terça-feira, 8 de novembro de 2016

A presunção da presunção de culpa

A presunção da culpa se torna algo absoluto, a eventual ausência de provas contra o réu o inculpa mais ainda, pois é "prova" de que ele as ocultou

                  Flavio Aguiar, de Berlim // http://cartamaior.com.br/

O extraordinário filme “O julgamento de Nuremberg”, de 1961, com direção de Stanley Kramer, em que quatro juízes alemães são julgados por crimes contra a humanidade durante o regime nazista, baseou-se livremente numa história real, o chamado “Caso Katzenberger”. Leo Katzenberger era um proeminente membro da comunidade judaica de Nuremberg e foi acusado de manter relações amorosas com uma jovem alemã, Irene Seiler, o que, na Alemanha nazista era considerado um crime. Não havia provas, apenas suposições. Tanto Leo como Irene declararam-se inocentes. Mas um juiz inescrupuloso, Oswald Rothaug, resolveu aproveitar-se da oportunidade para subir na carreira. Arrogou o caso para si e, sem provas, baseado apenas na sua “convicção”, julgou o par culpado. Como o julgamento acabou acontecendo em 1942, quando já vigorava a Lei Marcial (que, digamos, consagrava a exceção dentro do estado de exceção que já era o regime nazista), Katzenberger foi condenado à morte e executado. Irene foi condenada a dois anos de detenção por perjúrio. Depois da guerra Rothaug foi condenado å prisão perpétua, mas com o fim da “desnazificação”, promovido durante o governo de Konrad Adenauer, foi solto em 1956 e morreu livre, em 1967. Hoje seu nome é lembrado, ao lado do juiz favorito dos nazistas, Roland Freisler, como um dos abjetos assassinos da ordem jurídica alemã.
No filme, o principal acusado é Ernst Janning, um renomado jurista liberal, que, entre outros casos, julgou um semelhante ao real, de Katzenberger. O advogado de defesa, vivido na tela por Maximilien Schell, o que lhe valeu o Oscar de melhor ator, faz de tudo para inocentar Janning. No final, este rejeita a tese da inocência e dá um depoimento em que diz que o réu que julgara, um velho judeu acusado de ter relações com uma jovem (Judy Garland), fora condenado não por ser culpado ou pela apresentação de provas ou testemunhos convincentes, mas por ser judeu. Ou seja, ele fora condenado de antemão pela convicção de que deveria ser condenado.

Hoje em dia, no Brasil, temos acompanhado casos análogos, desde o chamado “mensalão” até a verdadeira caçada judicial hoje em curso contra o ex-presidente Lula. O que existe, de antemão, é a presunção da culpa do réu. Como esta presunção torna-se algo absoluto, a eventual ausência de provas contra o réu o inculpa mais ainda, pois é “prova” de que ele as ocultou, ou obstruiu o acesso da justiça a elas. Condena-se de antemão, baseando-se na convicção da culpa, mesmo sem provas. O caso mais impressionante, neste sentido, foi o do ex-ministro Palocci, preso porque poderia, eventualmente, destruir provas ainda não encontradas. Em suma, prende-se o réu até que se encontrem as provas contra ele. Quanto mais se demorar para encontrar as provas, mais ele deve ficar preso preso, nesta lógica que consagra o estado de exceção em que já estamos vivendo. O julgamento do impeachment da presidenta Dilma seguiu caminho parecido. Não havia nem há provas de que ela tenha cometido qualquer crime. Mas para seus julgadores (ou algozes) isto não importava. Com mais da metade de seus julgadores acusados de algum crime (corrupção, lavagem de dinheiro, sonegação, até violação de direitos humanos), a a inocência da presidenta era a “prova” de seu "crime" e ela acabou se tornando o bode expiatório de uma tentativa canhestra de parar as investigações sobre corrupção no país. Com sua deposição, havia a esperança de que elas viessem a ter um fim.

A possibilidade do estado de exceção (chame-se estado de defesa, emergência, sítio) existe na legislação brasileira, previsto ele para casos de guerra, catástrofes naturais, calamidade ou comoção extraordinárias, grave perturbação da ordem pública. Não estamos diante de nenhum destes casos. A implantação de um estado de exceção foi consagrada na decisão do Tribunal Regional Federal da 4a. Seção, de 22/09 p. p., que colocou a Operação Lava Jato acima “das regras dos processos comuns”, além de estar sendo praticada na nova série de invasões policiais (como no caso da Escola Florestan Fernandes do MST, além de outros casos) sem mandado judicial que as ampare. Uma consagração deste tipo, sem que se verifique a necessidade objetiva deste estado de exceção, consiste num verdadeiro golpe de estado, pois seu objetivo termina sendo o de privar indivíduos do amparo da legislação em vigor para que possam se defender.

Uma das principais características deste estado de exceção, em que seus aplicadores possam até se valer, aparentemente, das leis, para por-se acima delas, é a usurpação de funções. Juízes, antes de julgar, agem como promotores. Promotores, além de acusar, agem como juízes. Eventualmente policiais, além de policiar, acumulam aquelas funções. A mídia conservadora a tudo acoberta, pois policia, acusa, julga e condena de antemão. Primeiro se aponta o criminoso, depois vai se investigar a sua vida ater encontrar algo que possa ser definido como um crime, mesmo sem provas. Juízes, promotores e policiais “vazam” informações seletivamente para a mídia, como se fossem repórteres. Nos casos de “delação premiada”, alguns chegam ao ponto de instruir os delatores sobre que tipo de delação lhes interessa.

Tudo isto, no fundo, se fundamenta numa presunção exarada por um jurista alemão que se tornou justificador do regime nazista que, diga-se de passagem, também foi instaurado, em 1933, através de um golpe parlamentar que deu ao Führer poderes excepcionais de legislar acima da Constituição. Em alemão o estado de exceção chama-se “Ausnahmezustand”, e Schmitt definiu que é “soberano” quem decide sobre “a exceção”, ou seja, sobre "o momento de sair fora do império da lei em nome do interesse público”. Não é à toa que Schmitt via na teologia o fundamento da jurisprudência humana, pois o “soberano” deveria agir como um deus: ele mesmo criar o seu mundo e as leis que o regem. 

A palavra “presunção” tem um duplo significado em português comum: “suposição” e “arrogância”. No mundo jurídico ela significa uma dedução que se estabelece como verdadeira, mesmo que haja indícios ou até provas em contrário. As fronteiras entre estas três acepções podem tornar-se muito tênues, e no caso dos “estados de exceção” implantados arbitrariamente, elas costumam andar de mãos dadas. Os supostos “soberanos” da exceção que se torna regra comum costumam basear-se na convicção arrogante da própria infalibilidade. Como se julgam agentes da ordem acima da própria ordem, verdadeiros salvadores da pátria, eventuais erros lhes serão perdoados em função da ilimitada s série de “acertos” que terão em sua bagagem. Triturar direitos dos réus condenados de antemão não é um erro, pois criminosos não têm, nesta visão, o direito de defender-se, pois isto equivale a uma obstrução da justiça. Nas aparências o direito à defesa continua em vigor, mas na prática ele é negado, pois o acusado é condenado de antemão, com ajuda da mídia, e assim procura-se fazer a opinião pública voltar-se contra ele e assim pressionar outras instancias jurídicas que possam apreciar o caso. Frequentemente, pois, como se vê, a presunção da própria infalibilidade faz dos agentes da exceção um bando de presunçosos.

No filme de Kramer, de 1961, o juiz Janning (o nome dele lembra também vagamente um dos grandes nomes da tradição jurídica liberal do mundo germânico do século XIX, Rudolph von Jhering) procura se justificar, embora se auto-condene, dizendo que pensava ser o regime nazista algo passageiro, e que era necessário estabelecer compromissos com ele em função de seu caráter efêmero. Ao final, ele diz ao juiz norte-americano (vivido por Spencer Tracy; Janning é Burt Lancaster) que não esperava que o regime de Hitler pudesse “chegar a este ponto”, de milhões de inocentes mortos. O juiz, antes seu admirador, agora julgador, diz a Janning: “o senhor chegou neste ponto quando condenou o primeiro inocente”. 

A violação da lei que se faz em nome da presunção de culpa, que substitui a presunção de inocência característica dos regimes jurídicos consistentes, é um Rubicão sem volta que, mais cedo ou mais tarde, mesmo que seja sob a forma de memória ou esquecimento, se transforma num pântano onde se afogam seus perpetradores. Freisler e Rothaug que o digam, desde a lata de lixo da História onde jazem.


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