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Leonardo Isaac Yarochewsky
Advogado Criminalista
Advogado Criminalista
Há muito as prisões provisórias (preventivas ou temporárias) deixaram de ser uma exceção – a ultima ratio – para se tornarem a regra. Por mais que se diga que a prisão cautelar somente deva ser decretada em nome da extrema necessidade e, mesmo assim, quando não há outro remédio processual menos gravoso em substituição, esta vem perdendo o caráter provisório e excepcional se transformando em definitiva, aos olhos daqueles que não enxergam o processo penal à luz da Constituição da República. A prisão provisória não pode se constituir em antecipação da tutela penal – execução provisória da pena –, também, não deve ter caráter de satisfatividade, conforme o próprio STF já decidiu. Assim, não é despiciendo salientar que o status libertatis é a regra por força da Constituição da República e dos princípios norteadores do Estado democrático de direito.
Contudo, em nome de um ilusório combate à criminalidade e como forma de antecipação da tutela penal, a prisão provisória vem sendo decretada a rodo – notadamente nas operações espetaculosas das forças tarefas que unem a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça Federal – em assalto aos direitos e garantias fundamentais. Não é sem razão que cerca de 40% das pessoas que estão presas no Brasil são presos provisórios (prisão preventiva) e que sequer foram julgadas na primeira instância, conforme levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen). São quase 250 mil presos provisórios, diz o relatório Infopen divulgado em 24 de abril do corrente ano.
Além de constituir a indevida antecipação da tutela penal, de violar o princípio da presunção de inocência, ainda que mitigado pelo STF, as prisões provisórias constituem, hodiernamente, um “espetáculo” apresentado pela mídia e pelos agentes da repressão estatal (força tarefa) à sociedade.
Nota-se que quase a totalidade das prisões efetuadas pela força tarefa da operação “Lava Jato” e de tantas outras são registradas com o nascer do sol pelas câmaras de televisão e, igualmente, fotografadas pelas lentes das poderosas máquinas dos fotógrafos sedentos por uma imagem exclusiva para ilustrar a primeira página do jornal.
Neste diapasão, dias atrás, repercutiram as prisões de dois ex-governadores do Estado do Rio de Janeiro. Primeiramente a prisão de Anthony Garotinho ocorrida na última quarta-feira (16).
O ex-governador foi arrastado de maca, aos berros, para a prisão para a felicidade das câmeras estrategicamente colocadas para focar no melhor ângulo. Seu corpo foi servido à espetacularização da justiça e sua imagem está estampada em memes, notícias e comemorações pela internet.
Por ser impopular, tende-se a entender a prisão dele como merecida. O gozo de muitas pessoas absortas no prazer em ver a desgraça alheia seria justificável tendo em vista a figura política.
Mais adiante, o sempre crítico Brenno Tardelli, diretor de redação do Justificando, observa que: “A prisão de Garotinho acontece em um contexto de banalização de prisões preventivas, no uso da mídia pelo aparato policial, acusatório e judicial para trucidar o direito de defesa e inviabilizar a recuperação do indivíduo”.
Vinte e quatro horas depois da prisão de Garotinho foi a vez do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB-RJ), ser preso preventivamente na manhã do dia 17 pela operação “Calicute”, um desmembramento da operação “Lava Jato”, que investiga recebimento de propina em obras no Rio. Cabral é acusado de liderar um esquema que desviou mais de 220 milhões de reais em contratos com diversas empreiteiras para obras no Estado.
Sérgio Cabral, preso pela Polícia Federal, teve a cabeça raspada após chegar ao complexo penitenciário de Gericinó, em Bangu, Zona Oeste do Rio. Cabral também foi fotografado em várias posições usando o uniforme da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). A foto constrangedora e humilhante foi amplamente divulgada pela grande mídia.
Durante muito tempo, e ainda hoje, crimes violentos e de sangue despertam um fascínio mórbido em boa parte da sociedade. Não é sem razão que parte da imprensa se dedica ou pelo menos trata com maior realce os fatos que são cobertos por sangue, é a chamada imprensa sensacionalista. Contudo, hoje, não apenas os crimes de sangue têm atraído a população. Ao lado dos crimes violentos, e até mesmo com mais destaque, os crimes de “corrupção”, notadamente os que possuem envolvimento de políticos, vem ganhando cada vez mais espaço e evidência na imprensa brasileira e mundial. Assim, quando um político ou um empresário vai preso, há um regozijo de boa parte da sociedade manipulada pela mídia, em especial se o político é daqueles considerado inimigo.
Necessário observar que a publicidade dos julgamentos surgiu para proteger os indivíduos de eventuais abusos e arbitrariedades, para proteger e garantir seus direitos. Assim, não pode a publicidade, na perspectiva do processo penal democrático, ser utilizada e manipulada para humilhar e constranger os acusados. Lembrando, ainda, que a Constituição da República assegura o direito à intimidade e à vida privada, o que resulta na vedação à exposição vexatória do preso.
Michel Foucault já se referia ao suplício como forma de ritual para um grandioso espetáculo. “Na forma lembrada explicitamente do açougue, a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo: cada pedaço é exposto no balcão”.[2] Mais adiante Foucault observa que “há também alguma coisa de desafio e de justa na cerimônia do suplício. Se o carrasco triunfa, se consegue fazer saltar com um golpe a cabeça que lhe mandaram abater, ele a mostra ao povo, põe-se no chão e saúda em seguida o público que o ovaciona muito, batendo palmas”.[3]
Rubens Casara, em livro sobre o processo penal do espetáculo, diante da percepção de Guy Debord de que toda a vida das sociedades “se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos…”, salientou que no processo penal do espetáculo
não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo não deseja chegar a nada, nem respeitar qualquer valor, que não seja ele mesmo. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento… No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes, substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentais… O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo. [4]
Infelizmente, a dignidade da pessoa humana como postulado do Estado democrático de direito e a máxima kantiana de que o homem é um fim em si mesmo vem sendo atropelada em nome do punitivismo e do autoritarismo. Na bandeira do punitivismo se lê que “os fins justiçam os meios” e aos elegidos inimigo (não pessoa) não é assegurado nenhum direito e nenhuma garantia. Em nome do espetáculo punitivo o homem passa a ser meio e mero objeto dos fins penais para satisfazer os espectadores.
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado e professor.
[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 48.
[2] FOUCAULT, op. cit. p. 48.
[3] CASARA, R. R. Rubens. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
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