João Paulino de Oliveira Neto //http://justificando.com/
A instabilidade da democracia no Brasil vem crescendo ao longo de alguns anos, ainda que haja quem defenda que ela nunca esteve presente. Talvez o melhor seja estar em acordo com estes. Afinal, o processo de redemocratização brasileira foi deficitário de uma verdadeira justiça de transição que julgasse os agentes do Estado que torturaram, mataram e fizeram terríveis atrocidades legitimados pela ditadura civil-militar; e principalmente, que possibilitasse ser recepcionada a Constituição e a Democracia em seus sentidos transformadores, o que seria justamente necessário uma abertura a uma mudança de paradigma para se pensar o Estado e o próprio sistema de justiça no país, em especial o penal.
Nessa mudança de paradigma um dos pontos principais, sem sombra de dúvidas, seria a inserção da Constituição e do seu projeto político como “norte” que direcionasse os rumos do país em um caminho de construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Em certa medida, é justamente fazer a retomada, levando em consideração as peculiaridades nacionais, de um dirigismo constitucional (como sustentam diversos autores, como Gilberto Bercovici[1] e Lenio Streck ). Neste aspecto seria preciso que os poderes Executivo e Legislativo tomassem uma postura diferente, no entanto, talvez seja justamente no Judiciário que devesse residir a mais urgente e necessária mudança no que diz respeito à recepção desse novo paradigma.
O modo de se pensar o Judiciário e a sua atuação deveria ter sido sensivelmente modificada após 1988, haja vista que os juízes passam a ter a responsabilidade de ser garantidores de direitos fundamentais e devem encontrar respostas constitucionalmente adequadas (Lênio Streck [2]) como exigências de um regime democrático; este que deve ser defendido pelo Ministério Público (como nos informa o art.127 da CF/88) não sendo mero algoz em processos penais.
Assim deveria ser.
A realidade é que não houve uma verdadeira transição no Brasil em nenhum de seus aspectos, nem os mais primordiais. Por exemplo, foram equalizadas as ações dos agentes de Estado e os membros de grupos que fizeram resistência ao regime militar, permanecendo abertas as feridas de um regime devastador e que a história ainda não cicatrizou, nem irá cicatrizar.
Outra face desse poliedro (já que é impossível reduzir a dois lados de uma moeda) e que demonstra a frágil transição brasileira é a atuação das polícias, em especial as militares, por todo o país que continuam atuando de maneira autoritária, desrespeitando os direitos dos cidadãos e que caçam um estereótipo muito específico que se construiu ao longo de nossa triste história; que além disso, simplesmente reproduz a maneira como foram adestrados, em treinamentos desumanos e uma estrutura antidemocrática, que não poderiam levar a outra coisa senão uma polícia que caça (não que protege), atendendo a interesses muito bem determinados. E assim percebemos que não saímos do Estado de Exceção.
Nesse cenário, atingimos o apogeu daquilo que podemos chamar de “fetiche pelo golpismo (e autoritarismo)”, quando concluiu-se o processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff sem restar configurado crime de responsabilidade, mas que ainda assim se legitimou sob o véu da “legalidade”. Para além do fato, sobressalta o simbólico: há a drástica ruptura com o regime democrático e que passamos a legitimar a exceção com a retórica da “pseudolegalidade” e que inclusive possibilita o ataque à direitos fundamentais sob argumento da excepcionalidade das circunstâncias (argumento utilizado inclusive pelo TRF-4 ao julgar processo contra Sérgio Moro). Trata-se exatamente do que Agamben acerca do Estado de Exceção (livro homônimo) como suspensão da própria ordem jurídica (e portanto, da Constituição e dos Direitos Fundamentais, portanto).
Após o golpe que se consolidou em 2016, se intensificaram medidas autoritárias e que padecem de inconstitucionalidade, mas nos são impostas. Por exemplo, a PEC241 (agora, PEC55 no Senado) em que há um claro desfazimento (do pouco que existe) do Estado Social brasileiro e que recebe aplausos mesmo sendo flagrante sua inconstitucionalidade tudo em detrimento de um programa neoliberal perverso (que já se antevia na “Ponte para o futuro”). Apesar de que é o que já se poderia esperar das nossas classes dirigentes.
Entretanto, a atuação do Poder Judiciário (em especial, o STF) é o que merece maior atenção, pois retrata justamente a inobservância da mudança paradigmática pós-constituição 88. Nesta esteira o Judiciário deveria ter atribuído para si a responsabilidade de produzir respostas constitucionalmente adequadas (como bem explica Lenio Streck) de maneira a garantir os direitos fundamentais e manter um controle ao próprio poder, como essencial a um ambiente democrático.
No entanto, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, agem em completo desrespeito ao próprio texto Constitucional, mesmo sendo seu guardião. Aqui é salutar refletirmos. A Constituição nos diz que o STF é seu guardião, explicitando isso fica claro que ela é coisa diversa da consciência dos ministros da Suprema Corte, afinal, ela constitui. Eis o busílis! A carta magna através de seu texto se coloca como horizonte que dá sentido à sua interpretação e a da legislação infraconstitucional. Por uma questão de democracia, é preciso respeito ao seu texto. Porém, o nosso Judiciário e o Supremo não estão preparados para isso e a fragmentam em detrimento de opiniões pessoais, utilitaristas.
Para entender essa falta de adequação, nada melhor que Sérgio Adorno[3]:
O processo de expulsão das forças democráticas do âmbito institucional e a constituição de laços de cooperação entre facções das elites políticas somente se concretizaram com a extensão progressiva do controle burocrático sobre todas as atividades do Estado. Nesse contexto, o Estado brasileiro erigiu-se como um Estado de magistrados, dominado por juízes, secundados por parlamentares e funcionários de formação profissional jurídica.
Em outras palavras: a formação do Estado brasileiro se sustenta numa relação entre as elites políticas que são, em sua maioria, representantes de interesses diversos da sociedade como um todo e atende aos interesses do patrimonialismo, e os membros do poder judiciário que com suas canetas legitimam os atos daquele outro grupo, quando não são eles mesmos os agentes que promovem a introdução dessas alterações políticas, mesmo que à custo de garantias constitucionais, mesmo que relativizem o inimaginável. Esse é o grande problema do relativismo, que é o instrumento do Judiciário autoritário. Tudo é “relativizável” e portanto não existe limite a absolutamente nada. Se excepciona os sentidos que servem como horizonte, fundamento e limite. Esses sentidos que serviriam justamente para dizer: “aqui você não pode ir”, é o justamente o que vem faltando ao STF e aos membros do Judiciário. Após o esvaziamento dos seus sentidos a própria Constituição deixa de Constituir. E essa é a tônica do nosso Estado de Exceção!
Na nossa atualidade, o agente que comanda a excepcionalidade é aquele que deveria ser o garantidor dos direitos fundamentais, ser o elemento contramajoritário à política quando esta estivesse seguindo por caminhos tortuosos. Vejam a que ponto chegamos: durante o regime militar as torturas eram executadas sob ordem do Executivo, guardando ao Judiciário, no máximo (mas não menos repugnante), a omissão; hoje ao contrário a tortura vem sob batuta daquele que deveria ser o primeiro a se posicionar contra isso, basta vermos a decisão recente do Juiz Alex Costa de Oliveira que autorizou a utilização de meios de tortura (e não adianta quererem também relativizar isso) para forçar a desocupação Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga. Isso, poucos dias depois do STF aniquilar com a garantia de presunção de inocência e o direito de greve. Sem falar as atrocidades que se vêm cometendo ao longo de inúmeros processos criminais por todo o país e com holofotes nos últimos tempos, na Operação Lava Jato.
O nosso Judiciário, é hoje o Poder que comanda o Estado de Exceção à brasileira. Sofremos um golpe a cada decisão que desrespeita um direito fundamental. A nossa democracia está em cacos e nossa Constituição em frangalhos.
O escritor Eduardo Alves da Costa em belo texto nos diz: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada”. Antes de que não possamos dizer mais nada, passemos a gritar em uma só voz a luta pela liberdade e pela Democracia.
João Paulino de Oliveira Neto é estudante de Direito da Universidade Potiguar/RN. Ativista dos Direitos Humanos.
[1] A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de informação legislativa, v. 36, n. 142, p. 35-51, abr./jun. 1999
[2] Lênio Streck: Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
[3]Adorno, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.78.
SOBRE O AUTOR
Joao Paulino de Oliveira Neto
Graduando Direito da Universidade Potiguar/RN. Ativista dos Direitos Humanos.
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