quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A possível internalização da superpotência por dentro do Estado brasileiro

                       BRUNO LIMA ROCHA // http://jornalggn.com.br/

A possível internalização da superpotência por dentro do Estado brasileiro

por Bruno Lima Rocha

Iniciar um texto neste portal não é tarefa fácil. A abrangência é nacional, o país está em crise política e os temas que importam são todos delicados. Tal relevância ganha mais destaque quando compreendermos que os atingidos por críticas deste analista podem – e tem o poder efetivo – de revidarem, tanto no nível legal como em outras formas de influência. Ainda assim, é nosso dever seguir em frente. A gravidade do momento é da envergadura do desafio; assim, entendo ser mais útil uma análise de profundidade, aportando elementos teórico-operacionais neste tema tão sensível, e nos artigos subsequentes, ir aumentando os elementos substantivos. Por fim, escrever aqui também implica outra encruzilhada: a de combinar o máximo de rigor com a necessária crítica à esquerda do governo deposto, sem com isso fazer coro com os discursos golpistas. Vamos ao debate, temos muito a fazer.

A pergunta-chave

Para começarmos este debate, é necessário estabelecer uma pergunta-chave, algo que nos faça compreender o nível de vulnerabilidade que o Brasil sofre – ou vem sofrendo – dentro do Sistema Internacional, e especificamente quanto à soberania decisória.

“Quais são as vulnerabilidades externas que podem ser internalizadas no Estado brasileiro, de modo a violar nossa soberania e diminuir as posições do país no Sistema Internacional?”

É do jogo dos Estados influenciar e serem influenciados, sendo que alguns métodos identificam evidente violação de soberania. Se nosso país estivesse na Ásia Central ou mesmo Europa do leste, teríamos de nos preocupar com a projeção de poder da Federação Russa na era Putin. Como estamos na América Latina, nosso hegemon são os Estados Unidos da América (EUA), país com o qual hoje temos mais laços de dependência financeira, cibernética, cultural e em parte militar, do que necessariamente dependência econômica. 

As violações de soberania e hostilidades, quando não se tratam de operações especiais permanentes - como os EUA coordenam através do Estado Maior Conjunto de Forças Especiais - USSOCOM (ver socom.mil), particularmente pelo exército privado da Casa Branca (ver socom.mil/pages/jointspecialoperationscommand.aspx), podem ser dar através de modalidades de ataque eletrônico, como os perpetrados pela NSA (Agência Nacional de Segurança, ver nsa.gov), agências afins ou forças-tarefa conjuntas. Outras modalidades de agressão vêm sendo debatidas nesta publicação, como as chamadas revoluções coloridas, a guerra de 4ª geração, ou a variável mais recente de guerra híbrida. A possibilidade bastante presente em países de sistema liberal-democrático e separação entre poderes, é a Guerra Legal (Lawfare) ou a guerra dentro do aparelho Judiciário e do Ministério Público dos países-alvo destas ações.

Voltando ao tema que desenvolve o argumento, entendo que, além de ser uma preocupação permanente de qualquer agrupação, coligação ou partido político que esteja à frente do Poder Executivo brasileiro, esta pergunta-chave deve ser alvo de acompanhamento contínuo em se tratando de um governo de centro-esquerda. Ao tomar posse em 1º de janeiro de 2003, estou afirmando que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua equipe de governo, apesar de contar com a participação de dezenas de ex-guerrilheiros, jamais pensara nesta possibilidade (a de ser alvo de violação de soberania ou hostilidade). Se o fez, a efetividade foi nula (e o proceder dos ministros à frente da pasta da Justiça comprovam essa afirmação), pois não deixou para a sucessora uma mentalidade operacional de vigilância permanente sobre as possíveis dissidências dentro do aparelho de Estado a servirem de aliados internos das projeções de poder dos EUA sobre nós. Caso não o tenha feito – e entendo que não fez nada – a equipe de governo assessorada por dois ex-combatentes contra a ditadura, primeiro com o titular da Casa Civil José Dirceu de Oliveira e Silva e segundo a própria ex-presidente, então substituta de Dirceu, Dilma Vana Rousseff, também é responsável por esta nulidade. 

Quando digo atenção e alerta permanente, não estou me referindo a ter uma agenda do Executivo onde os órgãos de Estado, encabeçados pelo governo de turno, rendam contas aos titulares das pastas, Agência, Gabinete e elaborem relatórios oriundos da comunidade de inteligência. Trata-se de uma atitude prévia à tomada de posse, partindo do princípio evidente que na América Latina, por mais abrandada que seja a postura de um governo marcado ao centro, há sempre uma possibilidade de virada de mesa. Outra postura, que pode ser generalizada para outros países da Semi Periferia, em especial a Estados com capacidade de se tornarem Potências Médias, é a visão do hegemon sobre nós. Obviamente, esta preocupação deveria se materializar em alguma comissão de acompanhamento, ou grupo de trabalho, de extrema confiança política, poder de influência sobre as decisões do núcleo duro do governo e imune a “vazamentos” ou infiltrações.

Não há necessidade de explicar agora, após o golpe de 2016, as razões desta necessidade não realizada. Para além dos conflitos internos da sociedade brasileira, nas regras duras do Sistema Internacional, sabe-se que qualquer possibilidade de projeção de poder nacional que ultrapasse certos limites, ou que impeça a presença transnacional em setores estratégicos do capitalismo brasileiro, poderá ser vista como potencial hostilidade. Considerando o peso do Brasil no Continente e no eixo do Atlântico Sul, além das relações com a África, simplesmente Washington jamais poderia aceitar de modo passivo ao crescimento do Estado brasileiro na mundialização capitalista. Esse aceite torna-se ainda mais improvável quando há inclinação para o estabelecimento de alguns acordos no âmbito dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), lembrando que tal sigla foi uma criação de um economista do eixo anglo-saxão.

Agrava a situação de partida – reparem que estou afirmando um ponto de partida que deveria ser exercitado em 1º de janeiro de 2003 – quando se sabe que há uma profunda, densa e terrível internalização de valores liberais e idealizações de sistemas de vida em sociedade dos países anglo-saxões (com os EUA no centro do mundo virtuoso imaginário da elite brasileira) em frações de classe e estamentos do Estado brasileiro.

A evidência do primeiro descontrole nas relações de cooperação judicial entre Brasil-EUA 

Para além destas obviedades geoestratégicas – senso comum para especialistas da área, logo, conhecimento de fácil acesso para os recursos de governo – o primeiro passo seria ver quais brechas legais e possibilidades de perda de controle dentro dos poderes estatais havia quando do início do governo Lula.

Uma observação necessária, algo que ou não foi realizado, ou se o foi, não esteve a contento, seria o acompanhamento do Decreto Presidencial de Número 3810/2001, ou segundo a denominação completa, Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, celebrado em Brasília, em 14 de outubro de 1997, corrigido em sua versão em português, por troca de Notas, em 15 de fevereiro de 2001.

O acordo Brasil-EUA, iniciado em 14 de outubro de 1997 (durante o primeiro mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso,FHC), foi reiterado através de Decreto Presidencial No. 3810/2001 (ver http://migre.me/vHGW3), após um Decreto Legislativo de No. 262, de 18 de dezembro de 2000. Neste decreto presidencial, afirma-se que os termos do acordo só podem ser alterados com a aprovação do Congresso Nacional. Tais termos indicam no Artigo II, item 2, para operarem implicam uma autoridade central de cada país, sendo que no texto original, a centralidade brasileira estava com o Ministério da Justiça (MJ) e nos EUA, o Procurador-Geral ou pessoa por ele designada. No Artigo III, itens a), b) e c), constam todas as restrições para o acesso de informações do Estado Requerido pelo Estado Requerente. No item b), especificamente, os temas de que possam vir a prejudicar o Estado Requerido podem ser negados.

Como o Decreto 3810/2001 continua válido, logo se entende que não houve uma aprovação formal do Congresso Nacional para a transferência da autoridade central brasileira do MJ para a Procuradoria Geral da República (PGR). Se houve, não temos a publicidade necessária como pressuposto de serviço público. Se a autoridade central brasileira passou do MJ para a PGR, através de sua Secretaria de Cooperação Internacional (SCI), tal fato não é formalizado nem na própria página da SCI.

Segundo o texto do órgão (ver: http://migre.me/vHH9I):

“Autoridade Central

A Autoridade Central é a autoridade designada para gerenciar o envio e o recebimento de pedidos de auxílio jurídico, adequando-os e os remetendo às respectivas autoridades nacionais e estrangeiras competentes. No Brasil, a autoridade central examina os pedidos ativos e passivos, sugerindo adequações, exercendo uma sorte de juízo de admissibilidade administrativo, tendente a acelerar e melhorar a qualidade dos resultados da cooperação.

A Procuradoria Geral da República é a Autoridade Central no Brasil para pedidos de auxílio direto destinados e provenientes de Portugal e do Canadá.

Para pedidos de auxílio direto a outros países, este papel é exercido no Brasil pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, subordinado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça.”

No próximo texto, vamos dar sequência nesta exposição. Seguimos este debate, demonstrando tanto o argumento central como resposta inconclusa da pergunta-chave, assim como apontando as evidências de possíveis descontroles e internalização do poder do hegemon dentro do Estado brasileiro. Se leitoras e leitores se mostraram apreensivos diante do aqui foi exposto, reforço o temor e digo que mal começamos a desenvolver o tema.

Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais

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