Assim como o golpe de 64, com seus coveiros de então, além dos outros até 1985, os atuais golpistas e seus golpes irão terminar no lixo da história.
Flavio Aguiar, de Berlim // www.cartamaior.com.br
O governo de Michel Temer, nascido com o golpe de estado que destituiu a presidenta legítima e legal Dilma Rousseff, tem algo em comum com o governo Costa e Silva, que proclamou o Ato Institucional n* 5, em 13 de dezembro de 1968.
A foto daquele fatídico momento, em que se soterrou o Brasil debaixo de seus seis “Considerandos” e doze artigos mostra um bando de homens de ternos de cor preta, no máximo cinzenta, e fardas militares. Só homens. E de luto, o país inteiro.
Já a famigerada foto da posse do governo Temer igualmente soterra o Brasil na ilegalidade, e se mostra igualmente povoada por homens, só homens, de ternos de cor preta. E de luto também, o país inteiro.
Em ambos os casos, as mesmas gravatas rutilantes.
Há 48 anos o Ato 5 suspendia as garantias constitucionais, colocava o governo acima de Constituição vigente que, datando de 1967, fora outorgada pelo governo oriundo do golpe militar e votada por um Congresso Nacional cuja autonomia fora extirpada pela cassação dos deputados e senadores mais contundentes em oposição ao regime. Muitos analistas vêem o Ato 5 como um”golpe dentro do golpe”. Outros mais à direita o vêem como uma “traição” aos ideais da “Revolução de 31 de março1964”. E ainda há aqueles que, como eu, o vêem como um desdobramento algo natural do golpe de 1* de abril de 64, considerando que sempre se sabe onde um golpe de estado começa mas nunca se sabe onde ele vai parar - a não ser mais tarde, na lata de lixo da História, como aconteceu com o regime de 64. Este soterrou a democracia por 21 anos.
O golpe de estado deste ano de 2016 chega agora a um de seus ápices, que é também um desdobramento de si mesmo. Este é a votação, prevista para a mesma data fatídico e que não deixa de ser “comemorativa” de 13 de dezembro, da PEC 55, que soterra a já soterrada democracia, e rompe o pacto constitucional de 1988, o responsável pela redemocratização do país depois daqueles 21 anos de ditadura e mais três de discussão e votação da nova Carta Magna.
Naquele dezembro de 1968 os coveiros da nação eram duas dezenas de homens imbuídos de seu senso de dever para com o “combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo”. Agora neste dezembro de 2016 teremos, como coveiros da nação, depois do doloroso, espalhafatoso e ridículo processo começado por um deputado hoje acuado e acusado de tudo quanto é tipo de corrupção, a partir do pedido formulado por uma trinca de pseudo-juristas que não encontraram crime mas cheios de convicção, algumas centenas de protagonistas e figurantes. Além de deputados, senadores, levados ao ridículo na cena internacional, perfilam-se neste autêntico vaudeville orgiástico e espasmódico de desmandos jurídicos de toda espécie, centenas de parlamentares, dezenas e dezenas, talvez centenas de juízes, promotores, policiais federais, além de milhares de alucinados desfilando camisetas de uma entidade com dirigentes acusados internacionalmente de corrupção como se fosse a paladina da luta anti-corrupção. Bom, os coveiros de 68 e de 64 também invocavam a luta contra a corrupção entre os seus motivos, enquanto corrompiam a saúde democrática da nação. Agora, desta vez, temos, entre os paladinos que depuseram uma presidenta honesta, além do corifeu do processo do impeachment, centenas de parlamentares - mais os membros do atual governo, inclusive o atual presidente - acusados igualmente de toda a sorte de corrupção.
Diz o principal teórico da jurisprudência nazista na Alemanha, Carl Schmitt, que o mundo jurídico deriva da teologia. E que, portanto, o líder da instauração de um “Estado de Exceção” (“Ausnahmezustand”, palavra de triste memória, em alemão) deve comportar-se com Deus, que criou o mundo e ao mesmo tempo as leis que o regem.
Aqueles coveiros de 64 e de 68, passando pela outorga da Constituição de 1967, que incorporava a seu texto os Atos Institucionais anteriores visando dar um verniz legal à ruptura da ordem legal e à repressão subsequente, assim se comportaram: como deuses que criavam um “novo” mundo e suas leis - muitas delas não expressas à luz do dia, uma vez que vividas nas sinistras masmorras da tortura, assassinatos e “desaparecimentos”, além da repressão aberta e da tortura. Eram os bruxos daquela noite de trevas que se abatera e voltava a se abater sobre o país, congelando-o ao longo de 21 anos.
Agora vemos um amontoado - dezenas, centenas, talvez milhares - de “pequenos deuses”, aprendizes de feitiçaria barata, todos querendo legislar furiosamente, criando pequenos mundos e pequenas leis em causa própria (um deles defendendo bravamente a ilegalidade que queria legalizar de um apartamento que comprou…). Mas que se aprestam igualmente a congelar o país durante vinte anos, pelo menos, negando-lhe os direitos constitucionais à saúde, educação e bem-estar, além da tranquilidade do ponto de vista legal.
É verdade que são golpes diferentes no estilo: no tradicional, militar, os tanques vão à frente, liderando a tropa de ocupação das ratazanas que vem atrás, mas de certo modo, disciplinando-a e impondo um certo decoro destinado a manter as aparências. No golpe parlamentar não há aquela vanguarda explícita: a rataria sobe ao convés e logo se instala uma disputa feroz pelos despojos da arca em disputa, com todo se mordendo e se agadanhando na disputa do botim.
De tudo isto, uma coisa é certa: logo virá, já estando em gestação, uma série de “golpes dentro do golpe”, desdobramento inevitável do passo inicial de ruptura da ordem democrática.
Outra coisa também é certa: assim como o golpe de 64, com seus coveiros de então, de 67 e de 68, além dos outros até 1985, os atuais golpistas e seus golpes irão terminar no lixo da história.
Créditos da foto: reprodução
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