domingo, 6 de novembro de 2016

Formação do Estado brasileiro se sustenta numa relação entre as elites políticas

Formação do Estado brasileiro se sustenta numa relação entre as elites políticas

João Paulino de Oliveira Neto //http://justificando.com/

A instabilidade da democracia no Brasil vem crescendo ao longo de alguns anos, ainda que haja quem defenda que ela nunca esteve presente. Talvez o melhor seja estar em acordo com estes. Afinal, o processo de redemocratização brasileira foi deficitário de uma verdadeira justiça de transição que julgasse os agentes do Estado que torturaram, mataram e fizeram terríveis atrocidades legitimados pela ditadura civil-militar; e principalmente, que possibilitasse ser recepcionada a Constituição e a Democracia em seus sentidos transformadores, o que seria justamente necessário uma abertura a uma mudança de paradigma para se pensar o Estado e o próprio sistema de justiça no país, em especial o penal.

Nessa mudança de paradigma um dos pontos principais, sem sombra de dúvidas, seria a inserção da Constituição e do seu projeto político como “norte” que direcionasse os rumos do país em um caminho de construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Em certa medida, é justamente fazer a retomada, levando em consideração as peculiaridades nacionais, de um dirigismo constitucional (como sustentam diversos autores, como Gilberto Bercovici[1] e Lenio Streck ). Neste aspecto seria preciso que os poderes Executivo e Legislativo tomassem uma postura diferente, no entanto, talvez seja justamente no Judiciário que devesse residir a mais urgente e necessária mudança no que diz respeito à recepção desse novo paradigma.

O modo de se pensar o Judiciário e a sua atuação deveria ter sido sensivelmente modificada após 1988, haja vista que os juízes passam a ter a responsabilidade de ser garantidores de direitos fundamentais e devem encontrar respostas constitucionalmente adequadas (Lênio Streck [2]) como exigências de um regime democrático; este que deve ser defendido pelo Ministério Público (como nos informa o art.127 da CF/88) não sendo mero algoz em processos penais.

Assim deveria ser.

A realidade é que não houve uma verdadeira transição no Brasil em nenhum de seus aspectos, nem os mais primordiais. Por exemplo, foram equalizadas as ações dos agentes de Estado e os membros de grupos que fizeram resistência ao regime militar, permanecendo abertas as feridas de um regime devastador e que a história ainda não cicatrizou, nem irá cicatrizar.

Outra face desse poliedro (já que é impossível reduzir a dois lados de uma moeda) e que demonstra a frágil transição brasileira é a atuação das polícias, em especial as militares, por todo o país que continuam atuando de maneira autoritária, desrespeitando os direitos dos cidadãos e que caçam um estereótipo muito específico que se construiu ao longo de nossa triste história; que além disso, simplesmente reproduz a maneira como foram adestrados, em treinamentos desumanos e uma estrutura antidemocrática, que não poderiam levar a outra coisa senão uma polícia que caça (não que protege), atendendo a interesses muito bem determinados. E assim percebemos que não saímos do Estado de Exceção.

Nesse cenário, atingimos o apogeu daquilo que podemos chamar de “fetiche pelo golpismo (e autoritarismo)”, quando concluiu-se o processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff sem restar configurado crime de responsabilidade, mas que ainda assim se legitimou sob o véu da “legalidade”. Para além do fato, sobressalta o simbólico: há a drástica ruptura com o regime democrático e que passamos a legitimar a exceção com a retórica da “pseudolegalidade” e que inclusive possibilita o ataque à direitos fundamentais sob argumento da excepcionalidade das circunstâncias (argumento utilizado inclusive pelo TRF-4 ao julgar processo contra Sérgio Moro). Trata-se exatamente do que Agamben acerca do Estado de Exceção (livro homônimo) como suspensão da própria ordem jurídica (e portanto, da Constituição e dos Direitos Fundamentais, portanto).

Após o golpe que se consolidou em 2016, se intensificaram medidas autoritárias e que padecem de inconstitucionalidade, mas nos são impostas. Por exemplo, a PEC241 (agora, PEC55 no Senado) em que há um claro desfazimento (do pouco que existe) do Estado Social brasileiro e que recebe aplausos mesmo sendo flagrante sua inconstitucionalidade tudo em detrimento de um programa neoliberal perverso (que já se antevia na “Ponte para o futuro”). Apesar de que é o que já se poderia esperar das nossas classes dirigentes.

Entretanto, a atuação do Poder Judiciário (em especial, o STF) é o que merece maior atenção, pois retrata justamente a inobservância da mudança paradigmática pós-constituição 88. Nesta esteira o Judiciário deveria ter atribuído para si a responsabilidade de produzir respostas constitucionalmente adequadas (como bem explica Lenio Streck) de maneira a garantir os direitos fundamentais e manter um controle ao próprio poder, como essencial a um ambiente democrático.

No entanto, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, agem em completo desrespeito ao próprio texto Constitucional, mesmo sendo seu guardião. Aqui é salutar refletirmos. A Constituição nos diz que o STF é seu guardião, explicitando isso fica claro que ela é coisa diversa da consciência dos ministros da Suprema Corte, afinal, ela constitui. Eis o busílis! A carta magna através de seu texto se coloca como horizonte que dá sentido à sua interpretação e a da legislação infraconstitucional. Por uma questão de democracia, é preciso respeito ao seu texto. Porém, o nosso Judiciário e o Supremo não estão preparados para isso e a fragmentam em detrimento de opiniões pessoais, utilitaristas.

Para entender essa falta de adequação, nada melhor que Sérgio Adorno[3]:

O processo de expulsão das forças democráticas do âmbito institucional e a constituição de laços de cooperação entre facções das elites políticas somente se concretizaram com a extensão progressiva do controle burocrático sobre todas as atividades do Estado. Nesse contexto, o Estado brasileiro erigiu-se como um Estado de magistrados, dominado por juízes, secundados por parlamentares e funcionários de formação profissional jurídica.

Em outras palavras: a formação do Estado brasileiro se sustenta numa relação entre as elites políticas que são, em sua maioria, representantes de interesses diversos da sociedade como um todo e atende aos interesses do patrimonialismo, e os membros do poder judiciário que com suas canetas legitimam os atos daquele outro grupo, quando não são eles mesmos os agentes que promovem a introdução dessas alterações políticas, mesmo que à custo de garantias constitucionais, mesmo que relativizem o inimaginável. Esse é o grande problema do relativismo, que é o instrumento do Judiciário autoritário. Tudo é “relativizável” e portanto não existe limite a absolutamente nada. Se excepciona os sentidos que servem como horizonte, fundamento e limite. Esses sentidos que serviriam justamente para dizer: “aqui você não pode ir”, é o justamente o que vem faltando ao STF e aos membros do Judiciário. Após o esvaziamento dos seus sentidos a própria Constituição deixa de Constituir. E essa é a tônica do nosso Estado de Exceção!

Na nossa atualidade, o agente que comanda a excepcionalidade é aquele que deveria ser o garantidor dos direitos fundamentais, ser o elemento contramajoritário à política quando esta estivesse seguindo por caminhos tortuosos. Vejam a que ponto chegamos: durante o regime militar as torturas eram executadas sob ordem do Executivo, guardando ao Judiciário, no máximo (mas não menos repugnante), a omissão; hoje ao contrário a tortura vem sob batuta daquele que deveria ser o primeiro a se posicionar contra isso, basta vermos a decisão recente do Juiz Alex Costa de Oliveira que autorizou a utilização de meios de tortura (e não adianta quererem também relativizar isso) para forçar a desocupação Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga. Isso, poucos dias depois do STF aniquilar com a garantia de presunção de inocência e o direito de greve. Sem falar as atrocidades que se vêm cometendo ao longo de inúmeros processos criminais por todo o país e com holofotes nos últimos tempos, na Operação Lava Jato.

O nosso Judiciário, é hoje o Poder que comanda o Estado de Exceção à brasileira. Sofremos um golpe a cada decisão que desrespeita um direito fundamental. A nossa democracia está em cacos e nossa Constituição em frangalhos.

O escritor Eduardo Alves da Costa em belo texto nos diz: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada”. Antes de que não possamos dizer mais nada, passemos a gritar em uma só voz a luta pela liberdade e pela Democracia.

João Paulino de Oliveira Neto é estudante de Direito da Universidade Potiguar/RN. Ativista dos Direitos Humanos.


[1] A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de informação legislativa, v. 36, n. 142, p. 35-51, abr./jun. 1999

[2] Lênio Streck: Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

[3]Adorno, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.78.

SOBRE O AUTOR

João Paulino de Oliveira Neto
Joao Paulino de Oliveira Neto
Graduando Direito da Universidade Potiguar/RN. Ativista dos Direitos Humanos.

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