terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Negrinho do Pastoreio e a dominação indolor. Por Jari da Rocha

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  locatelli
Embora divirjam duas vertentes catastróficas, se um furacão ou se uma bomba atômica foi  a causa que virou o país do avesso, tateamos, entre os escombros, para ver o que sobrou.
Análises preliminares diagnosticam culpados de toda ordem e esferas. Essa necessidade de ‘marcar na paleta’ os responsáveis revela nossa ânsia e angústia para tentar, ao menos, entender o que foi e o que será que será?

Conflitos e bate-bocas se estendem noite à dentro pelas ruas e botecos e pelas redes sociais depois de um domingo previsível.
Sem outro tema relevante, abóboras recortadas e iluminadas (por velas) que imitam figuras monstruosas, amenizam as querelas e dão um pouco de paz aos corações à beira de colapsos.
halloween parece ter caído no gosto do brasileiro.
Impressionaria a expansão de uma tradição tão distante, não fossem os milhares de filmes, que reconstroem a brincadeira adotada pelo país das estrelas frias, espraiados nos lares de 98% das famílias brasileiras em sessões da tarde infinitas.
O que antes só acontecia em raros lares – com filhos de intercâmbios estudantis – e nos cursinhos de inglês, agora faz parte do calendário, até mesmo, do salão paroquial da cidadezinha mais embrenhada nalgum cafundó.
Todos se divertem com suas fantasias e maquiagens cadavéricas.
Aqui no Rio Grande, assim como em todas as demais partes do Brasil, as lendas regionais – por serem menos atrativas, decerto – permanecem fechadas em livros ilustrados, de onde são tirados por professores dedicados para mostrar às crianças algo que tenha relação com a sua cultura. Normalmente, com raras exceções, isso não ultrapassa a sala de aula.
Quando o pelotense Simões Lopes Neto (em junho, fez 100 anos a sua morte) se debruçou em seus contos gauchescos e lendas do Sul, acreditava estar cristalizando e perpetuando a cultura gaúcha à posteridade. Em parte, conseguiu isso.
Negrinho do pastoreio conta a história de um menino escravo brutalmente torturado e  morto pelo patrão, um estancieiro, homem ruim, maldoso e absolutamente covarde. Uma história de dominador e dominado.
Há versões, adaptadas para crianças, com belas ilustrações que contam a sina do ‘menino negro’:
Em um dia de inverno, fazia muito frio e o fazendeiro mandou que um menino negro de quatorze anos fosse pastorear cavalos e potros que acabara de comprar. No final da tarde, quando o menino voltou, o estancieiro disse que faltava um cavalo baio. Pegou o chicote e deu uma surra no menino.
A versão original, de Simões Lopes Neto, no entanto, é a mais cruel:
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe uma surra de relho… dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu…
E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos… E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.
Eis a metáfora da morte que não ameniza a crueldade da vida, mas que dá uma esperança única em tempos que, para o dominado, só restava a salvação depois de morrer.
Ao lado do negrinho, estava a madrinha dos desapadrinhados, a Virgem Nossa Senhora. Depois, ele monta o cavalo baio e sai pastoreando pelas noites frias do pampa.
Vê se com demasiada familiaridade crianças fantasiadas de fantasmas e monstrinhos, batendo de porta em porta e repetindo o bordão que resume a lenda irlandesa adaptada.
A ideia de mortos saírem do cemitério para virem atazanar a nossa vida é bem mais lúdica, interessante e confortadora.
Não deve ‘pegar bem’ sair por aí travestido de negrinho escravo e com marcas do chicote rijo ou marcas das picadas de formigas ferozes espalhadas pelo corpo.
Fantasmas que saem por um dia do cemitério são menos incômodos que pixotes pedintes de porta em porta ou de sinaleira em sinaleira.
Essa proximidade com a realidade não tem graça.
Se observamos como uma lenda substitui a outra sutilmente, nos damos conta de que as maneiras de dominação se dão das formas mais ‘inocentes’.
A dominação através da força do capital precedida pela dominação através da língua, da cultura e da crença.
Curiosamente, Simões Lopes Neto era contemporâneo de Araminta Ross (1822 – 1913) conhecida por Harriet Tubman, a abolicionista que teria dito em determinado momento de sua luta: “Libertei mil escravos. Podia ter libertado outros mil se eles soubessem que eram escravos”.
Ninguém mais percebe, mesmo fantasiado da cabeça aos pés, que adotou, ‘espontaneamente’ outro símbolo. Por que, então, notaria que adotou outros sonhos, outra realidade e outras convicções?
Daí para entregar as riquezas de um país sem resistência é meio passo.
A fantasia ameniza o sofrimento da luta brava da vida, mas não salva do viralatismo cultural.
Segundo a lenda, quando se perde alguma coisa e se tem dificuldade de encontrá-la é preciso acender um toco de vela e pedir para que o Negrinho do Pastoreio a encontre.
Não sei se funciona com identidade, esperança, dignidade ou, então, para nos mostrar onde foi que nos perdemos.
Mas sei que se o Negrinho não achar… ninguém mais…

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