, como expresso no voto do Min. Barroso, ainda se justifica manter a proteção do trabalhador e a intervenção e fiscalização do Estado.

Quando preconizou a necessidade do “amadurecimento da classe trabalhadora” para efeito de reconhecer a validade da negociação coletiva, o STF (RE 590.415) acabou tratando, por efeito inexorável, do imperativo do “amadurecimento da classe empresarial” para a mesma finalidade. Assim, a classe empresarial não poderá mais contar com decisões judiciais que lhe disponibilizam força policial para coibir greves, como se tem verificado, por exemplo, nos interditos proibitórios ou nas determinações para a retomada do trabalho, sob o falso argumento de se estar garantindo o direito de ir e vir de quem quer trabalhar ou os direitos dos consumidores. 

Mesmo partindo de dado histórico equivocado, o voto proferido nesses autos afirmou que o Estado não pode realizar intervenções no sindicato, porque são incompatíveis com o atual estágio democrático, e defendeu a liberdade da atuação sindical, incluindo o exercício do direito de greve, tida como meio legítimo para conferir aos trabalhadores um “poder social de pressão”.

Com base no princípio da boa-fé nos negócios jurídicos, valorado no voto, é possível dizer que os empregadores não mais poderão se valer de abuso econômico e de ameaças de desemprego como “argumento” para negociar, assim como não poderão se negar a abrir aos trabalhadores os seus balanços econômicos (incluindo eventual “caixa 2”), caso aleguem estar passando por dificuldade econômica, demonstrando, inclusive, que esta dificuldade não tenha sido induzida por má administração ou desvio ilegal de patrimônio para outras empresas, sócios ou contas no exterior. Ou seja, passam a ser condições de validade das negociações coletivas as mesmas condições impostas a todos os negócios jurídicos, conforme previsão dos artigos 113xviii, 114xix, 156xx, 157xxi e 166, VIxxii, do Código Civil, que estão traduzidos, de forma mais direta, no artigo 9º da CLT: “Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”

Quando valorizou o negociado, o STF (no mesmo processo: RE 590.415) deixou claro que a simples manutenção do emprego não é suficiente para justificar uma condição de trabalho diferente daquela prevista em lei, impondo-se a concessão de vantagens compensatórias específicas e deixou fora de qualquer possibilidade negocial os direitos “indisponíveis”, que constituíssem “patamar civilizatório mínimo” do trabalhador, além de definir que não se consideram como legítimas quaisquer cláusulas que gerem “condições aviltantes de trabalho”, atentem “contra a saúde ou a segurança no trabalho”, ou promovam fraude ao reconhecimento da relação de emprego.

Esse entendimento, inclusive, já repercutiu na esfera trabalhista. No dia 27/09/16, o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho esclareceu que o negociado não deve prevalecer sobre o legislado, como princípio, sendo necessária a análise do caso concreto, quando se verificará o preenchimento das condições fixadas no RE 590.415xxiii.

Quando falou em constitucionalidade da lei de recuperação judicial, o STF (ADI 3934) acabou destacando que a dispensa coletiva não é modo legítimo de recuperação econômica das empresas, conferindo o ensejo definitivo para a aplicação – mesmo sem regulação específica, já que parece não estar disposto a reconhecer a validade da Convenção 158 da OIT – do preceito constitucional que impede a dispensa arbitrária de trabalhadores (inciso I, do art. 7º). 

Quando disse que a prescrição do FGTS não é trintenária e sim de cinco anos, até o limite de dois após o término do contrato (ARE 709.212), teve que reconhecer a natureza trabalhista e autônoma do instituto e com isso declarar expressamente a compatibilidade entre o FGTS e a estabilidade, revigorando a estabilidade decenal, prevista na ordem jurídica trabalhista desde 1923 e também na CLT, que nunca foi de fato revogada.

E quando declarou a constitucionalidade da jornada de 12 horas para os bombeiros civis (ADI 4842), acabou deixando claro que a validação dessa jornada se deu dentro do contexto de uma compensação que não apenas respeitou o limite semanal de 44 horas como também trouxe um benefício adicional, qual seja, a redução desse limite para 36 horas, tendo-se, ainda, por via transversa, reforçado o princípio da norma mais favorável.

A grande questão é que, como se costuma dizer, o Direito do Trabalho não é para amadores e o STF, que agora se torna uma Corte trabalhista, está prestes a descobrir isso, o que, paradoxalmente, lhe fará um grande bem, já que lhe será dada a oportunidade de enxergar a realidade pela lente da relação básica da sociedade capitalista e, com o tempo, não terá como deixar de expressar valores e dilemas que tocam a classe trabalhadora, os social e economicamente excluídos, as minorias políticas e as vítimas de preconceito e discriminação, com destaque para os recortes de gênero, raça, etnia e orientação sexual.

Vale verificar, a propósito, que na mesma sessão do dia 14/09/16, ao mesmo tempo em que se avançava sobre alguns direitos trabalhistas, teve-se a percepção da necessidade de se cumprir o regimento interno para efeito de conferir o intervalo de 30 minutos de descanso aos Ministros durante a sessão, cuja duração, doravante, ficará limitada a quatro horas; e a Ministra Cármen Lúcia fez discurso altamente relevante a respeito da discriminação de gênero nas relações de trabalho e na sociedade brasileira em geral.

Fato é que o Direito do Trabalho, que sempre foi alvo de preconceito e desprezo na comunidade jurídica ganha, agora, a proeminência proporcionada pela preocupação da mais alta Corte do país de tratar do tema de forma prioritária, sendo que a consequência, ao contrário do pretendido, acabará sendo o reforço da lógica jurídica trabalhista.

E o efeito curioso de tudo isso é que, depois de ser considerado velho desde o nascimento, o Direito do Trabalho está mais novo do que nunca!

São Paulo, 28 de setembro de 2016.

i












viii. Vide, a propósito: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O negócio é falar mal da CLT.” In: https://blogdaboitempo.com.br/2016/08/29/o-negocio-e-falar-mal-da-clt/

ix. Visualizar o programa em: http://fgvprojetos.fgv.br/eventos/seminario-comemorativo-dos-75-anos-da-justica-do-trabalho-e-70-anos-do-tribunal-superior-do

x. http://economia.estadao.com.br/aovivo/forunsestadao-cni

xi. http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2016/09/1,97669/forum-estadao-debate-a-modernizacao-das-relacoes-de-trabalho-no-mundo-e-no-brasil.html

xii. Vide, a propósito: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O dano moral nas relações de trabalho. Coleção para Entender Direito. São Paulo: Estúdio Editores, 2014.

xiii. Vide, a respeito: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O dano social e sua reparação.” Revista LTr, v.71, p.1317 - 1323, 2007. 

xiv. CASTELO, Jorge Pinheiro. “Do dano moral trabalhista.” Revista LTr 59-03/488-491.

xv. COSTA, Orlando Teixeira. “O trabalho e a dignidade do trabalhador.” Revista LTr 59-05/591-594.

xvi. SÜSSEKIND, Arnaldo Lopes. “Tutela da personalidade do trabalhador”. Revista LTr 59-05/595-598.

xvii. Vide, a propósito, SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O novo Código Civil do Trabalho.” In:

http://www.jorgesoutomaior.com/uploads/5/3/9/1/53916439/o_novo_c%C3%B3digo_civil_do_trabalho.pdf

xviii. “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” Por este artigo a boa-fé foi elevada a técnica de interpretação, no que tange às regras fixadas em um negócio jurídico, impedindo, assim, que a situação de desequilíbrio das partes possa significar a formação de negócios jurídicos que atendam apenas ao interesse de uma das partes, o que, evidentemente, contraria o princípio da boa fé.”

xix. “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.” 

xx. “Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.”

xxi. “Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.”

xxii. “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (....)VI- tiver por objetivo fraudar lei imperativa;”


Créditos da foto: reprodução

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12